©introvertka
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Wirgínia me olha nos olhos e sorri. Vinte e poucos anos, blusa justa, amarela. Morena clara, um sorriso de dentes muito brancos, luz, uma surpresa do agora. Tem um crachá. Em letras suficientemente grandes para que eu possa ler: WIRGÍNIA. Assim, com w. À sua frente, uma agenda de capa negra, canetas verdes e lilases. A sala é escura e o tom marrom, sonolento das paredes e dos estofados se difunde por todo o ambiente. A reforma foi nos anos noventa. Meu marceneiro jurava, na época, que mogno era a melhor madeira. Não estragava nunca. Fiz estantes, armários. Ficaram no apartamento que vendi. Já não me lembro bem do lugar, dos sentimentos que deixei. É impressionante como a vida se apaga aos poucos. Tudo tão sem sentido e rápido. Não pude organizar estes envelopes imensos, a pasta, o livro que leio. Faço muitas coisas ao mesmo tempo. Um esforço para não me perder, não gastar muita energia em encontrar-me, não me lembrar de mim. Deixo cair os envelopes. Peço desculpas e coloco a pasta e o livro sobre o sofá. Wirgínia ri. Digo a ela que trouxe minha mudança e volto para recolher os envelopes. São grandes e sem jeito. Envergonhado, pego os envelopes. Wirgínia ainda sorri. Eu me esqueço no sorriso de Wirgínia.

*

Naqueles dias, ela me disse que eu era seu ar, não imaginava a vida sem mim. Tantos anos e eu esperando uma chance. Não me dei conta. Gostava quando ela me falava de livros. Com os olhos brilhando, anunciava velhos, novos autores. Sempre gostamos de livros. Aquilo nasceu do nada, foi tomando fôlego, matéria, um ciclone, um tumor.  "Eu sabia de tudo", ela me confrontou. "Seus olhos não mentem", afirmava. Ela sempre soube. Eu me envergonho. Será que todos sabiam? Eu não queria que percebessem. Eu sequer queria sentir. Houve um momento, lá atrás, na academia, eu tive vontade de chorar. Sempre tinha, em toda parte. Como dizer? Mais um conflito, explosão nas vísceras. Talvez uma ideia, uma proposta. Eu a desenharia. Deitada no meu escritório, os olhos de Klimt. Em nome da arte. Ela deitada, entregue, vencida, minhas mãos, minha boca, por mim. 

*

Tenho a impressão de que Wirgínia me observa. Organizo os envelopes. Guardo folhas mais antigas. Talvez não sejam necessárias. Hesito entre guardar ou não o livro. Tenho vontade de reler "A canção de amor de J. Alfred Prufrock". Espero os "sussurrantes refúgios", talvez "tempo ainda para uma centena de indecisões, e uma centena de visões e revisões". Como T. S. Eliot. Wirgínia continua a pesquisar-me. Seu corpo exato não gosta de poesia, tenho certeza. Ela perceberá que sou um tolo de meia idade. Ela ainda sorri. Eu me distraio. Cheguei a acreditar. Seria possível ter quem quisesse. Bastava o amor verdadeiro, o desejo verdadeiro, a urgência, meus exageros. Errei. Errei muitas vezes, quase todas as vezes. Escolhi os cruzamentos.  Os sinais se abriram para os meus opostos. Wirgínia leva o indicador da mão direita aos lábios. Eu me esqueço nos lábios de Wirgínia.

*

Foi um acidente. Fantasia estendendo seus tentáculos sobre tudo. Era fantasia e era bom. Eu a queria nua. Seus gostos, o gosto doce de fruta vermelha. A seda da pele eu sabia, dos cumprimentos, dos acasos. Imaginava-me sob e sobre o sorver das mucosas, o desenho dos vértices desafiando a língua, a carne acolhendo-me na insanidade, no delírio, a voz no café vespertino. Um poema. As pernas, o calor, a visão de uma última curva do seio perfumado, o coração sísmico. Ser desejado, envolvido, búfalo sagrado e morto pela fome da leoa. O acaso e ela disse: "você, meu ar". Eu poderia ter quem quisesse. Era o meu amor.

*

Wirgínia, onde vive? Imagino seu trajeto para o trabalho. Ônibus, o carro à procura de alguma vaga. Estuda? E se a convidasse para ir a San Sebastian, jantar na Place de Breteuil ou no Bairro Alto, coisas distantes? Ela seria grata? Dividiria sua juventude comigo? Erraria terrivelmente os nomes, os gestos e as palavras até, depois, já perdoada, sufocar-me no fundo dourado de seus braços? Eu me esqueço nos braços ternos de Wirgínia.

*

Eu não podia pensar em outra coisa. Naquela tarde, eu saí em fuga. Veio o medo de ser a minha vez, a chance, o epílogo. O mundo se inclinou sob meus pés. Quando cheguei em casa, queria voltar no tempo. Devia ter dito tudo. Não. Não devia ter dito nada. Tinha que me jogar sobre ela. Deixá-la sem escolha, sem ar. Não era eu o seu ar? Afogá-la no beijo, no abraço, no que fosse. Naquela conjunção de nossos enredos. Não podia ter deixado que partisse. Eu, ali, com cara de susto. Ela sabia de mim. Eu nunca desconfiei dela. Éramos os últimos na terra das proibições. Cheguei em casa sem fôlego. O ar, eu o deixei com ela. Com quem o possuía. Os móveis não diziam nada. A solidão, o abandono ainda maiores. Tomei um, trinta uísques, um remédio para dormir. Acordei outro em outro mundo.

