O dicionário Aurélio traz as seguintes definições para o adjetivo "independente": 1. Que está livre de qualquer dependência ou sujeição; 2. Que é ou se tornou livre de qualquer laço ou compromisso afetivo, social, moral, etc. Que é senhor das próprias decisões; 3. Que se caracteriza pela autonomia, pelo desassombro; que rejeita a sujeição; É dessa maneira, totalmente "descolada" de rótulos e desprendida de classificações, que se deve ouvir o CD A Prosaica Onipresença da Criatura, da banda paulistana Katarse. Torna-se difícil, para o ouvinte de primeira mão, tentar classificar o tipo de música que a banda faz, pois existe ali um ar de estranheza que se propaga junto com o som de suas músicas.

 

Estranho é tudo no universo da Katarse.  A começar pelo próprio título do seu mais recente trabalho: A Prosaica Onipresença da Criatura. Ciente de tal reação, a banda se encarrega de diluir tal desconforto e prepara o ouvinte, no encarte do CD, oferecendo, de cara, definições lexicográficas  para "prosaico", "onipresença", "criatura" , "catarse" e "Katarse" (sim, com "k", definida simplesmente como "a banda formada por T. Greguol & Mário Amore"). E começa aí a brincadeira que os meninos da banda propõem num movimento de "faz que vai, mas não vai", que não se prende apenas ao som dançante que produzem: eles definem o que não é para ser definido; dicionarizam o que não está no dicionário.

 

O nome da banda, Katarse, remete a "catarse", definida no encarte como "purificação, evacuação; na Antiguidade, cerimônias religiosas de purificação; em Aristóteles, purgação das paixões por meio da arte, que lhes permite expandir-se em objetos fictícios; psicologia terapêutica psicanalítica que pretende o desaparecimento de sintomas pelas exteriorizações verbais, dramáticas, emocionais de traumatismos recalcados; (do grego kátharsis)". É, portanto, inevitável concluir que o som da banda é profilático, sugerindo algo como:"ouça o CD e fique livre de doenças". A música é, sem dúvida, capaz de modificar (para melhor ou para pior) nosso humor, e não é diferente aqui. O que é irônico (e não está definido no encarte, mas está silenciosamente sugerido) é que o nome Katarse também pode ser lido informalmente  como "catar-se", ou seja, a banda é um aspirador de pó que suga (ou "cata") todas as influências que se aproximam de seu centro gravitacional. Musicalmente, as influências óbvias são Arnaldo Antunes e André Abujamra (que participou de outro CD da banda, o não menos estranho "A Obtusa Simplicidade do Ser"). Estes dois artistas já são, por si sós, um amálgama de tantas outras influências, amplificando o "catadão" em cuja fonte a Katarse bebe. As músicas são precedidas por epígrafes ecléticas, que deslizam por Nietzsche, Napoleão, Leonardo da Vinci e Paracelsus, entre outros. Este caleidoscópio de citações mostra que a banda está antenada e não se prende a uma estética; é múltipla em sua expressão.

 

O som que fazem vem de instrumentos convencionais, como violão, baixo, guitarra, gaita e acordeom. Mas as criaturas e os criadores do Katarse fazem uma música também prosaica, no sentido de "sem elevação", definido no encarte do CD. Portanto, ali também se ouvem instrumentos menos nobres, como lata de panetone, "lata de sabonete caro" e caixa de fósforos, entre outras preciosidades.

 

O líder da banda, Térsio Greguol, ou simplesmente T. Greguol, é tão multimídia como a banda. Além de professor em uma escola internacional em São Paulo, ele é também poeta,  músico e compositor. A literatura acompanha o trabalho da banda desde seus primeiros trabalhos. T. Greguol escreveu o interessante livro de poesia Catarse (2002) e, como ele mesmo diz sobre os livros e discos que lançou: "Se Catarse era um livro que trazia um CD e Viver Mata era um livro/CD, 'A Monstruosa Panaceia de Bodistava' é um CD/livro". Portanto, é possível ouvir  A Prosaica Onipresença da Criatura, mas  também pode-se ler o encarte como se estivéssemos olhando para um livro de poesia. Arnaldo Antunes percorre caminho semelhante em sua carreira desde que deixou os Titãs.

 

As letras de A Prosaica Onipresença da Criatura são leves, mas os temas são pesados. O CD tenta se equilibrar entre a leveza de sua sonoridade melódica e a densidade das letras. O tema da morte percorre o CD todo e é sugerido nos títulos de faixas, como "Funeral", "ZZZ", "Saída", "Tortura nunca dantes catalogada" e " Contando dias contados". Porém, a morte, ao fim da vida ou no Apocalipse, é contraposta nesse CD à imagem da luta pela sobrevivência, da reação, em faixas com títulos como "Acorda", "O céu" ou até "Fênix", que é o próprio renascimento da morte. Portanto, se, por um lado, o ouvinte é convidado a hibernar, por outro ele é convidado a reagir. Inconscientemente o CD possui dois lados, A e B, como os antigos LPs de vinil. O embate entre a depressão e a euforia universaliza as canções de A Prosaica Onipresença da Criatura, que busca influências na filosofia, na literatura, na História, no cinema e na própria música.

 

Em uma definição ao estilo Reginaldo Rossi, na linha "brega-inteligente", a banda se autodefine com estas palavras: "Katarse não é nada, mas contém tudo". O CD tem a virtude de ser de fácil assimilação. E a ordem das músicas sugere que o embate temático das canções não tem fim, pois ao achar que terminou, o ouvinte recebe o convite para iniciar tudo novamente. É relevante (e revelante) ouvir o final da última (última?) canção deste CD: "Acorda, levanta e vai se lavar/Acorda, levanta e vai se usar/Acorda, levanta e vai se virar". Que tal virar o lado do disco agora?

 

 

 

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O CD: Katarse. A Prosaica Onipresença da Criatura. São Paulo: 2005.

Site da banda: www.katarse.com.br

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dezembro, 2013