Carícias de Pelúcia

 

 

O que um homem tem de mais valioso é o mesmo que pode conduzi-lo expressamente à ruína. Um metrô numa via de mão única rumo à merda absoluta. Uma passagem sem volta ao inferno.

Meu âmbito de trabalho sempre foi muito semelhante, um subemprego público. O motivo? Seu mecanismo simples:

 

  • alguma grana é necessária para sobreviver — nisso está incluso comprar comida de qualidade duvidosa, pagar o aluguel (com algum atraso na maioria das vezes), ir ao dentista de vez em quando (atrasando a total perda de dentes e protelando o dia que toda mulher dirá "não", ainda que esteja bêbada), pagar as contas do qual o supérfluo está excluído, pagar a bebida forte e barata que dá força para suportar o dia a dia e que permite que sorrisos se formem no meu rosto;
  • existem trabalhos que poucos estão dispostos a fazê-los — esses são a minha especialidade;
  • o critério de seleção é uma prova breve e ridícula — saber ler é uma das coisas que faço compulsivamente e com maestria;
  • exames psicológicos são pouco rigorosos — afinal, só loucos e desesperados se propõem a isso;
  • parcos exames médicos — posso pagá-los e não são exigidos testes que verificam o uso de substâncias proibidas pela lei.

 

Trabalho frequentemente bêbado. A cordialidade e o contato necessário com humanos me força a isso. É muito mais do que eu gostaria. É muito mais do que eu poderia suportar. Ainda assim é pouco, muito pouco e superficial. Me levanto trôpego do bar na esquina, próximo à rua de casas grandes, casas realmente grandes, em que devo trabalhar. Não sou especialista em psicologia (apesar de profundo admirador da terapia reichiana), mas estou certo de que aquele exagero arquitetônico anti-claustrofóbico se deve a processos psíquicos por conta das suas cacetas pequenas e mal-formadas.

Eu ando de casa em casa, apertando mãos de uma raça detestável e doente (humanos), fazendo perguntas superficiais e desnecessárias numa repetição tão enfadonha quanto os programas da Xuxa, que apesar de ser uma gostosa ex-atriz pornô, é capaz de levar qualquer homem de verdade ao suicídio através da sua irritante voz de gralha vazia e sem conteúdo. Essa é a atividade que consome o tempo que vendo da minha vida para pagar minhas dívidas.

Às vezes, tenho muita sorte. Uma pré-adolescente em roupas minúsculas abre a porta. Eu entro em sua casa e enquanto ela penetra em meu ser através do olhar fixo que mantenho nos seus lábios finos e rosados (não perco o foco em nenhum instante), ela pede que eu sente e me diz com olhos de anjo que está sozinha em casa. Minha calça se mexe sozinha. Meu tesouro dança no seu ritmo acelerado sua própria coreografia. Como eu disse, o que um homem tem de mais precioso é o mesmo que pode levá-lo expressamente à ruína.

Começo automaticamente a sequência de perguntas sem sentido que consiste na minha obrigação laborativa da vez. Excluí algumas perguntas desde o primeiro dia, quando quase fui espancado por um sujeito acéfalo, mas grande e forte o suficiente para assassinar por motivos fúteis um homem que exerce dignamente seu trabalho, como eu. Meu olhar escorre fluido pelo seu corpinho de menina e estagna nas suas coxas. São coxas esguias que serão preenchidas com carne em pouco tempo, coxas que causarão mortes, coxas que ensejarão deliciosos orgasmos, coxas que serão apertadas por mãos dos que estão ávidos por possuí-la, coxas que serão mais que perfeitas. Nesses instantes eu não conseguiria recordar-me de nada mais belo em todo nosso planeta.

A pesquisa que ela responde é uma das mais rápidas. Dura por volta de 15 minutos. Eu poderia fazer melhor nesse tempo, eu poderia fazê-la nunca esquecer-se de mim em menos tempo que isso, mesmo que o ideal fosse mais do que o dobro, mais que o triplo desse tempo, mas aprendi a trabalhar bem sob condições temporais ínfimas. Saio da sua casa empapado em suor. Deixaria lágrimas e outras secreções se fosse um pouco mais novo. A maturidade nos deixa menos impulsivos. Uma inconveniente proeminência na minha calça denuncia o que eu preferia manter em segredo para o mundo. De onde venho, os gritos de tarado oriundos de uma garota daquela idade poderiam ser o fim da linha para minha glande rosada.

