©joshua hibbert
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

Aos percalços de ti —,

andanças de ojos verdes por escumas d'água,

por espumas ao norte do querer

 

serra,

cerro de tuas costas pétreas,

de minhas encostas de palavras

sobre teu silêncio...

 

o teor dessa garapa fulminosa

destilando cortes —

lascas de canáceas na memória...

 

água salina,

sanha de meus versos verdes

sob a tromba d'água...

                    

marina inalcançável,

o verdasco de tua presença ao centro do pensamento,

pois me é tudo verde neste ser alienado

 

uma marca profunda e verde

inscrita na pele;

na pedra-limo da carne...

 

as palavras aos ouvidos,

verdes —

 

um instante e o espelho,

inesquecidos;

 

aos percalços de teus pés

o verde caminhar dos passos...

 

 

 

 

 

 

 

A crença

 

tece em astúcia um átrio,

abismo entre seus passos —

 

meio-fio de linhas gris,

a concretude do dito pelo fato:

asfáltico desvio —

 

a palavra: acredite

 

ergue nações; em fé e fúria, arranha-céus

mas amiúde esgarça

a graça rara da fala —

 

abstrai: escolha inexiste

não insista,

o feito é inerente

não há arbítrio, só corrente

 

aja: engaje

a brevidade existe

viver é,

 

senão viragem

 

 

 

 

 

 

 

A língua

com intuito de falo;

 

afinco à mingua do dizer —

 

alvor,

lascívia que desagua,

que trespassa em laminosa fala

        

e desplanta

cerne adentro

 

e infringe,

e fere,

e deflora —

 

e induz dulce lirismo

a um sublunar sentido:

 

a floremergir

 

no sobrecéu

do indizível

 

 

 

 

 

 

 

O degelo

 

a lentidão dúbia

a deflorar a lisura da derme

e rachar os dedos n'água —

 

a ruptura:

a quebra de cristais

e o estrondo ante o gemelhicar

de um escoamento liso,

 

de lírico arremedo —

 

o escamotear

subtil

de toda uma parede de pedras

a desfazer essa maquinal memória 

e deflagrar sob pés

de sons e palavras — 

 

o frio,

 

o fluxo e a floração

a atravessar

a superfície cênica da fala

 

a desmemoria dos passos,

sóbria 

e terrivelmente cética;

 

o degelo

dentre frestas

e fios

 

face ao meu silêncio

 

o símil som dos passos

como que amainando

uma geada entrópica,

 

entrevista nessa imagem

como a um espelho —

 

o toque tríplice

sob a carne:

 

extasiado pelo frio

 

 

 

 

 

 

 

O sopro indócil,

 

o céu de sombras

sobre o inóspito da carne,

 

sobre aquilo que dedilho

lenta e vertiginosamente;

 

que dedilho e desdigo

na tua ausência —

 

um sopro irrefreável

a irradiar no céu,

 

a irromper na raiz da fala

e cingir o que há de tato no dizer,

 

a inscrever sua quietude

profunda, intensa,

 

insidiosamente 

 

um salmo que alvoroça,

verga sua derme

 

subscreve seu colo

 

e sussurra

 

temerosamente

sobre sua carne —

 

meu signo circunscrito:

 

o viço do meu dizer

 

 

 

 

 

 

 

Mansidão,

 

o silêncio alvo a desmembrar

a cruz dos descaminhos —

 

vis vidrilhos

ao preluzir do sobrecéu

 

um corte acobreado

no desalinho das nuvens

sob o sol —

 

arvora assim a vida

em dissonante aviltamento;

 

a sobrepor o tempo

a lentos passos no degredo —

 

um dessaber imenso

que calcina cerne adentro,

 

um dissabor etéreo,

súbito; passadiço

 

a ruir a si e seu inverso:

 

contra a verde imensidão

 

 

 

 

 

 

 

Travessia; aparas

sob a copa das palavras —

 

coplas dúbias

na vereda, de viés:

 

a busca,

emboscar o rastro,

 

a trilha não riscada —

 

a rusga de transpor na língua

a fala agreste; acossada

 

o diário de sóis

à sombra sibilina

 

o diáfano do rio,

que verbera à revelia

 

a outra margem

 

 

 

 

 

 

 

