De cotidianas coisas

 

 

Cheira o feijão

há folhas de louro no ar

Dona Margarida cantarola

melodias antigas

boas de palmear

 

Na mesa tomates rechonchudos descansam

ensimesmados em natureza morta

sobre o plástico branco bordado

reflexo pobre da renda de outrora

 

As laranjas são umbigadas

grávidas de doçura cítrica

que espalha-se

nos

cantos

contos

e até no corrupio

cúmplice

dessa gente acastanhada

mestiça

que recende

a todos os perfumes

Especiaria da terra

 

O mundo aqui

tremula em luz e calor

ou no imperativo das chuvas

Podemos sonhar em campos verdes e frescos de azul

estampando a primavera como as memórias de agora

Ou navegar em nuvens olivas

margeando os horizontes

empapando o espírito

que transborda

em platina retina

 

O Recôncavo

todo escancara

minhas emoções

 

Ai de mim que passo trôpega  

que não contorno os riachos

e ainda ouço cantar os bambus

nos domingos de ventar

da praça Matriz.

Ai de mim que de cajueiros

sigo me destilando

 

 

 

 

 

 

Solstício

 

 

Agosto acaricia-me

com ventos e alecrins.

A alma no frescor

deste momento exato.

 

Solta as amarras

as impressões traspassam-me

loucas, aladas, vibrantes

sob um sol da infância.

A felicidade num domingo

brilhante e úmido

na terra chovida de julho.

 

Ainda o cheiro das mexericas desgomadas

do capim novo nascido na serra

do emadeiramento antigo

Vigas, telhados e casas de Belém da Cachoeira

Permanecida, incrustada sob esta luz especial.

 

Revela-se a preguiça dos pés descalços

a poeira comparsa das travessuras secretas

mordiscam-me os desejos tresloucados

as angustias incompreendidas

as tardes, longas, enormes, estiradas

nas quais me debruçava no ofício de gozar.

 

Um mundo me veio dali.

E dele sei que o tenho desde sempre estendido

lençol de linho branco que fui bordando sem dedal

nunca só pelas beiradas

mas em trama sinuosa

complexo melindre, provençal.

 

Ganhei esse olhar em viés

esse meio irisado riso

nem mais estúdio

nem mais triste ou alegre

só um riso rio.

 

Como pode um campo de alecrins abrir-me

como um livro de sépias páginas

ao açoite desta hora?

De certo há horas mais perigosas...

 

É este terno sol

— prenúncio de primavera —

que me arrebenta o coração!

 

 

 

 

 

 

Pneumáquina

 

 

Dobram os sinos no campanário

em alguma estrada que não é em Minas

mais ainda pedregosa e poeirenta

sinuosa trilha no coração

 

Espero a máquina do mundo se abrir

talvez em cortina

oxalá em fluxo

Seria a Tao quimera

deveras

de percepção possível?

 

Cresce o sonho na tarde que se esvai

ardendo de vermelhos, rosas, laranjas e lilases

 

Enquanto espero

ainda dobram os sinos

num campanário que não é em Minas

na pedregosa poeira

da estrada

e o único a fazer é tocar um Choro.

 

 

 

 

 

 

Decídua

 

 

Rubras e enlouquecidas 

as amendoeiras da minha rua

vestem-se de outono

na primavera.    

 

Assim meu coração aflito

rubro, rubro e vinho

um grito contido entre flores     

              

Vão-se os dias

as folhas enlouquecidas

as ruas...

A luz que incide

a chuva

as horas mortas

as flores "marchitas"

 

Somente o grito  ainda contido

Rubro, rubro e vinho

e o coraçao cristal

frágil, frágil e lume.

 

 

 

 

 

 

Longe de Mar

 

 

Levo sempre óculos escuros

um lenço

e um poemário

aquarela

 

Ontem

pintei de azul

do mais profundo

a alma

até que fosse oceano

Meus olhos

convite

a velejar

 

Aportei a nau dos meus sonhos

na garrafa que enfeita a sala de estar

sobre a estante

junto a violeta lilás

e a caixinha de jóias de Istambul

presente de um amor já distante

 

Estou longe de mar para insistir

e é tranqüilo

o baile de folhas secas

no quintal.

 

 

 

 

 

 

Nômade

 

 

Eu nunca me senti em casa

sou por natureza ausente

apesar e sobretudo

teço ritos de ficar

e tento os velhos livros, as estantes

da familiar melodia, a vitrola

o íntima hálito do convívio

a buganvília

ano após ano

desde a mesma varanda perfumada.

