O ESCRITOR

 

Eu disse: "sou tonto e preguiçoso. Igual a uma mula!"

Alguém perguntou: "o que ele disse?"

Disseram: "ele disse: mula".

Entenderam: "ele dissimula".

Perguntaram-me: "você dissimula?".

"Sim, isso mesmo", respondi.

Então me deram este emprego de poeta.

 

 

 

 

O HOMEM QUE VIA EM PRETO E BRANCO

 

O homem que via em preto e branco após uma cirurgia passou a ver em azul, vermelho e verde. Nenhuma das inúmeras cirurgias que fizera chegou tão perto do ideal. Resignou-se e estudou a química das cores. Sabia o resultado da mistura de todas as cores, na proporção e combinação que fosse. Imaginava-as. Tornou-se um gênio no trabalho com as cores. Todos admiravam a altíssima perícia dele que vendo apenas as cores primárias criou várias tonalidades até então desconhecidas. Modesto, dizia "Ora, gente, Beethoven era surdo…

 

 

 

 

OS PIOLHOS

 

Durante muitas gerações uma família de piolhos vivia na barba de um velho, viam poucos outros insetos e ansiavam pelo progresso da região. De vez em quando aparecia uma ou outra pulga com notícias de alhures mas era tudo. Um dia o velho morreu, o progresso chegou e o lar foi invadido por insetos próprio dos mortos. Primeiro vieram os mosquitos, depois as moscas, as baratas, umas formigas e alguns vermes, porém acabou o sangue fresco para alimento dos piolhos. Pegaram carona em uma barata, depois em uma mosca e se mudaram para a cabeça de um menino onde esperam começar novas vidas. Não reclamam mais da solidão mas sentem saudades da barba do velho.

 

 

 

 

O VÍRUS

 

Na aldeia dos índios tapuias, o indiozinho saiu da rede e foi correndo queixar-se ao cacique de um vírus que tinha pego. O cacique disse-lhe, "Curumim, esse negócio de vírus é com o pajé, vá até ele". O indiozinho foi com o caso do vírus ao pajé que reuniu os anciãos da tribo, fizeram a dança da chuva e o kuarup, regado a cauim, invocaram Tupã e passaram ao indiozinho a fórmula para debelar o vírus. Disse-lhe o pajé: "curumim deve acessar o site dábliu dábliu dábliu ponto norton ponto com e faz o download do antivírus mas tem que ser no máximo até amanhã que é o último dia em que o programa zipado estará como freeware".

 

Tratava-se de um vírus que atacara seu laptop quando o indiozinho estava balançando na rede e navegando na internet. Não conseguindo acesso ao antivírus a tempo, o indiozinho o comprou de um pirata que aportara no litoral perto de sua taba e mais tarde com mais três naus lotadas de outros piratas dizimou a tribo e vendeu a aldeia à Microsoft que fez ali um sítio com um enorme portal.

 

 

 

 

A CRÔNICA ANACRÔNICA

 

Vinha eu de onde ia e lá chegando encontrei quem ia comigo. Nos olhamos e falamos o que tínhamos dito e nada entendemos, por isto tivemos que repetir até o outro esquecer tudo. Satisfeitos, nada dissemos, pois agradecidos que estávamos, nos entendemos perfeitamente. Dali partimos à procura um do outro. Ninguém nos disse onde estávamos mas desconfiávamos que era ali mesmo onde nos encontrávamos. Seu silêncio me ensurdecia e o meu lhe espantava em todo o caminho. Lá chegando, me lembrei que estava lá, de onde tinha saído. Então indiquei para outro onde deveria acharia e segui meu caminho. Nunca mais nos vimos.

 

 

 

 

O TAL DO TAO

 

Um dia saiu ao sol e se deu conta da própria sombra. Imaginou tratar-se de um amigo. Não a associou nem ao sol nem a si, mas as suas andanças por aqueles caminhos. De noite, o sol se foi, levando seu amigo. No outro dia, eis o amigo outra vez. Era um grande sujeito, ia com ele a todos os lugares, respondia a seus acenos, mas nada dizia. De tardinha, sentava-se cansado, virava-se para comentar algo e o amigo sumira. Mal dormia amedrontado com a possibilidade de que o amigo não voltasse. Mas no outro dia lá estava o amigo, às vezes a seu lado, noutras a sua frente, atrás, do outro lado mas sempre por perto gesticulando muito, como ele, mas nada dizia, só ouvia. Era o amigo perfeito. Quando o sol se punha, dizia "adeus meu amigo", e ia dormir.

 

 

 

 

O NARCISISTA DECIDIDO

 

Acordou um dia resolvido a um ato radical, mataria todos aqueles a quem ele amava. Fez uma lista dos nomes por ordem de adoração, como era o primeiro da lista, começou suicidando-se. Deixou mulher e três filhos.

