Cavalos seriam deuses se desenhassem

 

 

acenda o cigarro,

agora que o sol vai caindo

guarde um resto de calor impreciso,

jogando as cinzas no chão.

observe as bailarinas que chegam,

a luz que se acende sobre elas,

a lona preta estendida como palco improvisado,

mas antes do espetáculo,

que provavelmente será uma bela merda,

vá para o hotel que te espera

caindo aos pedaços

e sob o ar condicionado, mastigando fritas geladas                         

                           

somente então se pergunte

quando foi que o Medo chegou

                           

 

(OitO-OlhOs entra na sala:

vem aqui na frente

pra que todos te vejam.

 

você está vendo,

o Medo?)

 

 

 

 

 

 

*

 

Sangue

de espelho líquido.

 

Os intermináveis gestos

opacos

da cidade que se joga

sobre os meus braços

como chuva

de cacos de vidro

 

meus olhos que afloram

como bolhas

de um lago translúcido.

 

o reflexo do seu sorriso

com uma gérbera no espelho

do elevador vazio.

 

Embriagar-se de vermelho

dos sinais, ser menos

o anônimo das ruas

rasgar a pele e tatuar o vento,

sumir do mapa —

 

um projeto de lucidez

infalível.

 

 

 

 

 

 

*

 

Andei comendo silêncio

Desde o dia em que nasci.

 

Ele se tornou um grudento

Novelo feito com teia de aranha

Preso na garganta:

 

Isso o que você vê

Envolvendo as palavras

Que saem de minha boca

Não são flores negras

Nem a contraluz de astros negativos.

 

Era pra ser um poema —

 

E nunca ficará pronto.

 

 

 

 

 

 

Triunfo

 

 

Foi ali mesmo

                  

Em frente à fábrica de biscoitos

Triunfo

A garota passou sorrindo nos óculos

De astronauta

E cuspiu a granada

Na outra boca.

Os estilhaços se espalharam pelo corpo

E surgiu este porco-espinho

Que vocês agora espiam.

 

(Ele antes perguntei

A dois amigos se dali

Naquela paisagem vermelho-escuro

Debaixo do mato no calor infernal

No fedor de bolacha de morango

Qualquer um poderia

Dizer com certeza se o outro lado

Do deserto

Existia de fato ou era miragem

E o primeiro apontou o indicador

Para a própria orelha

Girando no sentido horário

E o outro, o terapeuta  Oito-Olhos

Lamentou a devastação do

Eu girando como água no ralo da pia, sempre no mesmo lugar

Inconformado no seu narcisismo

E sentenciou:

Guerra é continuação

Do narciso por outros meios)

 

Cheguei em casa na dúvida

Se o deserto das bolachas Triunfo ainda existia

Alguém perguntou no dicionário

Qual seria a melhor palavra para cruzar

A fronteira

Caminho, ponte, trilha, istmo ou passagem

 

A palavra estava morta

Na ponta da língua.

 

 

 

 

 

 

Desterrado (Um LP)

Lado A (A situação hermética)

 

 

— Se você morrer hoje,

flamívomo,

veias de vidro,

hidromel,

Azar,

vai ficar rolando entre as pedras do caminho

sem descanso, um nome qualquer,

seu nome, estas agulhas continuarão

ferindo sua boca por dentro, até depois da morte.

este é o castigo, distraído.

os piratas chegaram pelas tubulações

junto com os grifos mercadores de sangue congelado

e levaram todas as letras,

mesmo as mais secretas, mesmo as trancadas nas gavetas,

mesmo as indefinidas meras manchas

de quando você pensava que era um estúpido insone

sonhando em ser a anemia de um poeta oriental.

 

 

 

 

 

 

Lado B (O hermético situado)

 

— com seriedade

ela punha a luva de borracha

o som era um gatilho

seco sobre a pele, as mãos ao alto

em oração ou assalto:

 

— só vai ser uma picadinha

 

(não sei porque, ela sorria)

 

 

 

 

 

 

Eu, Mazagão.

 

Advertência: isso não é lirismo, é história (mito). Mazagão foi uma cidade-fortaleza na guerra contra os infiéis. Não deu certo. O Imperador decidiu transferir a cidade, inteira, da África para a Amazônia. Os habitantes não podiam escolher, eram sujeitos ao (súditos). Até que Dona Maria, a Louca, dez anos depois de viagens e muita escrotidão, decretou: vocês estão livres de Mazagão. Depois disso, deles (os súditos) não se tem mais notícia.

 

Isso aqui também foi escrito segundo os parâmetros da metodologia da resenha surrealista, resenhei o livro de Laurent Vidal. E pensando bem é lirismo sim, o velho esquema romântico de despertar/simpatizar/confundir-se com os mortos. Correspondências.

 

 

de repente você acorda

há menos de cinco minutos pensava que desta vez sim

conseguiria dormir,

mas de repente você acorda,

 

abra a janela e

observe o rebanho que mastiga o capim

e o som dos dentes e da saliva no verde: rio fluindo

rio de pedras polidas fluindo no esquecimento,

 

mas você não

você não consegue dormir porque sabe que se esconde

numa fortaleza, tão complicada e delicadamente construída,

que se tornou sua prisão desconhecida, em que você trafega como um rato,

um rato com memória,

um rato com nome próprio.

