Silvaredo, livro de Wilmar Silva, que do referido título, encontramos os desdobramentos possíveis de um Silva, vários Silvas, uns silvas, um silvo, uma selva, um ar, árido, um árvore, uma árvore, arvoredo, si, lá, ré, dó, Silverado. Enfim, o Silva engaiolou flores de passíveis pázsaros encriptados em arranjos e rearranjos de pá-lavras colhidas de um tempo perdido de uma vida rural em pleno mundo materno, onde o útero é caverna e o fogo são dados. Silvaredo abarca cinco livros como em uma Torah de estilos e re-configurações iconográficas que se entrecortam e permitem uma a outra fecundar e desvelar ao mesmo tempo um grande movimento de contração e retração da linguagem.

 

 

Arranjos de Pássaros e Flores

 

Dentro de um total de 310 versos divididos em 31 poemas de 10 versos cada, cuja nominação consiste de um arranjo de algum pássaro e uma flor para cada dia do mês. Wilmar dialoga com 31 aves que junto consigo mesmo, representado na figura do pronome pessoal da primeira pessoa Eu, em suas 96 aparições, em todo o escopo do texto, evoca a figura de um coro que dentro de suas 32 vozes se metamorfoseiam ovidicamente em Wilmar-Aves ou Aves-Wilmar. Movimentos fantasticamente co-reordenados indo e vindo por várias e todas as direções de um ou todos os Eus. A possibilidade de se tornar um com a natureza dá ao Silva aspecto demiúrgico diante do ato testemúnico que é a comunicação através e para além das coisas. O poema ou poemas poderiam se perder a não ser pela insistente afirmação do Eu (quase como uma tônica dentro de uma estrutura tonal), que se apresentam dentro de vistosos arranjos de Silva-Flores ou Flores-Silva. Aqui, neste território que é do homem, das plantas ou das feras, Wilmar não como homem-lobo, mas sim, como homem ou homens-pássaros que desesperadamente tentam tocar o astro regente e que se vêem seduzidos por teu narciso que aflora dentro da visão de menino-homem diante de um mundo intocado. O metamorfo ou licantropo devora o ventre e se devora com fome antes desconhecida e agora percebe que o descanso se manifesta para que apenas o silêncio preencha a concha de possibilidades que é o vazio. A necessidade da comunicação e da compreensão destas vozes babelicamente ornitóides irrompem o tecido das flores e cáusticamente se fundem em uma linguagem coreográfica de corpos floreo-passarentos gozando pólenes nos lábios de Ceres.

  

 

Solo de Colibri

 

34 poemas com 7 versos, no último tendo 8, num total de 239, sendo os nomes como numerações ordinais seguidas da palavra solo, numa contagem que inicia no zero e termina no trigésimo terceiro. A máscara do Fauno se faz presente para satisfazer e construir os vários níveis da eroticidade pulsante de membranas, veias, líquidos e odores sensitivo-sexo-sinópticas. A memória se embrenha em imagens míticas dentro de uma cidade decadentemente defasada e em fases. Um quarto de hotel de maravilhas, próximo a um venerado, fálico e ancestral obelisco se tornam uma paradisíaca ilha mediterrânea dos tempos de mulheres guerreiras, monstros marinhos e gigantes. Aqui onde musa, ninfa, prostituta, amante ou mera desconhecida se tornam uma com o Fauno/Árvore/Pássaro/Sonhador Eloquente que fastiga perante a Ceifadora que lhe tira a vida em agonizante grito de réquiem. O Super-Lupus nietzche-hessiano avança afoito como équide noviço e se rende em pasto etéreo. Os corpos se liquefazem e escorrem por rio nascedouro. O tempo se encarrega do resto e o que se iniciou no crepúsculo, se consome na alvorada. O colibri não mais farfalha e morre pelo mesmo fogo que o acendeu para em seguida ascender como fênix icárica.