Ultrapassei ileso essa experiência singular. Ambos incólumes. Atravesso a rua e me sento no banco de praça esperando que as coisas amenizem dentro e fora de mim. Pouco a pouco me recomponho, em breve, poderei adentrar nas casas vizinhas às já visitadas. Ao meu lado está sentado um homem de cabelos cor de prata, aparenta ser mais saudável que muitos, mesmo em sua idade provecta, mantêm um olhar de coruja sorrateira. Era um tarado velho, reconheceria em qualquer lugar aquele olhar inquisidor e perfurante que despia qualquer criatura feminina que alcançava. Senti umas das delicadas tiras de madeira que compunham o banco que dividíamos vibrarem crescentemente como num terremoto de algo grau na escala hitcher, fora uma flatulência poderosa que exalou um forte odor de podridão. O velho tinha suas próprias técnicas para afastar sujeitos indesejáveis.

Toco a campainha de mais uma casa. Aparentemente está vazia. As janelas estão abertas, insisto. Uma voz doce, tenra e melíflua atende o interfone. Estou tendo muita sorte, ainda não fui recebido por assassinos, travestis drogados nem fanáticos religiosos hoje. Ela me diz que está só. Minha determinação patriótica propõe que façamos a entrevista por ali. Sou um funcionário público a serviço do meu país, a eficiência é um objetivo a ser alcançado.

Entretanto, o portão automático se abre com um estalo seco logo após a terceira pergunta. Sou recepcionado por uma garotinha magra de pele trigueira. Ela tem no máximo 12 anos e é uma pequena deusa em miniatura. Olhos negros como seus cabelos longos... Há ali um corpo de mulher em formação. Não, não seria possível que esse tipo de coisa estivesse se repetindo em tão curto espaço de tempo. Deus ou os deuses devem estar me pondo à prova. Ou talvez estejam me ofertando um presente, um sacrifício simbólico de uma virgem. Meu corpo treme. Ela veste apenas uma blusa curta que não chega a cobrir por completo sua calcinha de renda quase transparente. Seus pelos pubianos ainda não começaram a nascer. Eu seria capaz de possuí-la em qualquer lugar sob quaisquer condições. A dominaria e a subjugaria como Sigfried fizera com a amazona rebelde de Odin Brunhilde. Meus olhos e espíritos faiscaram mais que os mitológicos deuses do trovão. Sem nenhuma palavra me viro de costas e sigo até o portão que me permite o acesso à rua.

Sigo o meu caminho, a jornada de um monturo de tristeza ambulante. A trajetória decadente de quem luta sem forças pela vida.

 

 

 

Fragmento de Um Dia Aleatório

 

— Vou tomar um café.

— Você não pode sair, seu trabalho está atrasado.

 

(pausa)

 

— Vou tomar um café.

— Você não pode ir, voce não fez nada hoje.

— Não posso deixar de fazer minhas orações.

Dita a célebre frase de ordem religiosa da qual a negação é impossível, abandonei a pilha de pratos no ambiente dos sacos de cebolas podres. Não há motivo para despedidas, em breve voltarei à companhia do seu bodum pungente. Nauseabundo ou não, não há escolha. Tomo meu café afastado, sentado no amplo banco de concreto próximo. Lembro de um cartaz que vi na rua anunciando uma palestra sobre a patologia do concreto armado, meditei alguns segundos nessa inutilidade enquanto me revigorava com o líquido escuro que descia cálido até meu estômago atormentado.

"Will, passei a noite no pula-pula".

Ouvi a frase num crescendo sonoro. Hermes se aproximava a passos rápidos. Hermes é um viado asqueroso, desbocado e pervertido. Nutro uma simpatia natural por ele. Gosto de conversar com ele. Posso ficar calado enquanto ele discursa como acometido de uma diarreia mental afetada. Ele não atrapalharia o meu café, minha dose cavalar de café. Hermes sempre fala demais.

"Will meu lindo, nem te conto...".

Sentou-se ao meu lado deixando de rebolar seu quadril como uma prostituta barata.

"Eu estava em casa às duas da manhã, quando meu telefone toca".

Disse isso dando pancadinhas no seu relógio de pulso com olhos arregalados e impressionados. Ele revivia o exato momento da madrugada em que fora inopinadamente acordado. Muda a voz, mas permanece com suas mímicas exageradas.