 

a infantaria ainda não foi inventada, você tem que se virar

com estes canhões enferrujados e um crucifixo

 

fodeu,

 

eles estão lá fora, mais maneiros e manjados que você

desta vez você se fodeu.

você vegeta como um cão de guarda entre os muros de pedra

 

— e só agora te avisaram.

 

eis o plano de fuga:

 

o Imperador ordena, não a dor, a dor de cada um

que se foda, dançando entre os dentes, a dor, o grito que silencia,

o silêncio que se grita, foda-se, o Imperador ordena

tome conta dos seus pertences, do seu álbum de fotografias,

guarde com zelo o nome da família, vele pela memória de Mazagão,

tome a canoa e saia pela porta minúscula que se insinua

à beira-mar. e não exulte, você não vai afundar no Lethes.

você vai é parar no meio de ruínas

numa cidade bolorenta, sangrando à virgem que se arrombou

num terremoto daqueles, uma puta caçada por Sacerdotes,

uma órfã sem eira nem beira, um convento derrubado,

a porra de uma cidade fodida, é pra onde você vai.

e não se misture com seus habitantes,

até nesta merda de mapa você só está de passagem.

eis o plano de fuga.

 

— e só agora te avisaram.

 

depois, agora você vai se cagar no meio do mar,

rumo aos trópicos, aqueles mesmos

em que centauros comem o verdadeiro fruto proibido,

lá permitido (as mangas-rosas altas e saradinhas),

terra das grandes cachoeiras e dos carimbos.

 

mar, que belo e verde!

 

só se for na beira da praia, lá dentro

a pura monotonia, os dentes da maresia,

que absolutamente não canta, saltam do verde e liso mar

e ferem seus olhos, lambem seus dentes, apodrecem sua boca,

uma cloaca, lábios de labirintite.

 

me fodi de novo.

 

oh, quanto sal, são lágrimas de um boçal.

finalmente você chega à nova morada:

madeira podre, infestação de formigas, casas caindo,

chuva torrencial, medo dos canibais que inexistem

mesmo assim te mordem, roem dentro de sua cabeça,

e você ainda a preserva, a memória de seu passado

presente de rato com nome próprio.

 

— Dona Maria, a Louca, mudou de idéia,

reconhece em você a triste marionete nas mãos do destino,

esta bosta de metáfora com luvas negras e frases-feitas desenhadas,

há de liberá-lo, pode ir, o mundo é seu.

 

 

 

 

 

 

*

 

A orquídea finge ser

Jesus plastificado

Como um galã esquecido

Dos filmes de sábado à noite,

Com o charme dos fumadores de haxixe,

Num convite estendido

Na pintura desbotada, azul.

 

A orquídea se faz passar

Por um bêbado que se emociona

Em lágrimas de cerveja

E se esquece da severidade imposta

Pela vida de imigrante e office boy

Ex-morador do zoológico de Brasília.

 

Atônitas, crianças

Que medem a distância das estrelas

Correndo com lanternas

Lêem Mein Kampf nos bueiros,

Livro em que a palavra

Deus é repetida mais de vinte vezes

Pelo autor que só tinha um testículo

(As crianças precisam atestar

O mal frente à inocência

Despetalada a cada dia):

 

As orquídeas colonizaram o mundo

Por meio de disfarces:

 

A imitação imperfeita

Das flores

Desdobra primaveras.

 

 

 

 

 

 

Não tenho minha Dicção

 

"Tempo é criança que chora

quando quebram a regra do jogo

e logo depois se esquece".

Heráclito de Éfeso

 

Tempo é jogo, ritmo

de flores indo e vindo

vozes na varanda

latas de cerveja sobre a mesa

(tempo é outro dia

outras latas

vazias entre as flores frias

e o cachorro, de salvo-conduto

vinha

vinha e caía —

 

tristes flores de Campinas).

Ou então, noutro lugar

os últimos bêbados

limpam mesas e cadeiras

com os garçons, cansados —

poesia social, merda de salário

solidariedade de bêbado

revolução de boteco

também sou verde por dentro.

 

(Bar fechado, mesa vazia, varanda —

Ninguém.) Agora

 

segundo o manual de instruções

acenda uma espiral

no círculo riscado em cinza

sobre a prateleira de alumínio branco

e florescerá a garrafa de vinho

com a gérbera amarela

à frente de um livro

 

Fragmentos do discurso amoroso neste momento de onde ela está, a cidade mais próxima a 18 horas de barco. Incomunicável. E putz naquele dia ela acendeu o cigarro debaixo do Ipê Amarelo, vocês não vão entender.)

 

Ou quem sabe ainda

sob o sol inclemente

à procura de cola de sapateiro

ou carona o que pintasse primeiro

tudo pra vencer o dia

vomitando versos

sobre as putas de Brasília

no sopão de 24 horas

ou talvez na praia suja

dois bêbados juram

que o saxofone do é o tchan

é o calabouço da cultura brasileira.

