MOTEL

 

 

Marido e mulher há mais de cinco anos. Casamento em crise. Encontravam-se naquela fase de quase desespero, na ânsia de salvar a relação. Pensaram em tudo... Criatividade sobrando. Ambos escritores de romances e contos eróticos. A sugestão partiu dela. Quem sabe aquela seria a solução. Pelo menos a última tentativa. Conhecia casais amigos que se tinham reconciliado depois de experiências semelhantes. Às quatro horas da tarde de um sábado saíram sozinhos. Mas separados. Ela no Honda. Ele no Vectra. A intenção era se reencontrarem depois das dez da noite, e experimentarem algo nunca imaginado. Cada um criaria a sua própria fantasia. Mas só depois que se afastassem. Apenas dois detalhes estavam previamente combinados: horário e local exato do encontro. Ele chegaria primeiro. Daí por diante tudo ficava por conta das fantasias.

 Ele deu partida no automóvel sem mesmo saber que destino tomar. Depois de rodar alguns quilômetros decidiu visitar um casal amigo. Conversaram o que conversam dois homens e uma mulher jovens numa tarde de sábado: banalidades. Sequer os temas prediletos podiam ser abordados. Os deles, futebol e política. Os dela, novela e casa bonita.

A outra saiu já sabendo exatamente para onde ir. Seguiu também para a residência de uma amiga. Era divorciada. O marido não a conhecia. Saíram juntas poucos minutos depois. E foram fazer o que fazem duas mulheres jovens, com bastante dinheiro, num sábado à tarde. Não precisava dizer que foram às compras. Como já foi dito, fica assim mesmo. Antes de irem para o Center, passaram num sex shop. A companheira sabia da intenção da outra e ajudou a escolher. Era mais experiente.

O marido e o casal amigo ficaram a bebericar. Dentro de algum tempo, a conversa mudou de rumo. Em vez de banalidades, literatura. Em vez de brasileira, americana. Em vez de Poe, Henry Miller. Em vez de Trópico de Câncer, Nexus, Plexus e Sexus. Todos concordaram que, depois de Miller, o mundo não seria mais o mesmo. E as cremalheiras do tema se encaixaram como o côncavo no convexo, durante todo o restante do tempo, lubrificadas por pequenos goles de Logan.

O álcool é uma espécie de soro da verdade. Depois da terceira dose confessou, primeiro ao amigo e depois à esposa deste, o que planejava para a noite. Melhor dizendo, o que não planejava. Pois, simplesmente, nada lhe ocorrera ainda. Os dois, a princípio, riram muito. Logo depois marido e mulher se tornaram pensativos, enquanto se entreolhavam de esguelha. "Se nos deres dez ou quinze minutos a sós, talvez teremos uma solução para o teu impasse".

As duas amigas voltaram exaustas. Mergulharam na piscina enquanto conversavam. O tema não diferia muito da outra conversa que se passava a quilômetros dali.

Às dez em ponto o esposo chegou ao Motel escolhido para o encontro e informou o porteiro que esperava a esposa. Deixou um envelope lacrado contendo as seguintes instruções: Não nos veremos. Tudo se passará às escuras. Nada de perguntas. Nada de palavras. Seremos como dois estranhos. Só que estaremos cegos e surdo-mudos. O gerente indicará o quarto em que me encontro. Entre sem bater.

A esposa entrou meia hora depois e chaveou a porta. O quarto imerso em trevas. Demorou um pouco a adaptar a visão ao escuro. Do marido, só o vulto. Mal ela entrou, ele foi lhe tirando a roupa com uma violência que ela desconhecia. Fez o mesmo com ele e se pôs de costas, como costumava fazer. Algo morno e roliço se insinuou entre as nádegas e parou. Duas surpresas a aguardavam. Ele não costumava fazer assim. Ia logo às vias de fato. "Está tentando ser paciente e criativo", pensou. "Melhor assim. Talvez me excite mais e melhor". Havia outra estranheza. O volume era absurdamente grande. "Deve estar usando um pênis artificial. Nem precisava... Trago na minha bolsa".

Como parecia não haver espaço para uma boa acomodação, ela tomou as duas nádegas com as mãos e as afastou. O pênis penetrou, mas só entre as nádegas. A impressão era a de que o tamanho da glande fosse o mesmo do de uma bola de tênis. Aquele volume descomunal, jamais experimentado antes, acariciava os bordos do ânus. Do meato brotavam longos filamentos de muco que tornavam aquelas carícias ainda mais macias, deslizantes, deliciosas. Parecia um lubrificante natural. Ambos tremiam de tesão.

