A venda

 

 

Tudo o que passa diante dos meus olhos me cega.

 

Essa realidade que dizem que está aí pra mim não existe. Não foi essa a nação que sonhei.

 

No meu projeto, e tenho milhares deles, o Brasil é outro país. Bem diferente do que sai nos jornais e fica se repetindo dia após dia, escândalo após escândalo. Inventado, é claro.

 

Demorei muito pra chegar até aqui e não vou deixar que desmoronem as bases de tudo que construí com as bases do meu partido (mesmo rachado em mil facções). Tá tudo aí. Só não vê quem não quer.

 

Meus assessores, que me assessoram o tempo todo, são a melhor assessoria que pude montar com os ascensoristas de plantão. Não tenho culpa se todos me traem. Política é a arte das concessões. E pra conceber um Brasil sem sede, tenho que conceder tudo. Só não cedo minha sede aos que tardam a ver o óbvio.

 

EU tenho as mãos limpas, mesmo mexendo nessa coisa repugnante que a política é. E que ninguém discuta ética comigo. Minha consciência não está à venda. E nem a venda está em mim.

 

 

 

 

 

 

Amuleto de mim

 

"Que o ser humano possa ser seu próprio amuleto" (?)

Nietzsche

 

Transformar o coração em pedra.

 

Petrificar mais a pedra que esse coração virar.

 

Revolucionar todos os compêndios de medicina e livros de anatomia.

 

Transformar os mais sangrentos boletins de ocorrência em canções de ninar.

 

Originar manchetes de jornal que vão escandalizar a população como nunca, e vender jornal como nunca.

 

Exigir que o seguro pague a perda total desse coração sinistrado que, de tanto ficar marcando passo, nem marca-passo resolve mais.

 

Fazer das tripas coração para que o coração seja cada vez mais tripa e menos coração.

 

Transplantá-lo a níveis nunca vistos de maldade, capazes de causar rejeição no corpo do mais cruel dos criminosos.

 

Bombeá-lo não com sangue, mas com nitroglicerina, até que os vasos sanguíneos bombardeiem vasos sanitários.

 

Torná-lo um bunker impenetrável, impedindo que entre qualquer emoção e vedando-o contra vazamentos de choro.

 

Até esse coração ficar tão duro que vire um amuleto de mim.

 

 

 

 

 

 

Refundação do abismo

 

 

A ilusão é um falso chão.

 

Tão falso quanto este atual não-abismo em que as pessoas insistem em pisar e repisar e eclipsar a realidade, fingindo uma segurança que não há nunca houve sequer jamais existiu, embora já não haja nosso-meu querido abismo que soterraram com suas certezazinhas fajutas baseadas em teoremas mal provados e achismos perdidos.

 

Quede o não-lugar onde caíamos eternamente livres de nós e de tudo? Grávidos só da gravidade e sua grave leveza. Partindo prum parto às avessas sem data pra cesarianarmos uns aos outros.

 

Onde esquecíamos o destino-chão final, pois o abismo não cansava de se abismar em si mesmo, deixando os incrédulos abismados e tornando a viagem a sua própria linha de chegada numa sucessão de não-tempos sem paradas, escalas e escolhas.

 

Quem teve a maldita ideia de tirar nosso não-chão e pavimentar esta barreira sob nossos pés desejosos de perder o peso-tonelada do corpo?

 

Qual a vantagem de não cair se estamos agora nesta profunda depressão?

 

 

 

 

 

 

Depressão geográfica

 

 

Meu estado emocional não tem capital.

 

 

 

 

 

 

Fran dá entrevista

 

 

Ela, a safada, a idiota, a Geni da vez ou o meme do momento, entra e senta. A plateia urra. O Ibope dá pirueta. A apresentadora aplaude.

 

Está cabisbaixa — ué, não tá feliz por bombar na internet? Não vai aproveitar a "fama"? Posar pra Playboy? Lançar uma autobiografia não autorizada ou lojas de sex shop?

 

Apresentadora: "Você esperava todo esse sucesso?".

Fran: "Não espero mais nada".

 

Apresentadora: "Você o amava?".

Fran: "Eu me odeio".

 

A plateia aplaude. O Ibope dá um duplo twist carpado. A apresentadora ouve no ponto que deve passar do ponto.

