man ray | l'enigme d'isidore ducasse
 
 
 
 
 
 

 

 

Apareceu no quintal de minha casa um objeto, semelhante a um baú. Não sei se deva usar o verbo "aparecer". Poderia ser "surgir"? Surgiu no quintal de minha moradia um baú de aço. Não sei se o chame de baú, mala, caixa, arca, móvel. Também não sei se é de aço, ferro, outro metal ou liga.

Quase nunca vou aos fundos da vivenda. Não cultivo fruteiras nem flores. Não planto nada. É tudo mato baixo. Quando cresce muito, procuro um trabalhador, combino o preço do serviço de limpeza e, de longe, faço a inspeção. Deixe tudo aí, para gerar vida. Não crio cachorro, para não me dar mais trabalho. Gatos de vizinhos aparecem todo dia. Miam, caçam borboletas e se retiram. Não ligo para eles.

Tomei um susto danado, ao ver aquilo no chão. Quem o teria posto ali? Algum vizinho? Teria caído do céu, de alguma aeronave? Submergido, após mil anos debaixo da terra? Não me açodei para obter resposta. Pus-me a passear pelos aposentos, em busca da melhor ideia. Bati palmas diante da morada de um vizinho. Surgiu alguma coisa no seu terreno hoje, ontem, nos últimos dias? O homem, assustado, me espreitava. Não estou entendendo a sua pergunta. De que está falando? Veio de algum lugar um móvel? Não, não recebi nada. Pois uma arca metálica emergiu atrás de minha habitação. Emergiu? Não sei. Apareceu, surgiu, mostrou-se. Vindo de onde? Quero saber exatamente isso. O senhor pensa que eu teria o trabalho de carregar uma caixa de metal às costas, pular o muro e ...? Zanguei-me e deixei o sujeito a resmungar.

Telefonei para a polícia. Quase me prenderam à distância. O que o senhor está dizendo? Quer que eu repita? Se repetir, mandarei uma tropa conduzi-lo algemado. Será posto numa cela repleta de estupradores, homicidas, psicopatas da pior espécie. Morto de medo, pedi desculpas e desliguei o telefone.

Chegado à residência de meu irmão, os meninos pularam ao meu colo. Tio Bel, tio Belzinho, tiozinho, tiozão. Não suporto crianças desse tipo, que saltam ao meu pescoço e me lambuzam de cuspe e catarro. A mãe, desgrenhada, roupas sujas, carregava um bebê para lá e para cá. Cadê o seu marido? Pedi água, café ou suco. Pode abrir a geladeira, destampar as panelas. Sentia uma sede horrível. Você não sabe o que aconteceu, Verônica? Arregalou os olhos e fez duas ou três suposições horripilantes: Você foi assaltado, sua mãe morreu, a casa desabou. Não, nada disso, mas aconteceu algo muito pior do que tudo isso junto. Então você se matou? Antes tivesse cometido suicídio; apareceu no meu quintal um baú de aço. Mas isto é ótimo, cunhado. Deve estar cheio de ouro. Tio, me dá uma moeda. Tiozinho do meu coração, eu quero um colar de pérolas.

Nunca me levaram a sério. Eu não passava de um mentiroso. E riam de mim. Como vai a sua namorada das arábias? Rumei para a Praça do Ferreira e me sentei num banco. Ao meu lado, um velhote lia jornal. O senhor crê em aparição? Não me deu ouvidos logo. Ao virar as folhas, olhou de soslaio para mim. Acredito, pois todo dia me aparece cada tipo. Estou falando em aparição de baú de aço. O homem se assustou. O que o senhor está dizendo?