Ele forcejou um pouco. Não progrediu um centímetro. Relaxou o mais que pôde e empinou um pouco o bumbum. Agora sentia que a extremidade afastava as margens do esfíncter e sentiu dores. Tentou recuar. Ele não permitiu. Permaneceram, nessa posição durante alguns minutos. Somente então a glande ficou rente ao orifício. Não penetrou ainda. Ela pôs as mãos pra trás e apalpou os testículos. E então teve certeza: Não era o marido. Tentou escapar. Ele a segurou firmemente pelas ancas, imobilizando-a. Tracionou-as.  E com um só impulso, fez a cabeça atravessar o esfíncter. Um grito de dor. Já era tarde para recuar.

Debruçou-se aos pés da cama como se fosse apanhar um objeto caído ao chão. Esse movimento sugou todo o pênis para dentro, como se tivesse formado um vigoroso vácuo. Então se entregou completamente. As estocadas tiveram início. A princípio lentas e suaves; quase paradas. Depois com a violência dos desesperados de desejo. Ela não suportou e pediu mais... Rouca, trêmula... Também desesperada. Nesse instante sentiu um volume enorme de líquido morno e espesso esguichando no âmago das suas entranhas. O marido acendeu as luzes. Ele também gozava. Mas se encontrava a cerca de cinco metros de distância. As luzes voltaram a se apagar. O estranho desapareceu.

 

 

 

 

 

 

"A POSSUÍDA"

 

 

"Não importa que não me acreditem, mas só digo a verdade — mesmo

quando ela é inverossímil". [Mário de Sá-Carneiro: A Confissão de Lúcio]

 

 

Era casada, a Possuída. Muito bem casada. E não sabia. Eu tampouco sabia que ela não sabia. Decerto a inconsciência da sua situação conjugal, levou-a a se envolver comigo. Paixão recíproca e avassaladora. De súbito, e sem qualquer motivo aparente, me ignorou como se jamais tivesse sequer me conhecido. Só ao comparar o seu comportamento atual com o anterior, e reler as cartas que me escreveu, descobri que estive apaixonado por uma pessoa que nunca existiu. Tratava-se de algo que também nem existe mais. Não passava de um clone avariado e desgarrado que se recuperou e reverteu à matriz.

Sentindo-me mais perplexo e curioso do que decepcionado e saudoso, decidi investigar tudo com máxima isenção emocional. Estudar uma doença desconhecida como um pesquisador, dela recém-curado. Fui aos livros. Primeiro, aos científicos. Não encontrando nada pertinente, recorri à literatura fantástica. Três obras me chamaram a atenção: O Horla, de Maupassant; William Wilson, de Poe; e O Duplo, de Dostoievski. Concluí, em primeiro lugar, que a chamada "verdade" cartesiana não passa de mais uma ilusão; uma religião cuja deusa é uma duvidosa "razão". Concluí também que a Possuída foi um ogro que devorou um naco apreciável dos meus sentimentos mais profundos, sem que eu e ela nos déssemos conta disso.

Ignoro a que se deve o ato falho que o inconsciente me impingiu ao nomeá-la "Possuída". Pois em verdade foi ela quem me possuiu. Trago um computador de neurônios que é a minha perdição. Terrível e prodigiosa, a memória quase me destruiu.
Começou com um inocente louvor à sua beleza, ao qual ela reagiu com um sorriso maroto e convidativo. Foi o bastante para a represa arrebentar. Não esqueço um só detalhe. Das alucinantes carícias, à loucura de me vestir com o avesso das suas entranhas mais tenras, macias e aconchegantes, a ponto de imaginar que jamais me desnudaria. Das cavalgadas, ora em choutos, ora em galopes, sob o seu absoluto domínio, às estranhas e inéditas experiências a que me submetia. Como aquele furor de alternâncias entre dois abrigos vizinhos, embora me implorasse para chover no seu rosto. Das palavras divinamente sujas de fêmea inteligente e vadia, aos estremecimentos, quase sincopais, ao me deglutir e regurgitar em ritmo crescente, até me esvaziar literalmente de tudo.

Algumas das suas falas menos obscenas durante os atos de amor, ainda geram calafrios: "Então, vem... chupa ela bem gostoso..."; "... Delicioso..."; "começa passando a língua, depois morde devagarinho o g..."; "...assim... me segura pelo quadril, e me chupa até eu gozar na tua boca..."; "enquanto você me chupa, vou subindo e descendo a boca nesse c. tesudo... agora enfio ele até a garganta..."; "agora passa ele pela b. e pelo c. pra sentir tudo o que te espera... me f. com a língua, vem..."; ... "devagar, porra nenhuma.... tô com gana de você...; Mesmo doendo, sentei pra valer... vou remexer tanto, que vai doer mais em você do que em mim..."; "Estou levitando...; Tenho vontade de chorar quando gozo com você; Hummmm....adoro quando você me beija ainda com meu gosto na boca... que tesão...; Minha respiração ainda está acelerada... só teu carinho me acalma...".

