1

 

"Pois é acerca desse assunto que eu gostaria de conversar com você: 'cópias'".

"'Cópias'?"

"Isso, 'cópias'".

O ar patético que Borges havia perdido há alguns minutos atrás, voltou de forma contundente, a ponto de Denise ter visto nesse seu recorrente gesto, diante do que imediatamente ele não compreendia, uma de suas características peculiares, digamos que ela passava aos poucos a conhecê-lo melhor.

Borges ficou a pensar acerca de que "cópias" Denise estaria falando, e em que tais "cópias" tinham a ver com a tal proposta sobre a qual ele deveria ter pensado.

"Você se importa que conversemos no meu scriptorium?".

"Scriptorium, é? Não, sem problemas. Passemos ao seu scriptorium, então".

"Você não é de perder a piada, não é mesmo?".

"Desculpe, é que à vezes é inevitável".

Inevitável também foi, para Denise, ao adentrar o scriptorium, admirar-se da quantidade de livros que Borges possuía. Eram realmente muitos.

Eles não estavam necessariamente organizados, mas dispostos, sim, em sua maioria, lombada a lombada, porém, os que não estavam assim justapostos, ficavam por cima dos demais, amontoados, numa desordem, digamos, cuidadosamente organizada.

Viu também que o scriptorium de Borges diferia em muito da decadência de como a sala se lhe havia apresentado. Uma enorme mesa de madeira-de-lei escura e envelhecida, aparentemente muito pesada, um móvel para durar mesmo por um tempo indeterminado, e, sim, muito, muito bonita, dir-se-ia mesmo de causar inveja. Fazia par com uma confortável poltrona que, embora, divergisse da beleza rústica e maciça da mesa, compensava sua presença com o conforto e com a flexibilidade, conforme Denise pôde observar pelo prazer com que Borges nela se aconchegou.

Tudo isso se apresentava aos olhos de Denise, apesar da dispersão que a irregularidade dos objetos provocava, como um ambiente acolhedor, aconchegante, um lugar para um escritor passar longas horas de seus dias, distraído entre a escrita e a leitura.

Sobre a mesa, um abajour, que Denise julgou desnecessário em razão da boa iluminação que o scriptorium já possuía, um notebook aberto de onde vinha, em baixo volume, o som de uma música instrumental — que Borges tomou a iniciativa de baixar mais ainda para não atrapalhar a conversa — alguns outros livros espalhados, talvez aqueles que estavam sendo consultados por Borges para um novo conto ou romance, pequenos cadernos de anotações envoltos por um barbante, canetas destampadas e um grafite, que Denise supôs, acabara de rabiscar um check-list de cenas, personagens e lembretes de ações ou ideias para enredos numa folha de papel reciclado. Diante da mesa, havia também uma confortável cadeira, que foi oferecida para que Denise sentasse.

"Antes de mais nada, me explica essa história de você também se chamar Jorge Luis Borges".

"Perdoe-me, Denise, mas preciso perguntar de novo, como você sabe disso? Afinal, essa informação, tenho certeza, não está na orelha do meu livro".

Essa pergunta de Borges deixou Denise um tanto desconcertada. Ela silenciou de repente, embora não reprisando o ar patético de Borges diante de situações inquiridoras para as quais ele não tinha uma resposta imediata.

Manteve um olhar castanho escuro, firme e pontiagudo, mirando diretamente os olhos de Borges, que agora, tornados alvos fáceis, ora respondiam tímidos à gravidade dos olhos de Denise, ora se refugiavam fitando a sua bela e alongada testa, encimada por seus longos cabelos, cuja marca do penteado dividia, por igual, duas margens castanho-claras.

A dificuldade de Denise em responder a simples pergunta de Borges estava, justamente, na necessidade de tal resposta precisar ser elaborada, pois o que ela sabia acerca do assunto não poderia ser revelado sem que, necessariamente, ela cometesse uma inconfidência.

"Borges, posso responder a sua pergunta em outro momento? Posso?"

Denise assim perguntou não mais com o olhar castanho escuro imerso em seriedade, mas envolto numa delicada manha, num irresistível queixume, que foi desanuviando aos poucos uma sombra de dúvida e de desconfiança que começavam a incomodar Borges.

"Tudo bem, Denise, aguardemos, então, por esse momento, se é que de fato ele vai existir".

"Vai sim, não se preocupe, e bem antes do que você imagina. Mas, então, como é isso de você também se chamar 'Jorge Luis Borges'?".

"Isso realmente é muito curioso. Bem, 'Borges' é meu sobrenome de família, herdei de meu pai. Agora o 'Jorge Luis' foi puro golpe de sorte. Minha mãe nunca foi afeita à leitura, muito menos de obras literárias. Meu pai, embora goste muito de ler, sempre gostou, aliás, foi dele que herdei também o gosto pela leitura, nunca leu Borges. Certamente ele não o conhece nem como uma personalidade literária. Então, esse "Jorge Luis Borges", que é meu nome completo, não tem nenhuma relação intencional com o escritor argentino. Como eu disse é apenas uma coincidência, um golpe de sorte".

"Que seja uma coincidência, eu até compreendo, mas por que também um golpe de sorte? Aí eu já vejo que você vê um valor, uma certa vantagem em seu nome ser homônimo ao de Borges...".