Tive a ideia de voltar para meu lugar e arrombar o móvel. Primeiro comprei martelos, alicates, marretas, numa lojinha da Rua Sena Madureira. O vendedor me ofereceu também facões, enxadas e outros utensílios. Aceitei picareta e corda. Voei de volta ao lar e tentei quebrar o cadeado com uma fortíssima marretada. Dei mais sete golpes. Ao me preparar para o nono, ouvi uma voz: Não faça isso, seu Abelardo. Parei, sondei os lados, em busca da voz. Finalmente, avistei a testa franzida do meu vizinho sobre o muro. O senhor não pode quebrar coisa alheia. Mas a mala agora é minha. Não, não é. O senhor a comprou? Não. Quem lha deu? Que quer dizer lhadeu? Quem deu ela? Ninguém. Então não pode danificá-la. É crime. Vai chamar a polícia, seu Basílio? Não, porque ela já está ali, bem diante de seu domicílio. Corri ao portão. Um carro grande, preto, todo fechado, estacionado na rua. Ao lado dele, três homens fortes, de roupas escuras, examinavam a minha residência. Encaminhei-me até eles. Vieram buscar a arca? Que arca? Recostado ao portão, meu vizinho observava a cena. Eu não disse, seu teimoso! Os senhores são da polícia? Não, somos da funerária. Então há defunto dentro da caixa? O senhor quer dizer caixão? Quem está morto? Morta, senhor. Dona Sulamita morreu ontem à noite. Não diga. É verdade. Estamos aqui para levar o corpo. Na lateral do carro pude ler: Funerária requiescat in pace. Que quer dizer isto? O senhor não sabe o que é funerária? Os senhores podem ver o baú? Riram. Temos mais o que fazer. Seu Basílio também ria.

Voltei ao quintal. Como me livraria daquele objeto enorme, pesado, exótico, se ninguém me dava ouvidos ou explicações? Liguei a televisão. Talvez houvesse notícia de algum desastre aéreo. O móvel teria caído do céu, de alguma aeronave destroçada. No entanto, não havia nenhuma notícia de queda de avião. Liguei o computador, esquadrinhei novidades. Terremoto no Japão, deslizamentos de terra no Rio de Janeiro, enchentes em São Paulo. Tudo na terra, nada no céu. Vasculhei saites de óvnis. Falavam do passado. 1957, objeto não identificado. Humanóides teriam raptado pessoa em Ubatuba.

Passei o resto do dia cheio de dúvidas. Cheguei a imaginar a maior das besteiras: o baú não existia, a não ser em minha imaginação. E logo mudava de ideia: ora, o vizinho o tinha visto. Ou não? Como saber se ele vira o ser inanimado? Lembro das palavras dele: O senhor não pode danificar coisa alheia. Estaria vendo o baú, ao dizer isto? Telefonei para amigos e parentes. Não tive coragem de falar da mala. Imagine se aparecesse em seu quintal um corpo estranho. Isto nunca acontecerá, porque não tenho quintal.

No final da tarde, saí novamente de casa. Precisava arranjar um meio de me livrar daquilo. Encaminhei-me ao quartel da aeronáutica. Ao me aproximar de lá, fitei a vista no céu. Aeronaves iam e vinham. Desisti. Os militares estariam muito ocupados e não me dariam atenção.

Dirigi-me à beira-mar. Sentei-me numa cadeira, pedi água de coco. Considerei puxar assunto com o garçom, mas ele parecia tão atarefado que nem saberia me responder. Você já viu um baú de aço? Diria sim ou não e correria para atender outro freguês. Pensei em me dirigir a um senhor branco, alto, cabelos loiros, que alisava as pernas de uma moreninha: I want your thighs.

Terminou minha tarde e eu me sentia muito cansado e desiludido. Fui jantar, liguei a TV, falavam em desastres e assaltos a bancos. Mudei de canal e me defrontei com um jogo de futebol. Quebravam pernas, esmurravam-se no meio do campo. O povo gritava nas arquibancadas. Senti sono e fui para a cama. Tive sonhos horríveis: aranhas gigantescas devoravam meus bois (eu era fazendeiro e andava a cavalo pelo mato), mulheres bonitas riam de mim e fugiam para o mar (eu me expunha na areia, quase nu), meninos de plástico saltavam muros e caíam sobre minha barriga (eu tomava conta de um depósito de brinquedos e o tempo nunca passava).

Acordei cedo e abri a porta que leva ao terreno coberto de mato. Não olhei logo para o chão e o capim. Sobre o muro, a testa de seu Basílio parecia franzida de espanto.

 

 

 

 

Fortaleza, 27 de março de 2011.

 

 
setembro, 2013