Até o rio —

até o que há de fluídico no rio

remete tua voz

 

murmura a subtileza da tua forma aquosa

percorrendo o pontiagudo das pedras

entre limo e líquenes

 

— sublevação sussurrante —,

 

o rio furtivo

que irrompe tua ausência longínqua

por entre vias enviesadas

e veredas de bambus;

 

na transição de tua constante presença

que me trespassa pelos ossos

 

e carrega em si

meu abandono de flores

e o destemido fulgor dos céus —

 

rio constante

sob galhos e folhas várias

e cascas recobertas de fungos de alva cor

ou rubra textura desenhada

 

a umidade obscurecida pelo castanho

opaco ou verdoenga massa;

 

o trasladar da superfície recoberta

pelo indizível mínimo —

 

rio, rede labiríntica

de ramas e raízes vegetais;

 

lonjura que desavia

a proximidade do auscultar a derme,

 

a substância última —

 

rastro de rizomas rastejantes —,

a unidade úmida de ti

 

o esplendor do chão

recortado por lâminas exiladas do sol;

 

a hidrografia selvagem do seu traçado

a desenhar contra ti um leito silencioso

 

uma cama em transmutação

que recobre tudo

 

o que há de translúcido em ti.

 

 

 

 

 

 

 

As palavras

insustentavelmente rubras

deitam-se no horizonte

 

sussurram, as palavras

 

ao cabo do dia

à tarde opaca da carne

 

um silêncio

desnecessário

no fundo alvo das palavras —

 

um sopro translúcido

 

a desdizer

a insuspeitável beleza da fala

 

e partir pelo espaço

 

como se dissolvido no vento

 

um silêncio cor de púrpura

 

a se perder

 

 

 

 

 

 

 

El centro viejo de tu pensamiento

 

as lascas das esquinas

em escombro,

 

as pedras,

párias da fala fumeante

 

a travessia gris em desacordo com a luz

o éter a trespassar a síncope destes outros olhos

 

as ruas,

rios que desembocam na prata

 

na praia doce desse rio

símile de prata que nos atravessa o peito com a pedra

 

o ópio desse silêncio

 

a luz que soma ao corpo a sua repentina imagem

 

 

 

 

 

 

 

Há uma indissociável lucidez,

um vento gélido a cortar a tarde

 

um fino véu-librina

a trespassar a caminhada óssea —

 

há uma incorporação de falas permanentes,

um murmúrio lírico a deitar à sombra do ocaso;

a contração, a contramão da escrita sobre o silêncio —

 

a transcrição pura: a fúria do cotidiano

contra a inaptidão da carne

 

o tempo, sua face tríplice

frente à própria face —

 

o dia entorpece em excessiva beleza,

excede em estribilho;

 

a umidade perpassa o chão concreto

infusa nas linhas do poema

 

refulge lentamente a refletir o gris

 

enrubesce na fala das falanges,

na inarticulada voz designada —

 

o êxtase,

a língua inominável

 

a face do tempo a dobrar a rua,

a curvar o rio do pensamento

 

 

 

 

 

 

 

Aos pés,

incorre a permanência...

 

um seixo só,

sequioso no pastio —

 

o par de passos

ante um único ipê

 

o impacto,

a imanência do vento;

 

fulva-flama,

a floração do céu —

 

súbito,

 

a sobressair do tempo

 

em voo último:

 

a ave

 

a gruir ao sol

 

 

 

 

 

 

 

Cursa o rio

 

rumora sobre a pedra,

rastreia em mesmo rumo:

 

desemboca,

em rubra cor —

 

cora, tinge e se esvaece;

 

serpentina à sombra própria

no espelho d'água —

 

mira: no pé arbóreo

um caule em ranhura

 

à raiz da serra

 

trespassado por sulcos e fissuras,

pelo rechinar da mata —

 

arvora

copa acima

um carancho:

 

a pluma alvinegra,

o penacho em rubro;

respingado —

 

a rapina agarra a presa:

 

um pequeno símio

no curvo das garras —

 

a ave embate, rebica

e sequer um guinchar

 

na quebra do cachaço

 

 

 

 

 

 

 

Sigo

 

hircoso naquilo que venero —

um facínora vulgar,

 

abjeto

de andança coxa,

fétido; lancinante —

 

vergo à carne pútrida

como verte o sol

ao poente —

 

aqui já não me alcança

a alcateia

 

soa ao sol

apenas vento:

a veste da savana —

 

esgota o rio,

e o riso coagula

 

regougo-me só —

nem carniça

ou verme nos dejetos;

 

o destroçar da carne,

ou ossos, a putrefação solene...