"Sim, sem dúvida, concordo. Claro, isso se dando a partir de uma determinada parte de minha vida, a de quando eu passei a conhecer a literatura e, em decorrência, Borges. Lembro-me de que eu achava estranho quando uma professora de literatura, em minha adolescência, ao me encontrar, sempre de forma entusiástica, dizia: 'Bom dia, Jorge Luis Borges!', 'Como vai, Jorge Luis Borges?'. Ora, pra quê ela me chamava pelo meu nome completo todas as vezes que me encontrava, quando meus colegas só me chamavam de Jorge, aliás, 'Jógi'? Tinha alguma coisa estranha aí".

"Após essa surpresa inicial, talvez isso não tivesse tido tanta importância em sua vida, se você também não tivesse se tornado um escritor, não é verdade?".

"Você tem toda razão! Quando eu conheci o Jorge Luis Borges, quando comecei a ler as suas obras, isso me provocou um grande orgulho: 'Poxa, eu tenho o mesmo nome de um grande escritor!'. Isso, na minha juventude, me permitiu colher bons frutos, principalmente junto às professoras e aos professores de literatura e a alguns amigos e amigas que tinham alguma leitura desse grande escritor argentino. A partir daí, deixei de ser o 'Jorge', pois, 'Jorge Luis', eu nunca fui, e passei a ser somente 'Borges', não por conta necessariamente do meu sobrenome, mas por causa do sobrenome de outro, dele, o outro 'Jorge', aliás, nessa história toda, o 'outro' sempre fui eu".

"Tudo isso é muito louco. Impressionante!".

"Pois é, mas aí vieram os problemas. Enquanto eu era um leitor de Borges, tudo bem. Mas quando eu resolvi escrever também, aí a coisa se complicou. Ora, um outro escritor chamado 'Jorge Luis Borges', que chances eu teria? O que não deixa de ser curioso, é que, se eu tivesse adotado mesmo o nome de Jorge Luis Borges, como escritor, os que conhecem os ardis borgianos não teriam dúvida de que eu estaria usando um de seus artifícios literários, trazendo-o outra vez à vida, para que ele continuasse a narrar indefinidamente a trajetória desse infame universo".

"Pois é, mas embora você tenha passado a adotar um outro nome, como escritor, você não abandonou o Borges, o outro escritor, aliás, o mesmo, — ih, já estou fazendo a maior confusão — a julgar pelo enredo de seu livro".

"Agora complicou, heim? Quem é o 'outro' e quem é o 'mesmo'?. É verdade, eu não abandonei o Borges escritor. Deixei apenas de ser o 'outro', embora isso não signifique que eu tenha me tornado o 'mesmo', apenas ganhei uma distância suficiente e necessária para poder tê-lo em minha obra, como personagem, ou como narrador, nem eu mesmo sei mais. Para tanto, tive que criar um outro nome.

 

 

2

 

"Daí nasceu o 'Roberto Amaral'...".

"Isso...".

"Não sei... senti uma certa reticência nessa sua confirmação...".

"Bem... Não é fácil você ter que ser você mesmo não podendo usar seu próprio nome, porque tal nome já pertence definitivamente a outra pessoa. Isso, de certa forma, meio que anula a nossa identidade, entende? A impressão que eu tenho é a de que Borges venceu outra vez. Mesmo morto, ele continua criando, agora através de quem o lê, de quem escreve tendo-o como inspiração. Ele é, sem dúvida, um demiurgo muito ardiloso. Daí, sim, 'Roberto Amaral' precisou mesmo vir à tona.

"E por que, 'Roberto Amaral'?".

"Bom, primeiro, como eu já disse, eu precisava ganhar distância de Borges para poder me re-aproximar dele. Para tanto, eu precisava não ser mais 'Jorge Luis Borges', eu precisava ter um nome que me levasse pra bem longe de qualquer homonímia, de qualquer parentesco. Daí, eu ter criado o 'Roberto Amaral', um nome, segundo penso, forte, pomposo, formal, na minha perspectiva, um grande nome, um nome que promete, digamos assim".

"Então, com a criação de outro nome você buscou tomar a distância necessária de Borges, para, a partir daí, se reaproximar dele de uma outra maneira, recriando-o, como você disse, às vezes como personagem, à vezes como narrador de seu romance, é isso?".

"Isso mesmo! Na realidade, penso que a presença de Borges em meu romance é menos como personagem ou como narrador, ele é muito mais um leimotiv, o motivo condutor de toda a narrativa".

"Daí a obra se chamar Le mot juste?".

"É, Le mot juste, paradoxalmente, é a melhor tradução para esse romance. O paradoxo se dá justamente porque essa expressão não traduz nada, talvez mais complique que explique. Pois veja, uma tradução possível para 'le mot juste' seria 'a palavra justa'. Mas, em se tratando de Le mot juste, essa expressão torna-se o cúmulo do paradoxo, pois a narrativa de que ele se compõe mais que se distancia do que ela quereria dizer, se é que ela quis realmente dizer alguma coisa, se é que ela pretendeu dizer algo, mas é óbvio que um texto literário sempre que dizer algo, mas sempre acaba dizendo mais do que quer, mais do que deveria dizer, daí, Le mot juste se constituir num paradoxo em seu estado mais puro: porque diz muito, porque não diz nada. Há um momento em que um personagem, o 'Hermeneuta Noviço' fala sobre disso de uma forma, a meu ver, definitiva, em Le mot juste... vou lhe mostrar... só um instante...

Borges busca calmamente um exemplar de Le mot juste entre os livros que estavam espalhados pela mesa, encontra-o e passa a folheá-lo, com olhos atentos, em busca da tal citação prometida.

