©renée
 
 
 
 
                 

 

A ideia de que comprar livros é necessariamente comprar livros que estão na moda, coisa de consumidores superficiais mais que de leitores, pouco importa para os frequentadores de sebos. Um bom livro — diz-se isto como clichê, mas vale repetir porque é verdadeiro — não tem tempo.

Para o leitor de verdade, pouco importam a belíssima capa, a edição impecável, a coisa feita para dourar a estante. Claro que tudo isso é bom, mas, se faltar, dane-se. O verdadeiro leitor é um obcecado, um compulsivo, mas por boas razões — ama certos autores e entra em transe quando encontra alguma coisa deles que lhe promete uma nova jornada num mundo estético conhecido e consagrado por muitas leituras ou, melhor, moradas. Porque, na verdade, moramos por algum tempo em certos livros, ouvindo as vozes estilísticas de certos escritores que amamos como uma canção de ninar para adultos feita por uma voz familiar cuja doçura e cuja autoridade veneramos. A casa onde penetramos para ouvir essas vozes, ainda que fugaz, parece a coisa mais confortável deste mundo.

Não importa que venha em edições às vezes despencadas, com páginas envelhecidas. Contanto que esteja lá, inteira e legível, a história que nos interessa e a voz ímpar de quem a conta.

 

 

Diálogo de insanidades

 

Um certo suicídio, de Patrícia Highsmith, foi um livro que encontrei, em edição da Nova Cultural já bem gasta pelo tempo, num sebo que não me recordo. O título no original é melhor, mais poético: Those who walk away.

O cenário é Veneza, mas se a história acontecesse em Nova York, Zurique ou Recife, daria na mesma: Highsmith na certa a situa em Veneza é por ironia (a ironia muito cruel em que se especializou, aliás). Ela não quer pintar cartões postais de best-seller barato, coisa a que Veneza, como toda cidade bonita famosa, muito se presta, pela facilidade com que provoca um lirismo venal de folheto turístico capaz de satisfazer quem não quer sair do óbvio.

No caso desse livro, pode-se pensar é em outras Venezas: naquela da novela célebre de Thomas Mann, onde o escritor Von Aschenbach, ao chegar, já é acolhido por um gondoleiro sórdido ou no mínimo ambíguo, que na verdade não pertencia à corporação, era um clandestino, ou naquela do arrepiante Inverno de sangue em Veneza, filme de Nicholas Roegg com Donald Sutherland e Julie Christie que torna a cidade um pesadelo difícil de esquecer.

A Veneza de Highsmith também é suja, sombria, um lugar meio parecido a um cenário tortuoso onde a trama avança sinuosamente, no ritmo da aflição de dois personagens estranhos: um homem que perdeu a mulher (ela se suicidou) e o seu sogro, que acha que a filha se matou por culpa dele e quer matá-lo também. O curioso é que o genro está sempre se colocando no caminho do sogro. Ele acha que é possível explicar àquele homem furioso que é inocente. O resultado de seus protestos de inocência é um só, repetidamente — seu sogro faz nova tentativa para matá-lo.

É como se o viúvo fosse incapaz de entender que não conseguirá nunca dissuadir aquele sujeito tomado pelo rancor vingativo e, no fundo, talvez ele queira ser castigado.

Não fica claro para o leitor quem era a mulher e por que se matou. Ora, por que alguém se mata? Ela era rica, bela, jovem e "tinha tudo para ser feliz" pela cartilha convencional. Mas a vida, que ninguém se engane, é um absurdo incômodo para todos, mesmo para os que dispõem de beleza, riqueza, juventude, e Patrícia sabe disso como poucos. O viúvo também é rico e pode ficar carpindo (ou saboreando morbidamente) seu luto longe da América, tentando repensar sua vida, indo de encontro ao sogro e sendo quase assassinado. Sobrevive, mas não sai de Veneza. Fica observando à distância o seu perseguidor, sabe que este também nunca sairá de seu rastro e deixa-se obcecar por ser objeto de uma caça homicida.

Nesse jogo incomum de "gato e rato", os dois homens são como que faces complementares de um mesmo enigma, um suicídio que jamais ficará claro. A perversidade de Highsmith, uma das razões mais fortes de seu fascínio, é essa de fazer com que o leitor conviva com personagens que se instalam na sua loucura como numa coisa confortável e vão deixando sua vida, suas rotinas, se regularem por sonhos e apetites difíceis de definir, quanto mais de controlar, situados na zona moralmente cambiante de uma demência tão peculiar quanto um sinal de identidade. Essa demência se banaliza, mas nunca perde seu potencial de veneno e morte, tampouco perde seu encanto, e toca ao leitor compartilhar de desejos e alucinações que darão em fins imprevisíveis.

Claro que o leitor que procura soluções artificiais, fúteis, satisfatórias, mas descartáveis, ao gênero do policial tradicional, não terá nada a ver com o mundo de Highsmith, pois ela é rigorosamente amoral e duvida de tudo. Não nos fornece nada senão incômodo, mas numa arte que seduz pela construção e o charme escorregadio.

O segredo da sedução de Um certo suicídio talvez consista em tocar na falta de sentido básica de nossas vidas. Pensamos agir logicamente, mas agimos como doidos mansos, esta é a verdade. Não é preciso que Freuds e afins nos tenham dito que os motivos de nossos atos são inconscientes — sabemos que eles podem ser muito mais obscuros do que imaginamos, o que não nos impede de, vivendo, sofrermos as consequência dessa obscuridade e sermos também atraído por ela em doses que gostaríamos que fossem administráveis, mas não são. Ou só o são de modo muito irônico. A doideira está ali, instalada na ampla banalidade do dia-a-dia, que a assimila, disfarça, atenua. A esquisitice fundamental continua a agir, mas o esquisito é reconfortado por suas rotinas, assegurado pela existência familiar de outras tantas esquisitices.

O que existe de fato é um verniz de racionalidade que só faz complicar as coisas, porque nos leva a acreditar que estamos agindo corretamente. O genro, ao se apresentar seguidamente ao sogro, leva de cada vez um monte de argumentos em favor de sua inocência, argumentos que o outro nem ouve, visto que só vê em sua frente alguém que gostaria de despachar para outro mundo.

Na verdade, os dois remoem a morte de uma mesma pessoa que mal conheciam, embora fossem, respectivamente, marido e pai dela. E é desse tipo de diálogo impossível entre duas insanidades que a arte de Highsmith se nutre. A racionalidade, por ironia, acaba sendo só uma forma de agravar as coisas. Ela acentua, na loucura, a propensão a achar que delírios têm validade lógica a mais óbvia e é inaceitável que os outros não os compreendam.

Não creio que o leitor encontre Um certo suicídio com facilidade por aí, a menos que tenha sido reeditado e circule com nova capa. É um romance muito bem construído e original, que seria preciso ser mais conhecido e não me parece que os apreciadores da obra de Highsmith o conheçam ou falem muito dele. O remédio é procurá-lo, e ter sorte na procura. Também aconselho, no momento, a leitura da biografia A talentosa Highsmith, de Joan Schenkar, um calhamaço que destrincha vida e intimidade da escritora com rara competência. É fundamental para entender a autora que havia por trás desses livros desvairados, mas sempre sob aparência enganosamente convencional de tramas policiais.

 

 

 

 

 setembro, 2012