O MAIOR AFUNDAMENTO DO ESPELHO

 

 

I

 

Há uma casa a segurar janelas necessárias às crianças, saem com pulmões cheios de leite, crescimento, o leite aberto em voz de sangue, como se a vida viesse carregando fogo e as mães desoladas se perdessem e ouvissem a voz das crianças alteradas.

Há roupas separadas enchendo o quarto de sombras. É o que renova o choro, as mãos que sabem tapar o choro da boca sem que o medo se perca.

Tudo o que as mães têm mais perto entra no frio, é tocado pela cal, precisa de todo o tempo em noite porque os corpos estão molhados, têm os sonhos guardados por líquidos. O som da noite é o fabrico do pão.  

Os pais ganham todo o calor apertando o vinho nos lábios, saem de casa em sangue, deixam as roupas manchadas no abuso da pele se despir e mostrar roupas de pedra. Quem é que vai usar as armas secas pelo verão?

A solidão das crianças terá lágrimas, o peso de balas, cinza, cores leves em pó, palavras abandonadas nos dedos e no amor. As roupas vão ser usadas por cima de outras roupas, por cima de toda a água imersa na casa. As crianças querem agora as mães acendidas pelos pais, e nos pais, o único toque possível em cada corpo já raso nos buracos.

 

 

II

 

Quem acompanha os filhos encarnando com eles as mãos, uma poderosa mudança, lembra-se do aparecimento da cor dos combates, a medicina que era fraqueza carregando grandes animais, visões com uma boca. O primeiro inverno é sempre alto e está por cima da comida. No meio das casas?    

Se as mães são tocadas por balas, caímos no passado, o brilho das feridas aparece noutros corpos, uma canção nebulosa que dá veneno ou então a parte mais escura de palavras que falam do texto como as ouço falar da água de violentas explosões. Foi essa luz a trair os passos.

O rio estava perdido.

 

 

III

 

Uma quantidade de água impressionante decompunha-se em cada quarto. Havia uma canção nos vivos procurando fogo dentro de fogo e a água não o apagava por baixo. Após o canto no quarto do mal, quantas crianças traziam da vida a mãe intacta? 

 

 

 

 

TÁBUAS

 

Nada perdura do mergulho no mar onde só variam a altura das ondas, o negro da cor e

a madeira com uma mão que lhe dá nojo. Como abalam

os barcos desviados que se

construíram em terra mole, muito perto dos homens que faziam um sono sob a protecção da besta.

O barco é uma pulsação e

uma pergunta inacessível, faz-se por medo quando

passa pela madeira uma onda, e qualquer que seja a curva que lhe dês puxando o barroco para trás,

o gozo com macho e fêmea numa só parte.

A história quer cantos

no historiador, a protecção do mundo numa fúria onde nascerá o excesso do herói, e os símbolos na sede de que se queixa

o coro. Depois, há a voz de

matar e esfolar animais que tinham desaparecido em cortes para verem o sangue mais rápido,  

a terra onde cai a experiência da guerra.

A beleza da cabeça tem o desenho de toda a água, oferece um dos fundos mais transparentes; não são

os livros pensados na luz, é cada sonho escondido do mal do mundo onde fica o talento calado.

De todos os homens vinha a imaginação arrancada à demência e das bocas as mulheres só em corpo, sem ruído,

nunca deixando o fundo do mar. 

 

 

 

 

AS ÚLTIMAS PAREDES

 

Deitavam os corpos às costas, na minha boca,

e nesse tempo

a cabeça deles não podia crescer mais.

Satã olhava com aversão. As armas nunca eram usadas até ao fim.

 

 

[Poemas inéditos]

 

 

 

 

 

 

 

[imagem ©roujo]

 

 

 

 

António Madureira Rodrigues (1977, Braga, Portugal). Licenciou-se em Filosofia na Universidade Católica Portuguesa. Publicou A potência no meio dos nós (Quasi Edições, 2009). A obra recebeu a menção honrosa do prêmio Daniel Faria do mesmo ano. Integrou a antologia Resumo: a poesia em 2009 (Assírio & Alvim/Fnac, 2009).