"Alô, Hermes. Onde diabos voce está?".

Ele volta para sua rotineira postura excessivamente afeminada.

"Em casa, homem de Deus, deitado. Onde mais eu poderia estar a uma hora dessas?".

"Abre a porta para mim, agora!".

Uma nova pausa acentuando a dramaticidade. Ele me olha com olhos fixos.

"Abri a porta. Ele já estava com o pau duro. Ele era um negão. Um daqueles mestiços, meio homem, meio cavalo. Fiquei impressionado com o tamanho daquela madeira. Ai meus Deus, minha pressão até baixou. Passei a noite toda sentando. Amanheci no pula-pula".

Hermes se abana com a mão enquanto sua cabeça pende para trás. Ele parece não sentir o baque da sua cabeça contra a parede. Estava anestesiado pelas suas lembranças sórdidas. De repente, recordando de novos fatos, esbugalha os olhos e dá continuidade ao seu discurso.

"E conto mais! De manhã, outro me liga. Outro cavalo. Mas eu... Eu nem aguentava mais. Eu queria, mas só de lembrar daquilo... Ai, eu cheguei a suar frio".

Meu café acabou. Nosso papo acabou. Mais uma vez não precisei dizer uma palavra sequer. Preciso voltar à podridão. Preciso voltar para minhas cebolas em seu lento gotejar viscoso, para seu cheiro de fracasso. Essa é a minha função. Só eu posso suportá-la.

 

 

 

 

Degredados Filhos de Eva

 

 

Ifigênia acordou desnorteada. Sabia onde estava, mas a recordação de como chegara ali havia se apagado da sua memória. Nenhuma lembrança. Tinha a sensação estranha de que aquele corpo não lhe pertencia. "Uma insânia", pensou alto falando para si própria. Surpreendeu-se ao perceber que seu corpo estava coberto por círculos azulados, manchas, seu corpo estava coberto de manchas arroxeadas. Despiu-se de suas vestes ali onde estava, sem se importar com a possibilidade de outras pessoas estar assistindo àquela cena sem sentido. Exatamente como pensara, seus seios trigueiros estavam marcados por círculos roxos do tamanho de uma mordida humana. Percebendo que eles permaneciam ainda rijos, não se importou e caminhou cambaleante até o banheiro. Acordou um pouco mais com o banho purificador e frio após sentir, sentada no vaso, as fezes ralas que escorriam pelos seus intestinos.

Achou na cafeteira um pouco de café frio, estava nauseabunda e o líquido viscoso e escuro lá contido certamente era a melhor das refeições possíveis. Tomou tudo de um só gole, o que lhe fez sentir-se melhor. Não que estivesse bem, mas já não era tão ruim quanto há pouco. Enrolada em sua toalha branca, encardida e manchada olhava os corpos conhecidos daqueles que haviam sido companheiros nas noites anteriores. Todos estavam prostrados no chão e encolhidos, aquecendo-se com seus próprios corpos. Pareciam inofensivos. Ifigênia estava de saco cheio de tudo aquilo, daquelas pessoas e dos seus comportamentos. Erguendo lentamente sua fronte, sobrancelhas em riste na face carrancuda, viu um vulto grande e negro que se aproximava. Finalmente o reconheceu, era o Juvenal que se aproximava sorridente.

"Estou feliz, foi a minha primeira vez" — disse ele, ampliando ainda mais o seu sorriso.

Obviamente Ifigênia se recordou e relacionou a primeira fala do dia de Juvenal às suas manchas no corpo. Entretanto, não acreditava que o casto Juvenal fosse capaz de lhe causar tamanho dano físico. Ele era um ser pacífico e comportado, aquilo não combinava com ele ou com seu perfil bonachão. Impossível, Juvenal era um babaca completo. Imaginando cena após cena, vinham em sua mente os pensamentos mais obscuros jamais antes presentes numa mente humana normal. Ou nem tanto. Certamente não fora apenas o Juvenal quem participara da sua bebedeira orgiástica, era claro. Não lembrar era atroz, lhe corroía o espírito. Sua memória obnubilada pela esbórnia da noite passada em nada contribuía. Estava empacada. Uma bosta. Não funcionava.