 

 

E hoje na varanda (dessa vez no décimo primeiro andar) você olha a Matrona de óculos escuros que olha o mendigo que olha a bolsa e uma citação a mais e o abismo olha dentro de você e hoje na varanda você debate com OitoOlhos s.a., o cara é pós-moderno e não sabe, na hora de rezar escolha o Salmo 32 não faça como o cavalo e o jumento que não conhecem freio e rédeas o texto saiu truncado (será boicote?), por uma nova etiologia (o texto saiu, truncado será boicote?): narcisismo sem ego.

 

Mas não, o calabouço

era apenas a sala de espera e

as vozes, as latas, os livros e as flores

sumiram de vista.

Você anda pela casa

como um caçador à procura de rastros e

 

o tempo diz: o rastro é você &

você nem tem dicção própria

pra reclamar.

 

 

 

 

 

 

A irmã siamesa da minha namorada

 

         Quando eu conspirava com os pássaros bêbados do Jardim Oricellari, a irmã siamesa da minha namorada me fez uma visita. E eu nem sabia que minha namorada tinha uma irmã siamesa. Todo o ônus estético da cirurgia de separação dos corpos ficou por conta da tal irmã. Minha namorada é linda, pele elástica e suave, a sua irmã tem a metade direita da cabeça cheia de manchas vermelhas, a pele enrugada, como se ela tivesse passado por profundas queimaduras. A pupila de seu olho direito é prateada, quando ela fala soa como um dueto desafinado, porque sua voz é estranhamente dissociada em duas. A irmã siamesa da minha namorada se ofereceu para ser minha amante. Nela, eu poderia confiar cegamente, porque o sofrimento e a destruição levariam à virtude. Minha namorada, disse a sua irmã, tem seus momentos de maldade: a beleza leva a um tipo de inocência um tanto perversa. E eu sofreria muito por causa disso. Isso me soou estranhamente a um canto de sereia, ainda que lodoso, sacrificial. Afastei de mim o cálice, despertando para a lucidez do dia. (Mais tarde, descobri que a irmã siamesa de minha namorada tinha chegado no porta-aviões de Noé. Sua verdadeira intenção era bisbilhotar, descobrir como estávamos vivendo, nós, os seres marinhos viventes do dilúvio).

 

 

 

 

 

 

Possuído pelo nome

 

 

Eu não me lembro

Mas sei que estava lá

No dia da repartição dos nomes

Das parcelas de terra que a cada um caberia

O solo para pisar

E a terra que se reparte em água que se reparte

Em ar que se reparte em fogo que se

Reparte em alma

Que se respira.

Meu nome caiu em mim

Como alguém cai em si

Ao se apreender no nome doado

Onde antes havia gruta — voz gutural —

Mancha imortal surpreendida

Em traços inscritos em pedra

Que acenderam no corpo o sopro

Criador das imagens que são você

Seu você mais profundo

Abismo tão distante quanto as últimas constelações

Mas que é você, a quimera presa em seus ombros,

O pássaro rosa-azul, de motivos florais nas asas,

O pássaro que absolutamente não canta

Mas salta de seus olhos enquanto você dorme,

Aninha-se nas asas do Simurg.

 

É com este nome que lhe caiu como uma pedra

Como um soco na boca

Do estômago

Que você se depara no hipermercado

Com a mulher de dentes cinzentos

De quem mastigou cinzas de cigarro o dia inteiro

Usando um chapeuzinho meio caído de lado

E um vestido puído ex-rosa meio azul

Mulher que te observa como Adão a seus animais anônimos

E vê você pegando entre as prateleiras coloridas

Sob a voz que anuncia o melhor ou

Como ser feliz usando o plástico de matéria-prima

Os pacotinhos violeta de ração para os gatos

Sabor carne, sabor frango, sabor salmão

"O mesmo sabor de patê, mas com menos sal"

A bruxa explica.

 

O mesmo nome no outro

Dia à noite

Vê com você a Sempreverdejante

Mestre que ensina o caminho

Das flores negras presas na sua garganta

Mestre de pele dourada com arabescos de flores

Pele boa de morder

De Sofia Eterna

Destruidora de homens, destruidora de cidades,

Destruidora de navios,

Arrebatadora do silêncio, solapadora da auto-suficiência

Com um sorriso

Com um jogo extremo de percussão: 

"Esta música infernal", dizia o capuchinho Cavazzi.

                  

Tudo menos o poeta.

                  

Quero me redimir.

 

 

[imagem ©siggi churchill]
 
 
 
 
 
 
 
 
Daniel Faria é historiador e poeta. Autor do livro O mito modernista, publicado pela EdUFU, em 2006. Publicou o livro de poemas Matéria-prima, pelo projeto Dulcinéia Catadora, em 2007. Foi incluído na Pequena cartografia da poesia brasileira contemporânea, organizada por Marcelo Ariel e editado pela Caiçaras (2011). Seu Livro de orações sai em 2012 pela Série Caixa Preta, da Lumme. Outros textos de sua autoria podem ser encontrados no blogue Língua Epistolar: linguaepistolar.blogspot.com.