"Aqui... achei... ele diz assim":

 

 

{capacita-nos ao controle de vária ordem, não sem estranheza, o poder da enunciação, denise. a incapacidade de conter a incessante pronunciação, na mesma medida, porém, à auto-destruição pode conduzir-nos. num vício intratável, afogando-nos assim: o falar para além do que podemos (e do que devemos): penúria de sentido, em palavras outras, excesso de significantes.}

 

 

"Bem, aí, se você me permite entrar na história, em Le mot juste tem essa personagem 'Denise', aliás, a demanda do 'Hermeneuta Noviço' por encontrar ou construir a personagem 'Denise'... Bem, o que quero dizer é que, o fato de eu me chamar Denise, e reencontrar o meu nome como uma personagem de um romance, cujo autor se chama 'Roberto Amaral', mas que, na realidade, não se chama 'Roberto Amaral', e sim 'Jorge Luis Borges, e tem como personagem ou narrador ou como leitmotiv, como você disse há pouco, Jorge Luis Borges, o escritor argentino, me desconcertou por demais! Mas a coisa não para por aí, pois, pelo que li, o detonador da sua narrativa foi a não menos paradoxal Ficções!

"Olha, Denise, não posso resistir em dizer que tudo isso que você diz me deixa muito animado!".

"É sério! Olha, eu estou fazendo um doutorado em estudos literários, cujo objeto de estudo é justamente Ficções. Na realidade, o que eu estou estudando, em especial, é a questão do duplo em 'Pierre Menard, autor de Quixote'. Quando fui ao lançamento de seu livro, na semana passada, e o procurei após a sua exposição sobre Le mot juste, foi para tentar conversar sobre essas questões todas. Mas hoje sei que foi algo totalmente inadequado e inconveniente de minha parte, pois você estava envolvido demais com o lançamento do livro e em atender às pessoas à sua volta, e não pôde me dar a devida atenção, o que é totalmente compreensível. Foi por isso que resolvi lhe enviar um e-mail, para tentar marcar um encontro, e também fazendo uma proposta, o que não ajudou muito, já que, por alguma razão, você não a leu.

"Perdoe-me, Denise, mas de termos conversado sobre isso, ainda que brevemente, durante o lançamento, me lembro de bem pouca coisa. Em especial me lembro, sim, de você ter falado da coisa do duplo em 'Pierre Menard', o que me chamou muito a atenção. Mas como você mesma disse, eu estava completamente envolvido com o lançamento, muito agitado para dar conta de detalhes sobre o que cada uma das pessoas que se aproximou de mim aquela noite dizia. Só me lembro dos 'parabéns!', dos 'sucesso!', dos 'vida longa à Le mot juste!'. Agora, o imperdoável é eu não ter lido sobre sua proposta, no e-mail que você me enviou. Lembro sim da primeira parte, em que você me parabenizava pelo lançamento, e me propunha um encontro para conversarmos. Lembro-me de ter agradecido pelo cumprimento e de ter proposto que nos encontrássemos, na semana seguinte, conforme eu anotei na minha agenda, numa quarta, às três da tarde, hoje, portanto, mas, sinceramente, não sei por que razão não li o seu "P.S.", costumo fazer várias coisas ao mesmo tempo quando estou na internet, e, talvez, num desses passeios pela rede, me distraí e não voltei mais ao seu e-mail. Peço-lhe, outra vez, minhas sinceras desculpas. Mas, olha, essa tal proposta já me deixou por demais curioso, do que se trata? Tem a ver com as tais 'cópias' de que você falou ainda há pouco?

Antes de responder a pergunta de Borges, Denise perguntou se ele podia trazer-lhe mais um copo d'água, pois estava sentido sua garganta demasiado seca. Borges disse que "Sim, claro!" e imediatamente levantou-se de sua poltrona, dirigindo-se à cozinha.

Enquanto Denise aguardava pelo retorno de Borges, o silêncio de suas vozes se instaurou no scriptorium, fazendo com que a baixíssima melodia que saía do notebook ganhasse relevo. Denise esforçou-se por identificá-la, mas a canção vinha e voltava aos seus ouvidos de maneira disforme, incompreensível, não tomando a forma melódica de nenhuma música que ela conhecesse, embora o ritmo que ela ia distinguindo de forma intermitente fizesse com que o tomasse com sendo de jazz.

Quando Borges voltou da cozinha, poucos minutos depois, com dois renovados copos com água gelada, Denise perguntou-lhe o que estava tocando. Ele, estacou, ainda com os dois copos na mão, para dar tempo de a melodia se organizar em seus ouvidos atentos, e, alguns segundo depois, disse que se tratava de But not for me, rompendo lenta e manhosa desde o trompete modorrento de Chet Baker.

 

 

3

 

"E, então, Denise, e a tal proposta? E as tais 'cópias'?

"Borges, não é possível que eu lhe apresente minha proposta sem antes fazer uma longa digressão, que vai lhe exigir muita paciência, e não sei se você tem tempo suficiente para me ouvir agora...".

"Bom, Denise, quando agendei esta tarde para nossa conversa, me livrei de todos os meus outros compromissos, que, na realidade não eram com ninguém além de comigo mesmo. Tratava-se de uma pesquisa que estou fazendo para um novo romance, mas que posso retomar amanhã, sem problemas".

"Sem problemas mesmo?".

