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Geraldo Galvão Ferraz, o Kiko, falecido sexta-feira passada em São Sebastião, aos 71 anos, pertenceu a uma tradição jornalística sempre ameaçada de extinção. Era o repórter, o redator, o editor, o crítico de formação sólida, conhecedor de diversos idiomas e que se colocava na vida como um trabalhador intelectual, com tudo o que isso implica. Apaixonado por literatura, ele se tornou um tradutor brilhante — sem apelar para teorias de bolso que transformam a tradução em mistificação — da poesia e prosa castelhana, francesa, inglesa, italiana. Sem pose, sem arrogância, navegava com desembaraço pelo pop e o erudito. Sério, mas sem perder o humor no trato das coisas. Pelo entusiasmo na execução das tarefas e no convívio, levado por uma inteligência aguda, irreverente e bem humorada, mantendo um distanciamento esperto de antigo sábio chinês, devia se divertir com tudo isso — aí talvez esteja o segredo de seu sucesso profissional e humano.

Ele começou sua carreira nos anos 1960, na Tribuna de Santos, como tradutor de autores do naipe de Paul Valéry e André Breton, e divulgando jovens escritores brasileiros, como lembra sua ex-mulher Leda Rita Cintra. Depois passou a trabalhar no Jornal da Tarde, dando prosseguimento ao trabalho iniciado na Baixada. Um de seus principais focos era a literatura produzida no país e suas novidades. Atentou para Raduan Nassar, Charles Kieffer, Orides Fontella e Ana Cristina César, na função editor de cultura daquela histórica publicação do Grupo Estado e em outras publicações. Passou por vários jornais e revistas, como a Playboy, Folha da Tarde, Istoé, Cláudia, Estadinho, Caderno 2 e revista Cult. Foi jurado de diversos concursos literários e em 2003 acabou se transferindo para Nova York, como crítico de cinema.

Era tão versátil quando livre em sua atuação jornalística e literária, o que refletia a formação num ambiente familiar impregnado de cultura em suas diversas modalidades. Filho do romancista e jornalista Geraldo Ferraz (Doramundo), e da também escritora Patrícia Galvão, Pagu, ele se revelaria um jornalista para quem a atividade profissional é uma expansão óbvia de sua personalidade. Era movido pela curiosidade intelectual sobretudo, sem se preocupar com modismos e tendências de momento. Se teve inimigos foi certamente por causa do seu talento.

Lia e curtia de Agatha Christie a William Faulkner e Stephen King, sem nenhum tipo de afetação e sem pretender impor suas idiossincrasias aos leitores. Navegava pelo pop e pela chamada alta literatura sem maiores problemas. Simenon e Asimov, Neruda e ficção científica, que conhecia muito bem. Era também notável seu interesse e conhecimento em matéria de quadrinhos. Nessa última área foi editor do Grilo, nos anos 1980, onde publicou Robert Crumb, Guido Crepax, Wolinsky, Hugo Pratt e Phillipe Druillet, mais Will Eisner, o gênio do Spirit. Se isso é o que se chama inquietação intelectual, acrescente-se que, como tradutor, verteu para o português de Stephen King a Dee Brown, autor de Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, a respeito do extermínio de índios nos Estados Unidos, o que lhe valeu um Prêmio Jabuti.

Ex-colega de redação e amiga, Terciane Alves fala do Kiko da seguinte maneira: "Kiko repudiava o egocentrismo profissional, era generoso com os mais jovens focas. Como raros poderiam ser. Tinha asco de eventos sociais. Gostava mesmo é de sentar à mesa com estagiários e falar de receitas culinárias, acepipes, como dizia. Kiko amava a juventude, se refazia nela." E se atualizava com o mesmo entusiasmo que lia, via filmes e ouvia músicas (também gostava de jogos de botão, preparar sanduíches, tomar vinho e tocar bongô nos momentos de descontração). Terciane observa que "nos anos 2000, com mais de 60 anos, ele foi trabalhar com Internet, ficou fascinado por ICQ, com programas de edição on-line. E foi editor do portal O Site na fase da bolha da internet."

Além disso dedicou-se a pesquisar a obra de sua mãe, chegando a descobrir que ela também tinha sido King Sheldon, pseudônimo adotado para assinar histórias policiais. Junto com Maria Lúcia Teixeira Furlani, publicou a fotobiografia Viva Pagu — foi a última vez que seu nome apareceu num volume impresso. Junto com Furlani, mantinha o site Pagu. Além de Leda, Geraldo Galvão Ferraz deixa os filhos Alexandre e Antônio Eduardo. Com o agravamento do diabetes, ele passou os últimos meses de vida em São Sebastião, no litoral paulista, onde faleceu e foi sepultado. No próximo dia 16, sábado, será celebrada uma missa em sua homenagem na Igreja São Gabriel (Avenida São Gabriel, 108, no Itaim, em São Paulo), às 17 horas.

     

 

 

[ Publicado originalmente no jornal O Estado de S.Paulo | Caderno 2, em 12/02/2013 ]

 

 

 

  

abril, 2013