 

 

 

 

O ATOR SINCERO

 

Ele dizia "bom dia, o caralho!", "vá a merda!", "detestei a piada!", "larga de ser burro!", "presta atenção, jumenta!", "como você é feia, minha filha!", "fala mais baixo, seu mal educado!". Ninguém gostava dele. Era sincero demais, mal educado de tão sincero. Era tão sincero que todas as suas frases terminavam com um ponto de exclamação. Dizia "basta fingir em minha profissão, não vou ser ator na vida também nem que me matem!".

! ! ! ! (isto era ele respirando).

 

 

 

 

A EXECUÇÃO

 

Um compositor foi traído pela mulher no dia em que acabara de compor uma peça para piano. Resolveu, então, contratar ao mesmo tempo o assassino de aluguel para executar a mulher e o pianista para executar sua sonata. Equivocadamente, mandou os envelopes trocados. O pianista recebeu o retrato da vítima e o assassino recebeu vinte páginas de partituras, ambos com o bilhete: "Execute-a!". Não obstante o engano, os dois, assassino e pianista fizeram um dueto memorável.

 

 

 

 

A HISTÓRIA DA SONATA

 

Piando de tanto medo, a sonata chora. Lembra-se do tempo em que, com apenas alguns compassos, era ainda pequena. E recorda como tudo se orquestrou. Da capo, se lembra de cada acidente, contraponto, contratempo, interlúdios e consonâncias. Seu prelúdio foi prestíssimo, muito breve, mas era um allegro só. Então os compassos se tornaram compostos e, sabe como é, o tempo voa e não tem concerto (sic). Passaram-se os cravos, cornes, espinetas e a cada escala, harmonicamente, a sonata, cheia de cromatismos e intervalos, vivia uma fantasiagiocosa. Levava a vida na flauta, como se diz. Mas em três tempos mudou o ritmo, o tom, as variações e a tessitura. A tônica hoje é outra e os tons vizinhos estão a bocca chiusa. Realidade tosca, trágica, um uníssono troppo triste. Já lhe propuseram uma fuga, mas a sonata recusou, apesar do medo e do choro perene. Está um pouco confusa. Não só com fusa, está também com semicolcheias, semínima e semibreve. Em sua mente giram os pensamentos seriais, dodecafônicos, de um réquiem. Uma marcha fúnebre lhe toca a alma. A sonata tem medo, mas nada poderá fazer. É chegado o dia. Amanhã será executada.

 

 

 
 
 
 

O INIMIGO TRAIDOR

 

"O inimigo não trai nunca". – Nelson Rodrigues

 

 

Costumava fazer um favor oculto aos inimigos. Vigiava-lhes a casa contra algum gatuno, mandava-lhes flor nos aniversários, até limpava o jardim quando viajavam. Chegava a ponto de fazer empréstimo no banco ao saber que um inimigo passava por dificuldade financeira. Uma vez, colocou na caixa do correio um envelope cheio de notas de 100. Sentia-se o maior dos inimigos, aquele que trai até a inimizade, sendo amigo dos inimigos de vez em quando.

 

 

 

 

O ASCETA MORRE

 

O asceta morre de velho aos 40 anos de idade com o corpo corroído pela fome do jejum diário. Chega ao céu e recusa várias das recompensas pela vida de sacrifícios. Tanto se acostumara com aquela vida, que qualquer banquete lhe era doloroso. "Jamais pensei que o céu fosse um lugar onde o vício fosse a recompensa por nossas virtudes", pensava o santo.

 

 

 

 

CONSIDERAÇÃO

 

"Considere-se morto", foi o aviso que lhe deram. "Ok", ele respondeu e pensou consigo mesmo "considero-me morto". Em casa, disse à mulher e aos filhos, "considerem-me morto". A mulher vestiu luto e os filhos choraram. Uma semana depois, ele viu nos jornais que homem que o ameaçara estava morto. Ele pensou "será que devo ainda me considerar morto?" Depois da morte do ameaçador que lhe instruíra que se considerasse morte, ele passou a se considerar um pouco vivo. Acostumado, porém que já estava de se considerar morto, se sentia um morto-vivo, um zumbi esperando alguém que o autorizasse a se considerar vivo.

 

 

 

 

O CEGO

 

Cego, lia em braile. Era viciado em leitura, dependente mesmo. Um dia descobriu que não era cego (eram as luzes que estavam apagadas). Aí, então, não quis mais perder tempo aprendendo ler com os olhos e continuou sua leitura diuturna em braile mesmo. Porém, agora, ele via as letras que acariciava enquanto lia com as mãos. Logo em seguida, já não precisava das mãos para ler em braile. Era cego para as letras do alfabeto comum, mas lia em braile com os olhos. Lia, lia compulsivamente, como sempre lera. Em braile. Com os olhos.