Perguntou, Denise, retoricamente, olhando nos olhos de Borges, sem esconder a alegria que sentia com o seu assentimento, e, sobretudo, com a informação que ele acabara de revelar, de que estava planejando um novo romance. Calmamente e com um sorriso permanente nos lábios, ela foi retirando de sua bolsa e depositando sobre a mesa, um caderno de anotações, um exemplar de Ficcões, em sua 4ª edição, de 1986, e um grosso exemplar em capa dura de Dom Quixote de La Mancha, numa 1ª edição, de 2003, ambas adquiridas num sebo que visitava com frequência no centro da cidade.

"Sem problemas! E pelo que estou vendo, a conversa vai ser comprida mesmo, heim?!".

"Prometo que vou esforçar para ser concisa, mas, prolixa como sou, já estou antevendo meu fracasso".

"Fique à vontade, Denise, fique à vontade".

"Então, como já disse, estou fazendo um doutorado em estudos literários, cujo objeto de pesquisa é Ficções. Mais especificamente, estou estudando a questão do duplo no conto 'Pierre Menard, autor de Quixote'. Trata-se de uma questão que muito me chama a atenção, esse redobramento narrativo praticado por Borges em seus relatos, que ele descreve como... aqui no prólogo da primeira parte de Ficções ... a escrita de notas sobre livros imaginários, convenhamos, o cara é realmente terrível, heim?!

"Sem dúvida, Denise, sem dúvida!".

"Por isso, meu caro, meu interesse por seu Le mot juste! Porque, de certa forma, você foi tão artificioso quanto Borges, chegando, inclusive, a incluí-lo na sua trama... Olha, eu sei que você é um grande leitor de Borges e conhece a obra dele em profundidade, então, muito do que eu vou lhe falar aqui, você já deve saber de cor e salteado, como diria minha avó, mas peço-lhe, outra vez, que tenha paciência para o desenvolvimento de uma ideia, de uma perspectiva que preciso fazer, até chegar na tal da proposta, tudo bem?

"Denise, já disse e repito: fique à vontade, minha cara!".

"Então, olha só, como eu estava dizendo... O que eu estava dizendo mesmo?... Ah sim, o lance de o Borges dizer que não escreve livros, mas apenas faz notas sobre livros imaginários... Então, olha só, o narrador de 'Pierre Menard', que era também grande amigo do protagonista, apresenta uma longa lista, em ordem cronológica, da chamada obra visível desse curioso escritor, no sentido de dar um testemunho de seu valioso trabalho literário, em resposta a seus detratores, que ora omitem um ou outro de seus escritos, ora adicionam um texto apócrifo a tal lista, como sendo de sua autoria. Nas palavras do narrador do conto... olha só, aqui na página 29: o Erro trata de empanar sua Memória, a memória de Menard, é claro.

Borges respondeu que sim e, ao fazer isso, melhor se acomodou em sua confortável poltrona, pois seu espírito já começava a gostar muito do que Denise tão somente começava a esboçar.

"Mas o que importa para o narrador do conto não é a obra visível de Pierre Menard, e sim a, como ele diz aqui, na página 32, a subterrânea, a interminalvelmente heroica, a ímpar. Também ai das possibilidades do homem! — a inconclusa. Que grande sacada, concorda?! Então, e disso você já sabe o suficiente, a obra com essas características todas que o narrador vai chamar de subterrânea em oposição à obra visível de Menard, trata-se, nada mais, nada menos que Dom Quixote! Do Cervantes! Mais especificamente, conforme ele diz aqui, ainda na página 32: os capítulos nono e trigésimo oitavo da primeira parte... e de um fragmento do capítulo vinte e dois".

Borges mais que se encantava com a maneira, agora nervosa e irrequieta, com que Denise fazia sua exposição sobre "Pierre Menard". Talvez o estar nervosa e irrequieta fossem apenas efeitos visíveis de um movimento mais intenso e subterrâneo que ela ocultava, mas que, inegavelmente, não podia conter as suas manifestações à flor da pele. Borges tendo o silêncio como estratégia, viu-se numa posição confortável para além do que sua poltrona já assegurava, uma posição privilegiada de quem pode usufruir da condição de voyeur com a autorização de quem é observado incessantemente, irrecusavelmente, desejavelmente, enfim, sem um limite imposto à visão naquilo que ela pode observar desde a superfície e, em decorrência, do que ela pode sugerir em profundidade.

"Bem, mesmo correndo o risco de passar por idiota, me submetendo ao constante ardil da invenção borgiana, fui pesquisar essas passagens de Dom Quixote, mencionadas pelo narrador de 'Pierre Menard'. Qual não foi minha surpresa, que, dessa vez, Borges quis mesmo que o leitor fizesse esse esforço de ir à fonte por ele citada, mas, é óbvio, não podia ser diferente, para que caísse em novas ciladas narrativas. No capítulo nono da primeira parte do Quixote, por exemplo, narra-se o seguinte:

 

Estando eu um dia no Alcamá de Toledo, apareceu ali um muchacho a vender uns alfarrábios e papéis velhos, a um mercador de sedas. Como eu sou amigo de ler até os papéis esfarrapados das ruas, levado da inclinação natural, tomei um daqueles cartapácios, e pela escrita reconheci ser árabe, posto o não soubesse decifrar. Espalhei os olhos à procura de algum mourisco alfamiado, que mo deletreasse. Depressa me apareceu intérprete, pois de melhor e mais antiga língua eu o necessitasse, facilmente por ali se me depararia. Enfim, atinei com um que, ouvindo o que eu desejava, pegando no livro o abriu pelo meio, e, lendo nele um pouco, se começou a rir. Perguntei-lhe de que se ria, e respondeu que de uma coisa que ali vinha escrita na margem como anotação. Pedi-lhe que ma decifrasse, e ele, sem interromper o riso, continuou:

— O que se lê aqui nesta margem, ao pé da letra, é o seguinte: "Esta Dulcinéia del Toboso, tantas vezes mencionada na presente crônica, dizem que para a salga dos porcos era a primeira mão de toda a Mancha".

