Jardim do Éden

 

 

uma maçã montanhosa de lágrimas

sobre ela coloco os remos à combustão

na perspectiva e na sintaxe de inscrever

os pontos de fuga

no interior do desejo

descongelo a saudade

e a  olho nu

assino (n)as paredes do horizonte

com as cores do pecado.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

o sono é complexo como uma floresta

ofusca o sol que floresce nas escadas das palavras escuras

voa com as asas estranguladas pela insónia

assim chega-se ao amanhecer

pelo caminho errado

onde macacos baloiçam as suas alegrias secas

nos ramos do cansaço nocturno

 

 

 

 

 

 

*

 

 

é urgente inventar novas cores

para a cegueira

é urgente destruir a alma do gato colada

nas janelas da solidão

há no universo engolido

o vermelho aroma da fome externa

do leão

                                                     (em plena cavalgada infernal)

a anunciar a morte tatuada nos olhos

que se abrem fechados

na gaiola dos dias enterrados pelo tempo.

 

 

 

 

 

 

*

 

 

na embarcação queimada

esqueci o martelo

jamais me lembrei com exactidão

o tamanho das covas

que perfurei no mar

pois a vela que nos incendiou

foi apagada pelo vento

 

 

 

 

 

 

*

 

 

Havia um cão

dentro do avião

dentro da alma do cão

roncava um avião

vrummmmmmmm

vãoooooooooooo

 

 

 

 

 

 

Carlos Drummond de Andrade

 

 

coloquei inúmeras pedras

no caminho

para esquivar do amor

sentei à beira do rio

sem o anzol

com os olhos pesquei toda a dor

escondida no corpo das pedras

 

 

 

 

 

 

João Cabral de Mello Neto

 

 

As lâminas arrastam o canavial

para consumação do desespero marítimo

em Pernambuco

o silêncio ergue

uma catedral de lembranças

 

 

 

 

 

 

*

 

 

dada as exigências da noite,

crio mamíferos sonolentos,

mas a minha formação é outra

— doutorado em perder sono

 

 

 

 

 

 

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tenho uma quinta,

penso em plantar sonhos às vezes saudades.

logo desisto

porque sei que me faltaram insumos.

 

 

 

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a minha mãe ensinou-me a esperar,

é por isso que me encontro

na estação à espera dos frutos do orvalho.

 

 

 

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contei tudo sobre mim a uma desconhecida e ela contou-me tudo sobre ela antes de ter me conhecido

 

 

 

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sonhei a erguer um rio. num espaço que outrora foi salina.

 

 

 

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não perguntes sobre o amanhã, porque a resposta virá com o raiar do sol.

 

 

 

 

 

 

no ninho das gaivotas escondo os sonhos

 

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ontem tirei fotos e revelei no espelho do esquecimento

 

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a voz é uma pedra atirada ao ar e não se sabe exactamente onde irá cair

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tenho um estojo de sono antes de dormir tiro o compasso de espera

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quis criar barba e cedo descobri o quanto me custaria caro alimentar cabritos

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na minha casa tem muitas flores que ao anoitecer trazem me perfumes da dor

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deixei de sonhar para acordar as larvas da minha insónia

 

 

 

[Do livro inédito A Metamorfose da Sinfonia Amarga e Outras Viagens Incendiadas]

  

 

 

[imagem  ©david orias]

 

 

 

 

 

 

Amosse Mucavele nasceu em 1987, em Maputo, onde vive. Poeta, ensaísta, antologista, tradutor, cronista. É diretor do projeto de divulgação literária "Esculpindo a Palavra com a Língua", diretor da Revista Literatas (Revista de Literatura Moçambicana e Lusófona), membro do conselho editorial da Revista Mallarmagens (Brasil) e Revista Eisfluencias (Portugal), colaborador do Pavilhão Literário Singrando Horizontes (Academia de Letras do Paraná), Jornal Coruja, Revista Triplov e outras. Organizou a Antologia da Nova Poesia Moçambicana para a Revista Zunái. Membro da Academia de Letras de Teófilo Otoni/MG, membro da International Writer Association (IWA-Ohio-USA), possui textos publicados em diversos jornais. Organizou e publicou a antologia dos poetas da língua portuguesa A Arqueologia da Palavra e a Anatomia da Língua.