 

Apresentadora: "Mas então... Por que você deu... O seu 'precioso' (fazendo OK com a mão) pra ele?"

Fran: "Me entreguei sem esperar nada em troca".

 

O diretor quer ver ela chorando, a plateia sorrindo, o Ibope gargalhando.

 

Apresentadora: "Tá engolindo bem as piadas?"

Fran: "Perdi a fome de viver".

 

O diretor reprisa o vídeo dez vezes.

 

Apresentadora: "Fran, te amei. Ótimo ver que tá tudo OK com você".

 

 

Fran ia responder, mas entram os comerciais.

 

 

 

 

 

 

Hidrografia do corpo

 

 

Nascente

Atrito de corpos se navegando nos suores que se avolumam do mutualismo que percorre os córregos que escorrem a corrente dos desejos.

 

Afluentes

Jorro de mãos, pés, bocas, cheiros, sabores, cores, densidades e volúpias que, não cabendo nos igarapés desse leito, acham de se riachar.

 

Carta de navegação

Guia de sons, pelos, sentidos e gemidos que apontam o rumo a seguir, os atalhos, o caminho mais demorado (que pode não ser o pior) e a velocidade a controlar.

 

Bancos de areia

Percalços que tripudiam os tripulantes que somos desse barco sem leme, lema, salva-vidas ou coletes que nos protejam dos flertes com o desvio de rota.

 

Encontro das águas

Presença pressentida a quilômetros, sentida a metros e tida incerta até que se amazona em nós.

 

Foz

Você!

 

 

 

 

 

 

Japão em 5 tempos

II - Tsunami

 

 

Talvez porque merecêssemos (?), a desgraça engraçou-se de nós.

 

No que era "só" terremoto, pânico, destruição (1.799), teatro da vertigem sem plateia, do absurdo sem razão, vieram as ondas (ondas? AQUILO???) e redestruíram o que tentávamos ser nós poucos fantasmas.

 

Redemoinhávamos em redemônios moinhos gigandantescos d'água, d'inferno (2.594), d'demo-capeta-puta-que-pariu POR QUÊ?

 

Afundávamos em nós, si, te, ti, tu, se, lhes, conosco-convosco-todos-os-pronomes-pessoais-retos-tortos agora inúteis, pois cadê as pessoas? Mães, pais, crianças, nós mesmos?

 

Cadê o ar-oxigênio que já era o muito-quase-NADA-pouco que tínhamos? Tínhamos...

 

Cadê o ar, ar, AR, PORRA! Glub-glub, ar-oxigênio, ar-qualquer-coisa, glub-glub (3.217), só um pouco de ar?

 

Água na boca-pulmões-pâncreas, água, água, ÁGUA! Cadê o ar, AR? Pra que tanta água se nossas almas-ilhas-perdidas já encharcavam de morte por todos os lados?

 

Cadê o a

 

No ralo-profundo do oceano, (4.690) esgotávamos a contragosto em esgotos humanos.

 

 

 

 

 

 

Malabares no ar II

 

 

"E hoje resolvi sentar / numa das pontas da lua minguante

sente na outra / por favor".

Hojerizah

 

 

Pegue o seu desejo e jogue-o no ar.

Não, esse, não.

Não é qualquer desejo.

Você já deveria saber...

É aquele que foi/é eternamente seu.

Que nem precisa pensar qual é.

Que o domina.

Que é mais forte que você.

Isso.

Este!

Agora, outro.

Tão importante quanto.

Por fim, o terceiro.

Não menos fundamental.

Parabéns!

Bela escolha.

Talvez não seja digno deles.

O homem e suas ambições...

Mas vamos lá.

Estou aqui pra ajudá-lo.

Mantenha-os sempre no alto.

Mostre que está à altura deles.

Que quer e pode alcançá-los.

E, acima de tudo, merecê-los.

Cadencie o movimento dos três cuidadosamente.

Atentando para a volatilidade tão inquietantemente intrínseca aos desejos.

Para o dinamismo peculiar de cada um.

Faça de tudo pra que eles não caiam.

Nunca!

Isso, assim.

Com cuidado.

Prestando atenção nos três ao mesmo tempo.

Tá indo bem.

Quase conseguindo.

É só não deixar cair.

Agora, basta você...

Quê?

Não!

Um quarto, não!

Eu disse NÃO!!!