Quando eu ouvi falar de Dulcinéia del Toboso, fiquei atônito e suspenso, porque logo se me representou que no alfarrábio se conteria a história de Dom Quixote. Neste pressuposto, roguei-lhe que me lesse o princípio do livro em linguagem cristã, o que ele fez, traduzindo de repente o título arábigo em castelhano deste modo: História de Dom Quixote de la Mancha, escrita por Cide Hamete Benengeli, historiador arábigo. Muita prudência me foi mister para dissimular o contentamento que me tomou, quando semelhante título me chegou aos ouvidos; e, antes que o rapaz apresentasse o livro ao homem das sedas, lhe comprei toda a papelada e os alfarrábios por uns reles cobres, que, se ele fora mais previsto, e soubesse a grande melgueira que me trazia ali, bem podia ter feito comigo veniaga para mais seis reales. Retirei-me logo com o mourisco para o claustro da igreja maior, e lhe pedi me trocasse em língua castelhana todos aqueles alfarrábios, que tratavam de Dom Quixote, sem omitir nem acrescentar nada, oferecendo-lhe a paga que ele quisesse. Contentou-se com duas arrobas de passas e duas fangas de trigo, e prometeu traduzi-los bem e fielmente com muita brevidade. Mas eu, para facilitar mais o negócio, e não largar da mão tão bom achado, o trouxe para minha casa, onde em pouco mais de um mês e meio traduziu tudo exatamente como aqui se refere.

 

 

Veja, então, Borges, que redobramento narrativo mais louco! Como se não bastasse, um, Borges; dois, o narrador de 'Pierre Menard' e, três, o próprio Menard, a eles juntam-se agora, quatro, Cervantes, cinco, o narrador do Quixote, seis, o 'mourisco alfamiado', tradutor do alfarrábio e, sete, 'Cide Hamete Benengeli', autor da 'História de Dom Quixote de la Mancha'. Na realidade, segundo vejo, mediante o conto 'Pierre Menard', é promovido o encontro inusitado de dois demiurgos: Jorge Luis Borges e Miguel de Cervantes".

Borges assentiu apenas com um sorriso. Mas um sorriso tão entusiasmado que para ela ficou muito claro que ele estava gostando muito do que ouvia, que ela podia continuar sua exposição tranquilamente.

"O que me chama mais a atenção no relato é a ingenuidade do narrador do Quixote em relação ao 'mourisco alfamiado', tradutor do alfarrábio! Como ele poderia confiar que o que estava sendo traduzido correspondia ao autêntico relato de Dom Quixote? Afinal de contas, como você deve saber, uma das definições de tradutor, em italiano, é "traduttore, traditore", ou seja, "tradutor, traidor", além do mais, ele fazia isso para ganhar algo em troca, e curiosamente, nesse caso não era dinheiro, mas alimento: 'duas arrobas de passas e duas fangas de trigo'. Não sei se você sabe, mas os mouros eram tarados por passas. Por outro lado, o narrador do Quixote pagou, espertamente, uma mixaria pelo alfarrábio, mas fez questão de pagar o que o tradutor pedisse, desde que ele não omitisse nem acrescentasse nada em sua tradução... como se isso fosse possível! De todo modo, por sua expressão: 'tão bom achado', podemos concluir que um grande tesouro fora encontrado".

Denise fez um breve intervalo, para consultar o seu caderno de anotações. Com olhos inquietos, ela percorria as páginas, as linhas das páginas, simulando uma leitura silenciosa com o movimento dos lábios. Foi quando Borges reparou nos lábios dela, belos lábios, aliás. Generosamente carno-avermelhados que ora mostravam, ora ocultavam o claro marfim de seus não menos belos dentes. Borges percebeu que era necessário calar-se, não para ouvir, mas para poder enxergar melhor uma pessoa.

"No capítulo trigésimo oitavo do Quixote, cujo título é: 'Em que se trata do curioso discurso que fez Dom Quixote sobre as armas e as letras', não percebi uma presença forte do escritor Menard, conforme indica o seu narrador, pelo menos na perspectiva borgiana de se escrever notas sobre livros imaginários. O que eu constatei é que o discurso de Quixote é francamente favorável às armas em detrimento das letras. E isso se daria, segundo o narrador de 'Pierre Menard', o que eu também acho bastante coerente, ao fato de Cervantes ter sido um militar. Porém, explica ele, se no Quixote escrito por Menard, esse discurso favorável às armas em detrimento das letras ainda permanece, é porque Menard se manteve fiel à 'psicologia do herói' e não à biografia de Cervantes. Muito justo, não é? Mas pra mim, particularmente, sabe o que se esconde por trás desse discurso entre letras e armas? Não tenho dúvida: é a eterna luta entre os demiurgos na definição de quem é o pai de quem! Quem é o precursor de quem! Então, pra mim, não se trata nem de ódio e muito menos de amor, mas de guerra, de luta, de falar mais alto, de ser ouvido, de fazer valer cada qual a sua própria palavra!".