"Ifigênia, ouça. Ontem foi a minha primeira vez" — falou novamente Juvenal, interrompendo o silêncio em transe meditativo da sua amiga. Em seu pleno sorriso asqueroso, ele saltitava como uma gazela feliz.

Ela não sabia o que responder. Pensou em perguntar quantos foram ao todo e por vez. Todavia, seu desejo verdadeiro era arrancar da face do seu amigo, aqueles olhos puros que lhe fitavam fixamente, olhos angelicais em um rosto bom. Nada poderia ser mais irritante. Tentando disfarçar sua má disposição para com o rapaz, fingindo pessimamente um falso recato e vergonha, perguntou ao Juvenal: "Como assim primeira vez?".

Apesar de não enrubescer, ela ocultou a face falsamente avermelhada com as duas mãos em gestos forçados, lembrando dos engodos dos bordéis da juventude. Nenhuma possibilidade de resposta a surpreenderia. Ela conhecia a si própria e a recordação de momentos esquecidos combinava com aquele sabor amargo e persistente que ocupava a sua boca.

"Foi a primeira vez que usei um psicotrópico" — respondeu o Juvenal com seu mesmo sorriso amplo e largo que ocupava quase metade da sua cabeça redonda. Ele continuava o mesmo babaca de sempre.

Ifigênia deu de ombros e, após andar poucos passos, esbarrou com outra criatura subterrânea que dormira por ali. Um ser esquálido, barbudo e maltrapilho, com olhos expressivos e profundos que lhe denunciavam os segredos da alma. Um homem lacônico, de poucas palavras, que não se importava com os valores burgueses dos seus contemporâneos. A formação de fonemas em sua boca era rara. Sua voz, um mistério. Mistério abismal que Ifigênia não fazia a mínima questão de desvendar. Especialmente após aquele despertar em enjoos matinais na aurora de círculos roxos de origem desconhecida banhados a café forte.

"Fui trocado por um pau artificial rosa de 14 centímetros" — disse, taciturno em palavras tão esperadas, para qualquer um que não a Ifigênia, quanto o Godot.

Não entendia o conjunto de acontecimentos esdrúxulos e absurdos que a acompanhava desde o momento em que acordou — talvez por que nada necessitasse ser entendido em momento algum da sua vida — e que perduravam insistentemente a cada inexplicável segundo. Ifigênia retrucou sem sentir a voz amorfa que não reconheceu de imediato, sem pensar, perceber ou medir as consequências, dando continuidade à louca série de eventos disparatados daquele dia: "E daí?".

"Eu disse que eu tinha problemas mentais que nunca caberiam naquela cabeça".

Foram palavras demais para um único dia. Sua interlocutora conjeturou a verossímil possibilidade de alguma espécie de sonambulismo alcoólico, consequentemente ele não se lembraria de nada em qualquer momento futuro. Pouco importava. Com um estrondo ele desabou no sofá e cobriu o ambiente com seus roncos encorpados e robustos. Era um otário pleno.

Ifigênia caminhou pensativa até a janela em busca de ar fresco. Viu nos ponteiros parados do seu relógio de parede a metáfora perfeita da sua vida. Neles estavam guardados anseios passadas e a satisfação de desejos futuros ainda desconhecidos. A existência humana era uma história de espera, um fluir ininterrupto num percurso sem sentido até o derradeiro instante prévio à morte, na qual, tudo que poderia saber é que não há como saber de nada. Uma nova despedida a cada momento. Um fotograma queimado a cada segundo, insubstituível e irreparável. Algo inexplicável e inominável que nos deixa e abandona no eterno vácuo do tempo...

Todas as coisas, para Nada.

 
 
 
 
 
[imagens ©nuno canha]
 
 
 
 
 
 

Sid Summers (Salvador/BA). Ex-estudante de filosofia da UFBA, abandonou o curso no último semestre, pois precisava trabalhar para sobreviver. Hoje, é estudante de contabilidade na UNEB e lavador de pratos da Prefeitura de Salvador. É autor dos livros Ratos com asas e Prazer, Sid!. Foi publicado na revista artístico-literária Cinzas no Café e na Revista Literatas (Moçambique). Alguns poemas seus foram lidos na Radiomorir, uma rádio virtual mexicana. Fez o roteiro do curta-metragem Fim de festa, em que atuou, além de dirigir e filmar. Considera sua literatura uma pós-beat proletária.