 

Talvez por lavra não pura

ou por sutilezas e traços

feito subterrânea água

de metais pesada

corrupta.

 

Dos que bebem da vida

a goles frescos

de saudade loa

bergamota

na taça de um anjo de asas flamadas.

 

 

 

 

 

 

Ardis

 

 

É quando finda:

vem este dourado absurdo

pirilampos na iris

translúcida maquiagem na alma.

 

 

Há tantas cores nesta primavera

infinitos matizes me perfilando

quimeras texturais

a pele no sentido

disfarça o rubro em áspero

a maciez no açafrão.

 

 

Na rua gambiarras multicores brilham

a noite insistentemente crua.

Na ausência de varandas

apenas solfejo

e sonho.

 

Tímida e nua

em janelas me abro.

 

 

 

 

 

 

Mediterrânea

 

 

O maior amor

me foi

regaliz

terciopelo

e azahar.

Sentidos impregnados

e depois uma ausência marinheira

ancorada no peito.

 

No cais dos anos

as cenas da  vida

disfarçam a saudade

e o relógio sem cuco

segue sua marcha incólume.

 

Mas as memórias não entendem do tempo

nem se diluem na brisa dos verões.

Memórias  se escondem

no recôndito do corpo

contida erupção

a eterna possibilidade

da lava incandescente

que latente hiberna.

 

 

 

 

 

 

Varanda

 

 

Don Quijote jamais soube

na aridez bella de Castilla

da musicalidade úmida dos trópicos.

A brisa

a manhã

o farfalhar das mangueiras orquestrais.

 

Na sua sutil primavera

toda o mistério da permanência.

 

 

 

 

 

 

Acalento

 

 

Quando chove

tomo as mãos do encantamento

para o coração brincar

e o corpo se aquecer

de cobertores e café

patchouli e contos

estampando estrelas columbinas

no meu teto de sonhar.

 

 

 

 

 

 

Partência

 

 

Amanheci

a alma avessa.

 

O peito aberto

o corte

o coração latejando

tum-tum, tum-tum, tum-tum

Escuto.

 

 

Na pele branca o sangue

o corte

contraste do sangue na pele branca

contraste do corte na maciez

contraste da pele no corte.

 

O nó

sinto

o nó

no coração latejando

Tum-tum, tum-tum, tum-tum

 

Estou extremamente viva

nesta manhã que te parti.

Pétala de rosa vermelha

solta na brisa ligeira

 

Ainda chove

rocío gozo

na pétala intensa

que voa.

 

 

 

 

 

 

As férias de Marina

 

 

Conchas

da praia.

No bule pintado

flor esmaltada.

Na branca roupa

bordado

artesã.

 

Azul

no mar

terraço.

Sol

carambolas

melaço.

 

Das conchas

magia.

Do bule beleza.

Da roupa bordada

caramanchão.

Porcelana da China

pequena dragão dourado

meia lua

toda frágil.

 

Na rede

olho jabuticabas

melenas, cachos

pezinhos no chão.

 

Os limoeiros espreitam das janelas

pitangueiras de soslaio

flores de jambo roseam o chão.

 

As portas abertas ao calor...

Na mandarina Marina brisas.

Em mim purpurina e comoção.

 

 

 

 

 

 

Fecho

 

 

Nas ruas da minha infância

os paralelepípedos ainda guardam meus passos

que úmidos se acinzentam na chuva

nos invernos que boiam na luz de mercúrio

da minha memória.

 

A madrugada ainda detém os meus olhos inquietos

janelas abertas para o sonho desperto.

 

"... Há uma esperança de bonde em todos os postes..."1

 

 

1Rubem Braga [em "Como se fora um coração postiço"]

 

 

 

 

[imagens ©henry darger]

 
 
 
 
 
 
 
Cris Barbosa (Cristiane de Jesus Barbosa). Do Recôncavo da Bahia, terra do tabaco, da laranja e de muitos outros perfumes. Agrônoma, pesquisadora, escreve desde os 11 anos. Foi iniciada na poesia e outras lavras pelos artistas da Casa da Cultura Galeno D'Avelírio, em Cruz das Almas, nos muitos saraus e "Papos no Pátio". Publica desde 1991 na Revista Reflexos do Universo. Em 2007, teve o poema "De cotidianas coisas" premiado pela Academia de Letras do Recôncavo da Bahia. Vive em Salvador, num bairro que descansa entre as amendoeiras e o mar.