Borges notou no final dessa fala de Denise, não exatamente na fala, mas na forma como ela a pronunciou, com que olhos ela pronunciou, olhos, se ele muito não se enganava, de raiva, sim, olhos de ira! Olhos que foram postos em relevo não pela luz castanho-escura que eles possuíam, mas por um tom obscuro que eles também resguardavam, a face oculta de sua lua, que lhe causou um princípio de arrepio, ao pensar em ter que um dia vir a conhecê-la. Mas a razão de tal ódio, Borges não sabia desvendar.

"Agora, em relação ao fragmento do capítulo vinte e dois do Quixote, eu o li e reli, em busca de qual trecho que teria sido escrito por Menard, e, a julgar pelo que foi narrado no capítulo trinta e um, ou seja, o caso do alfarrábio traduzido pelo 'mourisco alfamiado', não tive dúvida de qual parte do relato seria. Deixe-me contextualizá-lo primeiro. O Capítulo vinte e dois tem como título: 'Da liberdade que Dom Quixote deu a muitos desdidatos, que iam levados contra sua vontade onde eles por si não quereriam ir'. Então... trata-se de um momento da aventura de 'Dom Quixote', em que ele e seu fiel 'Sancho Pança' cruzam pelo caminho com um grupo de doze homens a pé, todos eles algemados e com cadeias de ferro pelo pescoço, seguidos de dois homens a cavalo e outros dois desmontados, armados de dardos e espadas. 'Sancho' explica a 'Quixote' que se trata de criminosos condenados, sendo conduzidos para trabalhos forçados nas galés, por ordem de el-rei. 'Quixote', perplexo com o fato, questiona aos condutores dos prisioneiros, qual a razão de cada um deles estar sendo levado contra a vontade para as galés. Impaciente, o guarda responde que se ele quer saber algo respeito dos criminosos que pergunte a eles pessoalmente. Assim, 'Quixote' passa a entrevistar, um a um, os infelizes prisioneiros, acerca dos motivos que os conduziram para aquela triste condição. Cada um deles expõe a 'Quixote', então, suas justificativas, que ouve com atenção e tece comentários sempre favoráveis às suas queixas. Um deles, em especial, inclusive aquele que estava mais bem agrilhoado, chama muito a atenção de Quixote. Vou ler o trecho pra você me ajudar se estou certa em dizer que foi a parte escrita por Menard, ok?

 

 

Atrás destes vinha um homem de muito bom parecer, de idade de trinta anos, e que metia um olho pelo outro. O modo por que vinha preso diferia algum tanto dos outros, porque trazia uma cadeia ao pé, tão comprida, que lhe subia pelo corpo todo, e ao pescoço duas argolas; uma em que se prendia a cadeia, e a outra das que chamam "guarda-amigo", ou "pe´-de-amigo", da qual desciam dois ferros que chegavam até a cintura, a que se prendiam duas algemas em que iam presas as mãos com um grosso cadeado, de modo que nem com as mãos podia chegar à boca, nem podia abaixar a cabeça até chegar a elas. Perguntou Dom Quixote como que ia aquele homem com tantas prisões mais que os outros. Respondeu-lhe o guarda que mais delitos tinha aquele só, que todos os da leva juntos, e que tão atrevido e velhaco era, que, ainda que o levavam daquela maneira, não iam seguros dele, e temiam, ainda assim, que lhes fugisse.

— Que delitos pode ele ter — disse Dom Quixote — se o condenaram só às galés?

— Vai por dez anos — replicou o guarda —, que é como morte civil. Não há mais que se encareça: este bom homem é o famoso Ginés de Pasamonte; por outro nome lhe chamam: o Gisesilho de Parapilha.

— Senhor comissário — disse então o forçado —, não leve isso de afogadilho, e não percamos tempo a destrinçar nomes e sobrenomes; o que me eu chamo é Ginés, e não Ginesilho. Pasamonte é a minha alcunha, e não Parapilha como você disse; e cada um que olhe por si, e não fará pouco.

— Não fale tão de ronca, senhor ladrão de marca maior — replicou o comissário —, se não quer que o faça calar contra a vontade.

— Parece — respondeu o forçado — que um homem vai por onde Deus quer; mas não importa, alguém algum dia há de saber se me chamo Ginesilho de Parapilha, ou não.

— Pois não te chamam assim, embusteiro? — disse o guarda.

— Chamam, sim — respondeu Ginés —, mas eu farei que mo não chamem; juro por estas; por enquanto é falar só entre os dentes. Senhor cavaleiro, se tem alguma coisa que nos dar, dê-o já, e vá-se com Deus, que já aborrece com tanto querer saber vidas alheias. Se quer saber a minha, sou Ginés de Pasamonte; a minha vida está escrita por estes cinco dedos.

— É verdade — disse o comissário —, a sua história escreveu-a ele próprio; é obra a que nada falta. O livro lá lhe ficou pela cadeia empenhado em duzentos reales.

— Tenho toda a tenção — acudiu Guinés — de o desempenhar, por duzentos ducados que fosse.

— Pois tão bom é o livro? — disse Dom Quixote.

— Tão bom é — respondeu Ginés — que há de enterrar Lazarilho de Tormes, e quantos se têm escritos ou se possam escrever naquele gênero. O que sei dizer a você é que diz verdades tão curiosas e aprazíveis, que não pode haver mentiras que lhe cheguem.

— E como se intitula o livro? — perguntou Dom Quixote.