 

deixaste-me o tempo,

e aqui eu me despeço —

 

antevejo a face senil,

um felino;

entreolhamo-nos —

 

esta noite seca

há de ser de sangue;

 

digno destino, confesso

pra um velho carnívora

que urge a si, penitente:

 

outros são os carniceiros...

 

venha, fulvo felino

abatamo-nos

 

— sol e sombra —

 

vertamos o último fio,

o riso ríspido ante o sol

 

rotos na ruína, venha!

 

vamos embeber esta savana

 

 

 

 

 

 

OUTRAS ANDANÇAS

 

 

Variaciones en blanco

 

A linha tênue,

o paralelismo serial

 

a translucidez,

frenesi continuum;

exacerbado —

                      

decerto, um deserto

salino; venoso

 

um fármaco

de arbor cristalino

 

um salar, solar

a saltear ao peito

 

a transtornar

ao centro da íris       

 

a pulsante instância:

 

a febre disrítmica

 

cerebral

 

 

 

 

 

 

Artemisia absinthium

 

Via vária,

 

a virulência da rua —

 

olhares tortos;

entrecruzados na torpeza:

 

do gris ao anis —

 

o traçado,

 

luz que enleva os letreiros —

 

verde neon,

o intenso das luminárias

 

os passos

transtornados;

 

tortos, na torpeza —

 

à intenção do deleite

ao delito, de fato:

 

a cama —

 

o hiato!

 

 

 

 

 

 

Sol de tolueno

 

contre les alvéoles,

contre la colle,

a coda

 

o desencontro alvo,

girovagante;

 

singrando,

solvendo a fala de amarras

 

pra dentro,

no intento da borrasca;

 

estrangeiro errante

de cócoras;

 

o desmemoriado

espaço dos passos

 

a muda voz que se transmuta,

a caligem árida que se reparte;

 

inalar-se o inverso da carne,

vergar às vias do impreciso,

 

adentrar o estreito leito do desvio

 

a alvura

 

célere,

 

a miragem —

 

céu-celeuma,

a disfagia da viagem

 

 

 

 

 

 

Misérable miracle

 

Aos pés de Wayna Pijchu,

vejo-os chegar:

 

formiguejando

monte acima,

em linhas

 

vejo-os

adentrar, 

alastrar-se

pelas ruelas de barro

e pavimentos de granito

 

por cada canal d'água,

em cada lugarejo —

 

filetes em trânsito,

fuliginosos;

 

suas línguas multiformes —

 

à volta:

à serrania circundante,

as montanhas:

 

índias de arbórea

mantilha;

 

seus rostos recobertos

com o viço da mata —

 

o sol,

a luminância:

um altar pétreo;

 

o aurífluo da luz a transbordar

qual uma esteira d'água

 

no entorno,

 

à cercania

 

 

 

 

 

 

Dê-me-te

 

água abaixo,

o empuxo

 

esfumaça

a bruma de numes;

                    

alvigoteja —

  

sol-pôr espiralado, 

silvo repente:

 

baldo abaixo,

ascende em palacete —

 

serpenteia,

aflora em filamentos;

 

dorso lupino,

pés e patas galináceos;

policromia,

lúpulo saturado —

 

a cônscia-incipiência, o relapso:

 

cinábrio,

cinéreo,

citrino;

 

o visco fulminante —

 

além da luz: a linha

 

devenindo...

 

 

[Do livro Travessia, inédito]


 

 

 

 
 
dezembro, 2012
 
 
 

 

 
Bruno Prado (São Paulo/SP, 1981). Poeta. Autor do livro de poesia Fraturas (Rio de Janeiro: Selo Orpheu/ Multifoco, 2010), está nas antologias Poesia Sempre (Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2010) e O conto brasileiro hoje (São Paulo: RG Editores, 2005). Participou, como poeta convidado, da exposição "Mesmo nos momentos mais silenciosos", do fotógrafo Gabriel Felsberg (São Paulo, MuBE, 2012). Conta com publicações em periódicos e revistas eletrônicas, no País e em Portugal.
 
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