 

 

 

 

O CONDENADO

 

O condenado à morte já nem ficou tão triste com a notícia da morte de sua mãe. Depois que chegara àquela prisão, se passara cinco anos e já morreram seu pai, um primo e seus dois irmãos. Uns de assalto, outros de acidente de carro e agora a mãe de erro médico. Só ele, ali são e salvo envolto em procrastinações jurídicas, apelações etc. Todo os seus morriam, todos, menos ele, o único marcado para morrer.

 

 

 

 

MÁQUINA DO TEMPO

 

O fabricante de máquina do tempo acabou de receber umas encomendas. Todas para ontem. E já entregou, pois um fabricante de máquinas do tempo nunca atrasa suas encomendas. Aliás, desde que se inventou tal engenho, a metáfora para toda inabilidade é "ser fabricante de máquina do tempo e atrasar a entrega". O cliente chega e diz: "seu Tonico, eu quero uma máquina do tempo para ontem, pode ser?". O velhinho, ajeita os óculos e responde com cara cética: "uai, Zé, sua memória tá ruim, hein? Eu já lhe entreguei, sô!" O cliente dá um tabefe na própria cabeça para ver se com a sacudida, a mente se atualiza e toma consciência do passado e do presente modificado graças a sua ida ali pedir a fabricação da máquina e recorda que realmente, a máquina tinha sido entregue no dia anterior. E seu Tonico acrescenta: "agora, só falta me pagar, seu desmemoriado ou não fabrico mais máquina nenhuma procê". Ninguém dá calote em um fabricante de máquina do tempo, pois ele pode voltar ao ontem ou deixar de ir ao depois de amanhã e não entregar a encomenda. Certa vez, um cliente pediu uma máquina e seu Tonico respondeu de pronto: "faço nada, cê num vai me pagar, sai daqui seu caloteiro". "Mas seu Tonico, é a primeira vez que venho pedir seu serviço". "É a primeira vez mesmo, você vai me pedir uma pro mês passado, eu vou fazer, e sei que fiz porque já entreguei no mês passado e até hoje ocê tá me devendo, seu vagabundo, sai de minha oficina, fiquei no prejuízo, seu safado, só me apareça aqui com dinheiro…". Desde então, seu Tonico só faz máquina para entregar no passado se o pagamento for feito no momento do pedido. Antes, ele fazia para receber o pagamento na entrega, mas viu que quando a encomenda era para o passado, isso não funcionava bem. Porém, para entregar no futuro, ele cobra a metade no ato da compra e divide em até três vezes e quando o cliente pergunta como anda a fabricação da encomenda que será entregue no futuro, Tonico responde: "acabei de entregar procê, voltei do ano que vem indagorinha".

 

 

 

 

A SEREIA

 

A sereia se mudou para o sertão. Ela sabe que aquilo ali será mar em breve (lera isso no livro de Euclides da Cunha). A vida no sertão é árida, mais do que sereias suportariam. Mesmo assim, dizem, a sereia já encantou três sertanejos. As mulheres estão preocupadas: com a sereia que chegou e com o mar que chegará. A sereia passa fome no sertão. Pensava ela que poderia viver de dar aulas de natação. "Não me admira que estas pessoas passem fome, ninguém quer aprender a nadar. Quando vier o mar, sentirão falta de saber nadar". A sereia sofria como sofrem os profetas que vivem não a vida que têm, mas as profecias que adivinham. Ensinava para as crianças o que era água. Descrevia o mar. Dizia-lhes: "mar é o que eu choro". E dava suas lágrimas para que os meninos provassem. Ela, que tinha ensinado a nadar tantos peixinhos… Lembra-se da escola que tinha no fundo do mar. Os peixinhos nasciam e iam pra lá. Ainda nem sabiam nadar e saiam cantando, "quem me ensinou a nadar foi a sereia do mar". Orgulhosa, a grande professora que vivera de nado, agora nada. Nada de nados. Um dia foi à missa, pois ouviu falar de água-benta. Onde ouvia falar de água, ela ia. "Cadê a água benta?" Não havia, ela tinha que aguardar, pois a água (sempre) não dava para nada. Aguardar água que não dá, água(r)dá. "Sem água ninguém aguenta, dá-me um pouco de água-benta, para a vida dessa gente". "Dá-me um pouco de aguardente", os homens diziam atrás, completando a rima e profanando o canto da romaria. Na Igreja descobriu velhos conhecidos, "Santa Bárbara? Conheço demais, ela acalma as tempestades" e Maria? "Ah, é a minha rainha, ela é a dona do mar e é mãe do filho do Criador, adorei essa religião". E ficou por ali, como todos, naquele lugar sem nenhuma ordem e nenhum progresso. A sereia era um dentre os sertanejos que esperavam o mar. Conversava com o vento. Chamava aquele vento de "vento de refrescar", pois os ventos do mar são "ventos de levar". Sempre pedia: "quando eu morrer, me joguem no mar". Cantava: "eu não sou daqui, eu não tenho amor", mas assumia que agora, era sertaneja até embaixo d'água. E sorria.