— A vida de Ginés de Pasamonte — respondeu ele em pessoa.

— E está acabado? — perguntou Dom Quixote.

— Como pode estar acabado — disse ele —, se ainda a vida se me não acabou? O que está escrito é desde o meu nascimento até o instante em que esta última vez me encaixaram nas galés.

Visto isso, já lá estiveste mais duma vez — disse Dom Quixote.

— Para servir a Deus e a el-rei já lá estive quatro anos, e já sei a que sabe a bolacha e mais o vergalho – respondeu Ginés —; pouco se me dá tornar a elas; assim terei vagar para concluir o meu livro, que ainda me faltam muitas coisas que dizer, e nas galés de Espanha há sossego de sobra. Verdade é que o que me falta escrever já não é muito, e tenho-o de cor.

— Esperto me pareces tu — disse Dom Quixote.

— E desditado também — acrescentou Ginés —; não admira; as desventuras vêm sempre na cola do talento.

 

 

E então, Borges, o que você acha?".

 

 

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Borges respondeu meio a contragosto, pois o que ele queria mesmo era continuar apreciando a beleza de Denise, em meio ao seu discurso entusiasmado, que ele julgou ser coerente com a uma leitura atenta tanto de Ficções quanto de Dom Quixote. Mas essa constatação tanto mais aumentou sua curiosidade quanto à proposta que ela iria fazer, ao final de sua instigante exposição.

"Olha, Denise, se foi Menard ou não quem escreveu esse trecho do Quixote, isso nós nunca vamos descobrir. Mas, seguindo sua argumentação, de invejável coerência, tendo a crer que sim, essa parte que você leu retoma a mesma 'demanda por uma obra' presente no capítulo trinta e um. No caso do alfarrábio, a obra foi encontrada, mas precisou ser traduzida, o que implica já um 'intervenção interpretativa' sobre o texto de 'Cide Hamete Benengeli', ou seja, a obra foi outra vez extraviada. Já no caso de 'Ginés', a obra ainda é só uma possibilidade, pois não sabemos se 'A vida de Ginés de Pasamonte' realmente existe, apesar de o comissário confirmar que tal obra está empenhada na cadeia a 'duzentos reales'. No entanto, nós sabemos que 'Ginés' é um sofista à toda prova, e pode ter enganado tanto o comissário, quanto Dom Quixote, quanto a todos nós, leitores".

"Concordo plenamente! E é claro, né, Borges, nós estamos aqui só no âmbito da especulação. Nada disso pode ser confirmado, disso eu estou convencidíssima. Então, olha só as outras coisas que vi presente nesse trecho. Em primeiro lugar, o cara mais agrilhoado era justamente 'Ginés', segundo o comissário, o que mais tinha cometido delitos da turma toda. Justamente o 'suposto' escritor e autor de 'A vida de Ginés de Pasamonte'. E tem mais, se ele não é escritor, ele é um grande 'sofista', um grande 'retórico', como você disse, isso confirmado pela própria boca do comissário, e é a razão pela qual está retornando para as galés. Isso não te faz pensar sobre a figura do escritor? Sobre o que Borges, Cervantes e 'Roberto Amaral' fazem? Não se utilizam de sofismas e de retórica tal qual 'Ginés'? Mais curioso ainda é o fato de 'Ginés' estar completamente agrilhoado, com exceção de uma parte de seu corpo, a sua língua, sua mais contundente arma, com a qual ele faz uso ferino da palavra. Outra coisa, é impressionante essa capacidade que o escritor tem de se vestir e se revestir de máscaras!, 'Gisés de Pasamonte' também é conhecido como 'Ginesilho de Parapilha', nome esse que aparentemente ele detesta. Mas como não pensar que o uso de um ou outro nome vai de acordo com a conveniência dele, heim, senhor "Roberto Amaral"?

Não teve como Borges não soltar uma gostosa gargalhada, como há muito tempo ele não se permitia. Tal gargalhada se deu muito menos pela provocação de Denise, e muito mais por uma satisfação íntima de ver seus planos de escritor terem dado tão certo. E isso não tem nada a ver com a venda de seus livros que, aliás, foram ridículas. Tendo optado por uma edição paga pelo próprio autor, as vendas de Le mot juste ficaram limitadas aos lançamentos que ele próprio promovia, o que implicava em renovados gastos e nenhum retorno, e a um blog que ele criou para divulgar a obra na internet e para postar resenha escritas por leitores, escritores, poetas e críticos, para os quais ele enviava exemplares de seu primeiro romance.

Os planos de escritor que deram tão certo para ele têm a ver com as leituras e os leitores. Todos aqueles que leram sua obra, bem poucos, diga-se de passagem, foram unânimes em mencionar o grande valor de sua narrativa, sobretudo a inventividade nela empregada, com destaque para o surpreendente diálogo entabulado com Borges, o outro escritor, aliás, o mesmo. Essa era a razão da gostosa e livre gargalhada de Borges, ele persuadira seus leitores mediante o uso do mesmo sofisma de Borges, de Cervantes, de 'Pierre Menard', de 'Cide Hamete Benengeli', de 'Ginés de Pasamonte'. A gostosa e livre gargalhada de Borges era uma daquelas de quem pertencia agora a um mesmo clube: a dos que escrevem notas de livros imaginários. E isso fez com que ele muito mais se afeiçoasse a Denise, uma autêntica leitora atenta!