É o ponto extremo aonde me atrevo chegar, sem me tornar fescenino, ou correr o risco de desmaiar... Mesmo sabendo que ela não sabe que isso e muito mais coisas aconteceram. Pois Ela não é "Ela". É uma esposa fiel, como, aliás, sempre foi. Quem fazia e falava aquilo era a metade de uma mulher sem consciência da sua outra metade. Então, me sinto na singularíssima condição de um dissoluto que prevaricava com um fantasma... Para evitar palavras mais contundentes e absurdas, tais como: um estuprador seduzido pela própria vítima que, por sua vez, nunca existiu. Esse redemoinho de loucuras me trouxe a mais firme convicção de que o ser humano é uma cratera sem fundo aberta por um meteoro de carne na epiderme do universo.

 

 

 

 

 

 

LOUCURA CELESTIAL

 

 

Quarenta e treze. Essa conta não fecha. É mais do que absurda, é monstruosa. No entanto ela pedia, suplicava... implorava para ir além. Não é possível, é um sonho... Em verdade, era um pesadelo sem sono e sem vigília. Contrito por antecipação, ameaçava arremessar para o fundo do oceano, com a violência de toda a energia que era capaz de reunir, o disco de chumbo daquela cena divinamente diabólica. Mas não havia discos, apenas sanguessugas viscosas cujas ventosas aderiam ao corpo com a mesma força de sucção dos seus lábios sequiosos que ela aplicava desde o alto da fronte ao calcanhar de Aquiles da sua fraqueza de macho. Para ela um brinquedo. O resultado, porém, era aquele encontro onírico e absurdamente assimétrico entre a inocência e a concupiscência.

— Olha! Tá saindo de dentro dele uma clarinha de ovo cru. Em mim também tá, só que é muito mais... vamos ver quem ganha?

Não suportava mais. Precisava acordar daquele sonho híbrido de prazer e de loucura. Ou morreria de frenesi... Acontecências em derredor desmentiam: não te ilude, é tudo real. Beira-mar de meio-dia de domingo. O sol envergonhado indo embora. Manadas de nuvens cor de chumbo nascendo no nascente crescendo e se espraiando no horizonte imitavam vertiginosas preamares e traziam no dorso uma noite artificial carregada de negrume e cumplicidade.

— Ai...

— Dói?

— Não!

— Então por que disse Ai?

Usava a calcinha do biquíni, mas nada cobria os seios. Nem havia seios. Em seu lugar, brotavam duas minúsculas saliências firmes, lisas e convexas como as campânulas das inflorescências de tenras magnólias, de cujos ápices ameaçavam saltar dois mamilos túmidos de inculposa luxúria. Num rosto de criança, um semblante de mulher. Há sonhos onde o sonhador tem consciência de estar sonhando e não consegue interromper... Urgia despertar, ou enlouqueceria de vez. De novo, a realidade se impunha. Quem dorme não sente. E ele sentia a areia fina, cuja natureza parecia mais humana que mineral, a deslizar-lhe sob o dorso a cada vaivém das pequenas vagas, acariciando-lhe a pele, provocando cócegas e suaves formigamentos numa intermitência de sensualidade infinita.

— Quero ver que gosto tem!

— Quê?

— A clarinha de ovo cru — quero provar.

— Você enlouqueceu...

— Nossa! É salgadinho! Tem cheiro de camembert... e é tão macia... a cabecinha... 

Daí em diante era impossível saber se era sonho ou verdade. Havia perdido o senso da realidade e passou a perceber somente o que não existia: murmúrios de cascatas, chilrear de passarinhos; olores exóticos das flores do Oriente, dos sândalos de Calcutá e dos incensos da antiguidade; superfícies e mucosas umedecidas acetinadas sedosas aveludadas. Então, brotou-lhe bruscamente das entranhas o néctar ainda morno do fruto proibido que ela, sôfrega, sorvia com prazer...

 

 

 

[imagens ©flor garduño]

 

 

 

 

 

 

 

Ray Silveira é médico e escritor. Durante onze anos foi membro do Conselho Editorial da Revista FEMINA — Órgão De Referência dos Ginecologistas Brasileiros —, onde publicou artigos científicos. Tem também trabalhos publicados em outras revistas e livros médicos. Suas atividades na literatura convencional tiveram início com o advento da internet. É membro da SOBRAMES (Sociedade Brasileira de Médicos Escritores). Em 2010, ganhou o Prêmio Literário Para Autores Cearenses, com o livro de crônicas Louca Uma Ova. Em 2011, recebeu o Prêmio Nacional de Contos e Poesias Correio das Artes 60 Anos, promovido pelo governo da Paraíba, com o livro de contos Lagartas-de-Vidro. Foi um dos contemplados com a Bolsa FUNARTE de Criação Literária 2010, da qual resultou a obra Medicina Crônica. Com esse livro, venceu o Concurso Literário de Fortaleza 2012, promovido pela Prefeitura de Fortaleza.
 
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