 

 

Pardal de Rapina

 

Livro com 32 poemas de forma irregular em sua contagem de versos, que tem em sua ordem apresentada os nomes de eros, afrodite, vênus, tétis, dríade, noiva, pardal de rapina, o albatroz, o leopardo, os pirilampos, voyeur, púrpura, errante, lenitivo, agregado, raiz, êxodo, turvação, a enxó, vadia, ceticismo, atmosfera, perdição, o pão, ruralista, bandeira, meeiro, cólera, amarílis, nômade, êxtase no cerrado e a composição da palavra, somando-se um total de 400 versos. O amor é o tema central, se desdobrando e se ramificando em possíveis acepções localizáveis na língua dos antigos gregos, que percebiam as improváveis divisões do amor ou simplesmente vislumbravam o mesmo como cores do espectro. Norteados pela noção do éros (ERWS), que em si compreende o amor, o desejo apaixonado, o desejo ardente, a excitação da alma, a alegria e o objeto do amor. Encontro os poemas: eros, afrodite, tétis, noiva, o albatroz, cólera, amarílis e êxtase no cerrado. Através do conceito de póthos (POQOS) que em si compreende a saudade, o desejo, o desejo apaixonado, o desejo sensual, o amor e a carência. Encontro os poemas: vênus, dríade, o leopardo, voyeur, errante, lenitivo, vadia, perdição, bandeira, meeiro e nômade. O amor paternal representado na palavra grega stérgethron (STERGHQRON), tendo o poema de nome raiz como seu único representante. Ainda sem nos esquecer de ressaltar os não tão tangíveis mas, presentes na escrita de Wilmar Silva os conceitos de filía (FILIA) e o de agápe ou como conhecemos por ágape (AGAPH) em que no primeiro nos fica o amor e amizade que assim tem pela poesia e pelas palavras e no segundo em que afeição, amor fraternal e o objeto de afeição, sem contar com o sentido estrito de caridade se dissolve dentro de um fazer poético, onde o poeta se doa e se debruça ante a exaustão como em uma relação amorosa. Por outro lado, o medo se torna aparente nesta obra, visto na figura do fóbos (FOBOS). Encontrados nos poemas pardal de rapina (que dá nome ao livro), os pirilampos, púrpura, agregado, turvação, atmosfera, o pão e ruralista. A morte e a memória caminham de mãos dadas através dos conceitos de thánatos (QANATOS) e mnéme (MNHMH). Situados nos poemas êxodo, a enxó e ceticismo. Por fim, destaco e retiro na íntegra o último poema do livro:

 

 

a composição da palavra

 

a derradeira nascente

acende a ilha cercada de águas

à derradeira vertente

os lobos

é que varam atrás de alimento

e a primípara seta eu é que lanço

e voo

 

 

Afrodite representada nas linhas 1 e 2, pois, nasce das espumas do mar, junto a onde é hoje a África, daí a raiz aphros. Os lobos representados nas figuras de Rômulo e Remo, fundadores mitológicos de Roma que tem por mãe a sacerdotisa Réia Silvia, que se representa por duas crianças se amamentando de uma loba, nas linhas 3, 4 e 5.  Destaco a palavra primípara que significa mulher que se torna mãe pela primeira vez, na linha 6. A figura do Eros grego, tendo como correspondente ao Amor latino, também conhecido por Cupido (cupiditas, "desejo", "luxúria" e "paixão") nas linhas 6 e 7. Rômulo e Remo filhos do deus Marte. Eros, filho de Ares e Afrodite, a Vênus latina. Tendo para o poeta a inquietude de que a palavra e o poema são filhos do amor e da guerra, representados nas figuras de Afrodite/Vênus e Ares/Marte. Mnemosyne, a deusa grega da memória; a mãe — com Zeus — das Nove Musas, entre elas Érato, a poesia romântica; Euterpe, a música de flauta e a poesia lírica; Calíope a poesia épica e a filosofia. Basta ainda mencionar, que da união de Ares e Afrodite, nascem Deimós (DEIMOS) e Fóbos (FOBOS), respectivamente o terror e o medo.

 

Enfim, este se dá como um poema de amor às mães, que se apresentam nas figuras de Réia Silvia, também personificada pelo Silva que aqui se torna o gerador do poema, à Afrodite, à Mnemosyne, à Érato, à Calíope, à mãe do poeta e sem deixar de destacar aquela que para Platão era a décima musa, Safo de Lesbos.

 

Para finalizar, todo o livro é construído dentro de um ambiente idílico, ruralista, campestre, pastoral, de feras e paisagens sertanejas. Cerceado por experiências afetivas das mais diversas e evocando mitos de um passado remoto.