"Do que você está rindo?! Não é de mim não, né? Olha lá, heim? Então... Borges, pensa, meu caro! O 'Ginés' já faz menção ao Lazarilho de Tormes! A primeira novela picaresca! Ele diz que 'A vida de Ginés de Pasamonte' vai colocar o Lazarillo no chinelo! Muito engraçado tudo isso! E o que é o picaresco se não o burlesco? E o que é o burlesco se não o cômico? E o que é o 'pícaro' se não o ardiloso, o astuto, o velhaco? Veja como tudo se redobra: narrativas, narradores, autorias, máscaras, personas, personagens, demiurgos... É simplesmente bárbaro! Você, por exemplo, Borges, é um 'grande pícaro'!

Borges mais que ria, redobrava-se de rir. Ainda mais que ser chamado de "grande pícaro" deu-lhe azo para juntar ao cômico da cena, o que nela se ocultava de erotismo, e tal possibilidade ia-lhe muito bem.

Mas, Denise sabia mais... Por exemplo, de que ainda não era hora para o exercício de ardis ligados ao corpo, ainda era necessário que a palavra calasse fundo ao ouvidos, que o sofisma aprendido aos grandes mestres fosse exaustivamente executado até que cumprisse seu objetivo final: criar novos universos, novos mundos, novas gentes.

"Agora olha só essa frase, Borges, que é como 'Ginés' define seu livro, ainda inacabado: 'O que sei dizer a você é que diz verdades tão curiosas e aprazíveis, que não pode haver mentiras que lhe cheguem'. Já viu coisa mais contraditória?! É difícil até para interpretar... O que ele quer dizer com isso, afinal? Que o que está escrito em sua narrativa é tão bem elaborado que se torna uma verdade 'curiosa'? E 'aprazível', por quê? Por que quando fatos reais são narrados em forma de ficção eles se tornam mais 'verdadeiros', causando prazer em quem a lê? Não sei, só sei que ele sabia do que estava falando, né, Borges?

"Sabia, sim, com certeza. Aliás, os dois sabiam, Denise, ele e o pai dele, o demiurgo Cervantes. Mas essa questão da 'verdade' na ficção, me fez lembrar de uma outra passagem, de um outro livro, de um outro demiurgo, Guimarães Rosa".

Borges levantou-se, deu meia volta em torno de sua magnífica mesa, passando rente à confortável cadeira de Denise, momento esse em que ela sentiu novamente o agradável perfume que ele usava, recuperando a boa lembrança olfativa de quando ela chegou ao seu apartamento, e eles se abraçaram e trocaram beijos no rosto.

Ele parou em frente a uma das estantes, justamente a que ficava atrás da cadeira de Denise, o que a forçou a dar meia volta na posição em que estava sentada, para acompanhar, curiosa, esse inesperado movimento de Borges. Ela, sorrindo, o olhava pelas costas. Na verdade, desde quando o conheceu pessoalmente, no lançamento de seu livro, ela o achou bonito, elegante, mas, sobretudo, o que ela mais apreciava num homem, ele era muito inteligente! Dominava as palavras como ninguém e era um sedutor sem o menor esforço quando falava. Uma fala pausada, reticenciada, saboreando cada frase que era pronunciada, como se exaustivamente tivesse ensaiando um discurso antes de se encontrar com qualquer interlocutor.

Depois de uma breve busca, para a qual ele dedicou um minuto desnecessário a mais, só pelo prazer de se sentir observado por Denise, puxou certeiro a lombada de Grande Sertão: Veredas, em sua 19ª edição, de 2001, e passou a folheá-lo, ainda de pé, enquanto falava.

"Tem um trecho aqui, no qual Riobaldo está de passagem, com o bando chefiado por Zé Bebelo, por um lugar chamado de 'Currais-do-Padre'. Lá, os jagunços encontraram descanso para uma longa caminhada a pé, que eles foram obrigados a fazer, fugindo do cerco armado por Hermógenes na fazenda na 'Fazenda dos Tucanos', onde eles estavam abrigados. Lembra dessa passagem?".

"Faz muito tempo que li o 'Grande Sertão', não estou me lembrando ainda...".

"Então, apesar do lugarejo ser chamado de 'Currais-do-Padre', lá não havia currais e muito menos padre, segundo o informe do Riobaldo. Ele diz que tinha apenas o buritizal e um único morador que guardava os cavalos para a troca de montaria do bando de Medeiro Vaz. Mas, o mais importante é que, apesar da pobreza do lugar, Riobaldo dá uma informação curiosa, olha só:

 

 

Mas o dono do sítio, que não sabia ler nem escrever, assim mesmo possuía um livro, capeado em couro, que se chamava o 'Senclér das Ilhas', e que pedi para deletrear nos meus descansos. Foi o primeiro desses que encontrei, de romance porque antes eu só tinha conhecido livros de estudo. Nele achei outras verdades, muito extraordinárias.

 

 

Incrível, né? Diz se Guimarães Rosa não colocou Riobaldo e Gisés pra conversar no milagroso espaço literário, sobre 'as verdades extraordinárias' proporcionadas por um romance?!".

"... Como diria um grande amigo meu: 'conversar com quem entende é descanso de juízo'".

E eles riram, riram a esmo, não mais como dois recém-desconhecidos, mas como dois cúmplices que observam pelo buraco da fechadura, sem ser vistos, as tramas e os sofismas criados pelos demiurgos literários em favor do 'duro desejo de durar', conforme Éluard disse certa vez.

 

 

 

 

setembro, 2012