 

 

 

 

BIOGRAFIA

 

Quando nasceu, o médico deu a palmada em seu bumbum e recebeu um cruzado de direita e um chute no olho. Dois enfermeiros apartaram a briga, expulsaram o médico da sala e o jogaram nos braços da mãe em quem ele mamou nos dois peitos depois deu um demorado beijo na boca. Na escola, exigia direito de resposta da professora e depois da mestra falar, dava aulas aos colegas sobre sua experiência de vida e aventuras no quintal do apartamento onde moravam com oito irmãos, pais e avós. Graduou-se em grades, seu mestrado foi sobre teses de doutorado, doutorando-se em bacharelado. Quando era rapaz namorou uma moça e quando já era homem casou-se com uma mulher. Não criou filho porque o mercado não era favorável, mas cultivou livros e escreveu muitas árvores. Viveu como nasceu, morreu como viveu. Prometeu reviver no terceiro dia e só não ressuscitou porque foi cremado. Suas histórias tornaram-se lendas contadas por mudos aos cegos que encontravam, para desespero dos surdos que não entendem trocadilhos e chistes, pois a língua de sinais é bastante limitada, como, aliás, toda língua.

 

 

 

 

ÉBRIO

 

Eu, ébrio de paixão, passo ileso pelos bafômetros e vou ziguezagueando perigosamente, atropelando pedestres cachaceiros mais sóbrios do que eu, porém, interditados de dirigir automóvel. E perigosamente sigo, torcendo para que não inventem o passiômetro.

 

 

 

 

ORGULHO E PRECONCEITO

 

Um paulista (desculpe, um cidadão nascido no estado do São Paulo) morador de Teresina, no Piauí, entrou na justiça contra seu chefe, gerente do supermercado em que ele trabalha, por assédio moral. O fato é que o chefe vivia chamando o empregado de "paulista" e ele se sentiu ofendido. Perante o juiz, o empregado reclamou que não só ele, mas vários empregados oriundos do Sudeste são freqüentemente tratados pelo seu gentílico, o que causa muito constrangimento. O juiz perguntou onde ele nascera e o empregado disse que tinha nascido em São Paulo. O juiz disse que então ele era paulista mesmo e perguntou então porque ficara constrangido e ofendido e ele respondeu ao juiz que o gerente não o chamara de paulista e sim de "paulista", entre aspas. O problema todo era as aspas, elas desciam como martelo em sua cabeça. "Que aspas?", quis saber o juiz. "Ora, Doutor, as aspas, o senhor sabe o que estou dizendo". O juiz disse que não sabia não e que nunca vira aspas saindo da boca de ninguém e principalmente batendo como martelo em sua cabeça. "O senhor nunca viu aspas batendo em sua cabeça como martelo porque o senhor é nordestino", disse o paulista com um sotaque irritante aos ouvidos do juiz, sugerindo que o juiz nunca sentira o peso de uma aspa no seu cocuruto, pois, sendo nordestino que nascera e crescera no Piauí, jamais sofrera as dores do paulista que sobe para ganhar a vida no nordeste maravilha. "Sou o quê?", perguntou o juiz. "Nordestino", disse o paulista. O rosto do juiz esquentou e invadiu-lhe a ira. Pela primeira vez, ele sentira aspas batendo em sua cabeça como martelo. Então, o juiz processou o paulista por preconceito.

 

 

 

 

O NÃO-LEITOR

 

Colecionava livros que não leria. Buscava autores que não se deve ler. Não podia descobrir um autor ilegível, irrelevante, bobo, sem sentido ou meramente ruim que anotava e adquiria toda a obra. Tinha uma grande biblioteca de autores assim, com livros que comprara mesmo para não ler. Feliz, contemplava sua coleção e se regozijava pelo tempo que não perderia lendo tudo aquilo.

 

 

 

 

 

[imagens ©lydia]

 

 

César Miranda. Nasceu no Tocantins em 1967 e foi para o Pará, depois para Goiânia, de onde foi para Brasília. Escritor desde que se alfabetizou, abriu um blogue para publicar o que sempre escrevera. Formado em Direito, com especialização em MPB, Millôr e Monterroso, escreve no blog Pró Tensão [http://protensao.wordpress.com], graças ao qual participou do livro Wunderblogs.com (Barracuda, 2004), com uma seleção dos textos dos blogues do portal de mesmo nome. Participou também com cinco contos da coletânea de contistas brasilienses Todas as Gerações.
 
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