*

Entra um casal. São mais velhos do que eu. Wirgínia é simpática, mas não sorri como sorriu para mim. Encho-me de vaidade. Imagino que segredos guardam aqueles dois. Por uma fração de segundo, invejo-lhes a longevidade. Mas será que valeram a pena todos os anos que as rugas denunciam? Exploraram o extremo de seus escuros, deixaram veladas suas intenções mais escusas? Talvez tenham sido bons cordeiros, felizes nas escolhas azul-claras. Não demonstram muita intimidade. Sentam-se lado a lado e começam a passar as folhas das revistas. Não trocam uma só palavra. Há quem viva assim, na justaposição de silêncios, linhas paralelas. Wirgínia pisca para mim. Esqueço-me nos olhos de Wirgínia.

*

Voltamos a nos falar dias depois. Antes, só pelo telefone e com desconforto. Há coisas que não devem acontecer. Mas a disposição de entrar em guerra me queimava. Era como lava escorrendo pelos membros, dilatando as veias e eriçando os pelos e o desejo. Quando ela chegou, a minha impressão foi a de nunca a ter visto. Ela chegou outra. Era outra. Eu jamais seria o mesmo. Quis tocá-la e ela se afastou. Disse-me que eu era seu ar. Eu era ar. Somente. A nossa proibição. Éramos os últimos proibidos. Nunca seria possível, ela insistiu. Uma desculpa. O arrependimento? Nunca soube. Há diferentes formas de amar. Há os que amam e os que são amados, os versos de Florbela. Tenho vocação para vagar como as entidades incorpóreas. Não a culpo. Ela era corpo. Eu não. O nunca foi para sempre. Aquilo se repetiu tantas vezes. Tantas vezes. Éramos um mesmo discurso. E eu? Eu fui morrendo pouco a pouco.

*

Demora. Abro o livro. "Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo" — Eliot me atinge em cheio. Olho para Wirgínia. Ela atende o telefone. É ainda agradável. Wirgínia viverá para sempre, penso. Que bom para ela, para todos que a conhecem. Deve ser ótimo ter alegria de viver. Meu amigo diz que chuta a bola e está contente. Outro diz que corre. Não se lembram de ser tristes. Não amargam outros pensamentos. Vivem aquilo ali, o que o presente lhes oferece. Estão certos. Não há passado, não há futuro. O tempo é aquele em que se respira. O imprevisto espera, cai a qualquer momento e o porvir — curiosa palavra — não vem. Wirgínia desliga o telefone e pega uma bolsa. Tira de lá a lixa e se entrega ao ofício. Lixa as unhas com uma ligeira inclinação de cabeça. Extrema feminilidade no movimento trivial. Percebo que suas unhas são longas e não estão pintadas. Há lirismo naquele momento. Esqueço-me nas unhas de Wirgínia.

*

Aprendi a viver sem ela. Sem esperança. Ela me telefonava. Telefona. Deve ligar logo. Não sei como ainda não ligou. Tentei não a ver mais, ignorar suas ligações. Não houve como. Ela insistia e eu cedia. Ela insiste e eu cedo. No caminho, meu coração se encheu de terra. Terra vermelha como sangue. Fui perdendo a graça. Ela é essa terra estagnada no meu peito. Não pulsa, apenas fica lá. Ela não sabe. Não direi. Nunca mais houve ninguém. O deserto é inteiro meu. Ainda falamos de livros, de filmes, ela me conta coisas, rimos. Não presto atenção. Nunca mais ri de verdade. Tudo é mímica. Meu nome, entreguei-o às paredes do nada.

*

Lembro-me deste corpo que me leva e seguro firme os envelopes. Wirgínia guarda a lixa. Terminou com as unhas. Suspira. Wirgínia está linda suspirando. Quase me esqueço no suspiro de Wirgínia. Toca o interfone. Com delicadeza, ela assente com um murmúrio. Um código entre eles. Wirgínia levanta a cabeça e passa a mão pelos cabelos pretos. Gostaria de me esquecer nos cabelos de Wirgínia, mas eu pressinto o próximo passo. Seguro firme os envelopes. Eu, que morri tantas vezes, levo uma sentença definitiva de morte. É certo o diagnóstico. Wirgínia, vagarosamente, vira-se em minha direção e, pela última vez, sorri: "é o senhor, o doutor está esperando." Levanto-me. Levo os meus envelopes, a pasta, o livro, minhas lembranças. O esquecimento absoluto logo virá. Eu sei. Eu quero.


 

 

 

 
 

dezembro, 2012

 
 
 

 

 
 

Alberto Bresciani (Brasília - DF) é poeta e magistrado. Tem poemas e contos nos portais Alguma poesia, CronópiosMusa RaraAntonio Miranda e em outros pontos da internet. Os jornais Rascunho e Correio Braziliense e a Revista Macondo de Literatura também veiculam seus escritos. Em 2011, publicou Incompleto movimento, poesia (Rio de Janeiro: José Olympio). Escreve o blog Nóstres.

 

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