 

 

 

 

 

 

Votos secretos

 

 

Entre desejos e dejetos, escorrem secretos decretos que recheiam esgotos rotos de nos enganar.

 

Os que nos esganam com suas cálidas gargantas profundas de silêncio soltam arrotos de ética que se esticam até a linha tênia de barrigas retoalimentadas pela corrupção.

 

Vossos atos e desacatos eclodem lavas e lamas com as quais se livram de presidiárias, reinam nas cadeias do poder e nos barram de nós mesmos, impedindo de sermos ser e pedindo que sejamos servos de mandatos alheios.

 

Perdidos entre as PECs e os pecados das Vossas Excelências, proclamamos passeatas contra as independências vossas e as fossas nossas. E nos deprimimos com a injustiça que nada vê e tudo revê pelos olhos remelentos da burrocracia e pelos ouvidos surdos aos berros e erros do povo.

 

Povoaremos plenos este plenário um dia?

 

Seremos nação sendo maioria minotária?

 

Nossos vetos são que vossos protestos de sucesso redundem em franco fracasso.

 

E nossos votos são de que um dia voltemos a si.

 

 

 

 

 

 

Casamento II

 

(ler com sotaque curitibano)

 

 

 

Bateu a porta mostrando que era dia de soco com olho roxo.

 

Corri com o anjinho pro quarto, que ele não merece ver as coisa que esse demo faz.

 

"Bandida! Tá correndo pra se lavar e tirar o cheiro do outro?"

 

Com a garrafa de pinga na mão, deu-me um soco que fez minha cabeça quicar no chão antes de poder falar que nunca tive outro homem na vida.

 

"Até mulher de rua é mais limpa que você! Mas cê vai ver. Eu vou te limpar!".

 

No que jogou a cachaça em mim gritei, mas quede vizinho, se tão tudo acostumado com esse inferno?

 

Riscou o fósforo, tacou na minha perna e ainda disse que eu devia outra pinga pra ele.

 

Só não virei cinza por obra do santo do Seu Manoel, que com pena de mim sempre põe um pouco de água na bebida do cão.

 

Do quarto, o pobrezinho chorava.

 

"Vá, sua vadia, cuidar desse traste que nem meu deve ser. Mas antes, faz meu café!".

 

Sentou no sofá, dormiu, roncou.

 

E eu só pensando quando vão inventar uma marca que já vem com vidro moído pra dar menos trabalho.

 

 

 

 

 

 

Ali os alicerces de Alice

 

 

Ali os alicerces de Alice: sapatos altos de agulha fincada na pele branca-baba dos clientes que ela repelia como os sapatos catapultados agora às 4h48 da manhã contra a parede 2 X 1,7m da quitinete do Baixo Augusta.

 

Não podia calçá-los: a louca de baixo fez abaixo-assinado pra escorraçá-la de lá e afundar mais sua depressão.

 

Lá: prédio "de família" onde não se toleram moças assim, mesmo com suas boas-tardes de elevador, condomínios em dia e cabeça baixa diante de olhares superiores.

 

Aqui: redoma no 18° andar pra esquecer de si e do mundo e se sentir menos suja nos banhos 40 minutos de conta de luz cara pra tentar acender sua moral apagada e ascender sua baixa-estima.

 

Do alto, via as vias e a vida que não queria.

 

De baixo, olhava pro teto que a oprimia como os gordos casados do próprio prédio baforando a desculpa da reunião externa.

 

Rosto colado no chão, mirava os sapatos: só eles a sustentariam a trabalhar de novo e impedir que ela fizesse algo

para que tudo

ali cesse. 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©kyle thompson] 

 

 

David Anderson é redator, roteirista e dramaturgo e publica há mais de sete anos o blogue Miniconto [miniconto.blogspot.com], um pequeno grande blogue para grandes pequenos contos. Escritos em até uma hora e com no máximo mil caracteres (contando título, espaços, erros e acertos). Fez parte do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-British Council, que lançou um livro com sua peça teatral Tem Espaço de Sobra no Meu Coração. Seu roteiro Pânico Pacífico, dirigido por Marco Antônio Braz, foi veiculado ao vivo no Teatro para Alguém: vimeo.com/40678437. Já ganhou diversos concursos de textos e está escrevendo um livro de contos e outros roteiros e peças.