O romance Retornar com os pássaros (Leya, 2010), de Pedro Maciel, é um tratado dissimulado de pânico, réquiem para o pensamento, nostalgia da aurora da filosofia, lamento trágico do desamparo, das raízes cortadas, ode ao fim, em prosa poética da mais alta voltagem. Sim, somente poetas ouvem os ruídos silenciosos do protagonista de Retornar com os pássaros.

Leio como se bebesse em pequenos goles um estranho absinto, um abismo, uma química outra, técnicas de voo até agora desconhecidas. Fios invisíveis se desprendem feito espíritos perdidos, de  seus outros livros, reflexões, assombros que vão se amalgamando e desdobrando, o texto seguinte trazendo o sopro tênue do anterior, numa técnica de labirinto sem Ariadne. Somos o monstro, minotauro caçado, perdido pelos labirintos celestiais, e somos Teseu, o herói, a querer estranhamente aniquilar-se, instalar em si outro eu que não há. Metamorfoses... Tudo se dizendo e desdizendo em dobraduras, deslocamentos infinitos pelo desconhecido, um sempre "lá", um mais e mais além...

"Desorientar-se no Ocidente" é estar todo o tempo em processo de desenraizamento. O desenraizar-se é a dor maior. Esquecer de si tal como se pensava ser, ruindo, no indeterminado... "Entre o sim e o não existe um vão", diz a canção "Chavão abre porta grande", de Ricardo Guará, um dos parceiros de Itamar Assumpção.

Um baque, é esse título Retornar com os pássaros. O autor dá asas ao voo cego e sozinho, giro sobre si mesmo, viagem perdida... Ah, quem dera um barqueiro, um ombro, um asilo em algum canto do Cosmo...

É poesia em movimento, como se toda a história do mundo fosse um filme sem fim, tipo aquele filme em que no momento mais crucial, a gente se levanta e, assustado, sai...

Pedro Maciel ouve o rumor do universo através da passagem de uma nuvem; e no vai da música se pergunta: como não deixar pegadas na terra? Como não sentir saudades? Como não se deixar enganar?

Leio e releio Retornar com os pássaros talvez para sentir melhor a sonoridade dos textos, a poesia que pulsa, o delírio febril, a fluidez, a sintaxe vertiginosa... Releio muito na condição de mulher poeta, releio amarga, desfeita, sem me dar trégua a esse humor apurado, a esse desespero classudo, jogo alucinante de palavras numa combinação tão reveladora que as repetições, essa obsessão, se transformam em reinvenção do medo ancestral, murmúrios do outro lado do espelho, tratado quântico, fábula perturbadora dos abismos de existir.

 

 

 

Trechos de Retornar com os pássaros

 

 

71

 

 

(...)

Deito-me sobre os meus escombros. A memória e os amanhãs são simulacros da imaginação.

Mas que me importa agora, dizia de si para consigo.

Que tenho eu a ver com o que acontecerá ali e com o que acontecerá aqui?

E por que será que me custa tanto deixar esta vida?

Há de fato nela qualquer coisa que eu não compreendia e que continuo sem compreender.

Vivi em sonho?

 

 

 

67

 

 

(...)

Deve haver uma vida que nos viva enquanto a morte nos consome, disse-me o primeiro morto que encontrei na encruzilhada dos entretempos.

A cruz é o contratempo do homem. Mas, confesso-lhes; não me canso de viver após a minha morte.

(...) O que conta é a eterna vivacidade: que importa a vida eterna ou mesmo a vida!

Aqui não há deus ou diabo, espaço ou tempo, encarnações ou desencarnações.

Não estou perdido. Estou aqui!

 

 

 

49

 

 

(...)

Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos.

Mas quem fala não é quem escreve e quem escreve não é quem é.

Toda narrativa romanceada é uma fábula da realidade ou um sonho dos nossos antepassados.

O sonho é sempre uma ilusão de outra ilusão, assim como a ilusão é sempre um sonho de outro sonho.

 

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O livro: Pedro Maciel. Retornar com os pássaros. São Paulo: Leya, 2010.

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maio, 2012

 

 

Neuzza Pinhero. Cantora, compositora e poeta. Participou da chamada Vanguarda Paulista, com Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, em festivais e trabalhos como os cds A saga de Clara Crocodilo e Beleléu, Leléu, eu. Em 2007, lançou o cd autoral Olodango. É autora de Pele&Osso, vencedor do Prêmio Nacional de Literatura Poeta Lúcio Lins (FUNJOPE-João Pessoa-2008). Spirituals do Orvalho: www.spiritualsdoorvalho.blogspot.com | www.myspace.com/neuzapinheiro.

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