"Ser tão

nas ruas

 

Sertão

nas ruas"

 

 

["Paisagem", Eunice Arruda, in À beira, 1999]

 

 

Em fértil diálogo com a tradição histórica e com o arejamento trazido pelas vanguardas, Eunice Arruda tem revelado, ao longo de cinco décadas de bem sucedida trajetória poética, elementos que foram, aos poucos, se convertendo em expressivas marcas de seu intenso trabalho com a linguagem, de sua dicção estética própria, erigida por contrastes entre pausas e espantos, silêncios e reflexões lúcidas, algumas desconcertantes. A obra desta importante poeta paulista, dispersa em 15 livros individuais — editados desde 1960 até 2011 — agora pode ser lida num só volume. Acaba de ser lançado Poesia Reunida (Ed. Pantemporâneo, 2012),  livro que contém todas as suas publicações anteriores: É tempo de noite (1960), O chão batido (1963), Outra dúvida (1963), As coisas efêmeras (1964), Invenções do desespero (1973), As pessoas, as palavras (1976), Os momentos (1981), Mudança de Lua (1986), Gabriel: (1990), Risco (1998), À beira (1999), Memórias (2001), Há estações (2003), Olhar (2008) e Debaixo do sol (2010).

 

 

 

 

A leitura da poesia de Eunice Arruda deixa entrever, de modo inquestionável, o tecido de condensação máxima de linguagem  somente alcançado por raros mestres. A conjugação de elegância e sutileza desvelam a força de um fazer poético que se irrompe cada vez mais depurado, reafirmando a cada obra, sua proposta de valorização de pausas e de silêncios, de espaços em branco e deslocamentos sempre essenciais à sua construção. Na estrutura verbal desta poética, nada é gratuito ou supérfluo; ao contrário, os elementos são conectados como fibras de um universo embrionário e imagético que atinge o ápice de expressividade quando a palavra "funda o lugar onde / diamantes adormecem" (Pedido, p. 58, Debaixo do Sol, 2011).

Estes claros pontos luminosos, que a aproximam da poética de Giuseppe Ungaretti (1888-1970), estão presentes em toda sua obra, assim como o pensamento oriental inserido na tradição dos haicais, em que os jogos e alternâncias entre espaços, estados e distâncias — longe-perto-longe — abrem-se para a beleza da iluminação zen-budista. Eunice Arruda é também haicaísta (tendo publicado dois livros inteiramente dedicados ao haicai — Há estações (2003) e Olhar (2008) — e sabe aliar a tradição de mestres como Matsuo Bashô (1644-1694) e Kobayashi Issa (1763-1827) à tonalidade de suas reflexões existenciais sempre renovadas de densa perplexidade.

Em Eunice Arruda, mesmo os poemas mais longos são elaborados com respeito e devoção ao silêncio, como elemento ínsito ao processo de construção e que nele deve permanecer, por conter em si toda a sonoridade do verbo. Ecoa, neste ponto, a célebre reflexão de J. P. Sartre: "O silêncio é um momento da linguagem. Calar-se não é ficar mudo, é recusar-se a falar e, portanto, é ainda falar". Nesse diapasão, as pausas que contêm em si o avesso de sólidos, sóbrios e muitas vezes despojados grafemas, não são estáticas, mas geradoras de momentos de tensão, que desembocam em figuras de sono, rostos, praças, agulhas, pombas, insetos, nascentes de rio, linhas de metáforas sempre bem dosadas.

A poeta sabe esculpir e fotografar o mundo, construindo e reconstruindo, num ritmo preciso, cada um de seus gestos de gênese. Ler os poemas de Eunice Arruda é caminhar com seus movimentos sóbrios e paradoxalmente provocantes, vibrar em desconcertantes paisagens, das quais um excelente exemplo é o breve poema escolhido como epígrafe deste texto: "Ser tão / só / nas ruas // Sertão / só / nas ruas" ("Paisagem", Debaixo do Sol, 2012). O simples espaçamento entre as consoantes "r" e "t", no vocábulo sertão, partilhando-o, subdividindo-o, com a naturalidade gestual característica da poeta, gerando o sentido completamente diferente, é um eloquente índice de outra das importantes vertentes de sua obra — a exploração da polissemia, a navegação pelo universo anagramático, em toda sua potência e fecundidade. O mesmo procedimento é adotado no poema Formas, a seguir transcrito:

 

 

"presos

os pássaros

cantam

 

presos:

os pássaros

cantam"

 

 

["Formas", Debaixo do Sol, p. 50]

 

 

Trabalhando em constante refinamento de linguagem, potencializando a própria concisão verbal, sempre adequada a seus propósitos estéticos, penetrando na fisicalidade das palavras, a poeta também é tragada pelo "sentimento do mundo" drummondiano, e dialoga com as fatias de  realidade que circundam seu pensamento. Como exemplo, cito um fragmento do poema "Crianças", do livro Risco (1998): crianças // feitas de interrupções / — nunca atingidas — desatam soluços / abrem feridas / na tarde // Corrompem meu sono / e não se saciam" (Poesia Reunida, pp. 152-153).

 

Eunice Arruda em dois momentos do lançamento do livro Poesia Reunida [com Beatriz Amaral] 

 

 

É possível identificar, também, no texto de Eunice Arruda, um doce olhar de leveza irônica que, remontando ao humor oswaldiano dos primeiros anos modernismo e à genial sensibilidade leminskiana, nos traz micropoemas como: 

 

 

Sem saída

A porta da

vida

não tem chave

 

Se tem

não abre

 

 

Nesse rumo, sem ambivalências, mas na sábia confluência de tantas tradições, na vigilância serena do próprio instrumento verbal, nos compassos e trilhas de sua singularidade e de sua música, navega a palavra poética de Eunice Arruda, num rico oceano de imagens em que, ousada e afinadíssima, traz luz ao silêncio, dá vida às pausas e enriquece os recursos fônicos, compondo pluripoesia para expandir o tempo de todas as estações.

 
 

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O livro: Eunice Arruda. Poesia reunida. São Paulo: Ed. Pantemporâneo, 2012, 288 págs.

Para comprar, tel.: (11) 5084-4544

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setembro, 2012
 
 

   

Beatriz Amaral. Mestre em Literatura e Crítica Literária, musicista e escritora, publicou nove livros, entre os quais Planagem (1998), Alquimia dos Círculos (2003), Luas de Júpiter (2007).
 
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