 

 

Anu

 

30 poemas com 7 linhas cada, num total de 210. Não possuindo identificação entre si. Anu é o pássaro preto comedor de carrapatos e em língua suméria significa céu e acima, sendo este o nome do deus tutelar do panteão sumeriano. Anagramas de nau, nua e una. Tudo isto junto ou nenhum destes. Onde a palavra e ou palavras se contraem, se fundem, se dissolvem, formam novos significados, recriam sonoridades, criam sentidos. Não possuindo separação entre as palavras, o(s) poema(s) se torna um exercício quase meditativo, assumindo um tom de ladainha, onde palavras jorram umas atrás das outras sem manter possibilidade de respiração, podendo levar ao fatigamento do leitor/orador. Um mantra se inicia como em um rio interminável e sua fluidez se rarefaz através de um turbilhão de imagens que se sobrepõem e rapidamente desaparecem. Melodia infinita. A memória não mais se conecta. Durante a leitura de Anu, o leitor ou ouvinte é desafiado a se lembrar das palavras que passaram e uma a uma são varridas para fora sem que se possa retê-las da mesma forma que grãos de areia em uma ampulheta. Como em uma peça musical que se inicia e só pára quando atinge a última nota. Se pensarmos em Anu como um poema escrito, fazendo um paralelo com uma partitura, temos então um arquivo ou registro que permite visualizações, análises e leituras fragmentárias. Como poema falado, as possibilidades interpretativas e os aspectos dinâmicos, rítmicos, espaciais e temporais são como a música em execução. Uma vivência fenomênica e marcada por sensações que não necessariamente constituem formação de entendimento, através do que é dito ou ouvido e sim como causador e agente de experiências estéticas e sensoriais. As palavras lançadas tais quais em uma série dodecafônica, sem se restringir a uma ordem preestabelecida, equivalendo assim aos recônditos da aleatoriedade. Isso não significando que se possa estabelecer ordem, padrões ou o curso natural de uma narrativa estritamente linear. Um retrógrado aparece, espelhando linhas dentro da obra. A linha 1 do poema 15 se torna a 7 do poema 16 e a 7 do 15 se torna 1 do 16. Fazendo que ao percorrermos o poema a partir do meio, começamos também a alcançarmos o início, como em um ciclo orobórico, tal qual na obra joyceana. A arduicidade da leitura de Anu se dá como um desenrolar de um novelo que quanto mais se separa, se enrola. As palavras são arrancadas umas às outras através de escavação(ões) feitas com as próprias mãos para que se encontre(m) os elos que as unem.

 

Se pensarmos nas possibilidades de criação e recriação linguísticas, em que palavras são feitas através da contração e acúmulo de outras, entre outros fatores como as inserções ou extrações de partículas vocálicas, consonantais ou silábicas, gerando assim novos sentidos. O livro de Wilmar Silva pode ser considerado assim, não um poema, não vários poemas e sim uma mesma palavra que quantificadas todas as letras, adquire o total abusivamente escandaloso de 4995, podendo ser traduzida simplesmente como Anu.

 

 

Salmos Verdes

 

28 poemas sem título, com contagem irregular de versos, ou um único poema totalizando 319. O homem do campo é evocado calejado pelo calejar da terra, tal qual um cristo ou cristos mártires de um crucis repetido como as repetidas enxadadas no solo. Um homem vegetal, que se torna animal, para se tornar espiritual como em textos cabalísticos. Um homem cristificado ou húmus messiânicos que pela terra se semeia e que retorna plantificado. Poema que dialoga com outros filhos do poeta, como nos casos de Pardal de Rapina e Anu, da mesma forma que das filhas Dríade e Jade. Um poema que verossimilhantemente despeja angústias, medos, solitudes, que grita, chora e agoniza para deixar o poeta ser poeta e o poema ser poema. Desabafo da língua. Oração a, à, da, para, com e pela terra. O poeta se lança em uma ilíada agrária da terra como um episódio evocado de um êxodo. Lançando-se em um mundo deserto ou deserto mundo que Ulisses mosaico ou Moisés ulissíaco, navega como ave cambiada em homem que voa pelos Céus sertanejos, urbanos, indígenas, bíblicos, helênicos e por um Céu que reside dentro do homem e da palavra. O homem armadilha-se como capivara devorada por curupira. Pinta o corpo com urucum sacrossangrado pela testa de espinhos em movimentos bustrofédicos marcagrafando calipoemáticamente pintassilgos de paredes lascadas diamanticantemente escritocantados por povos que antes de Cabral faziam amor entre si e com esta brasílica terra. Aqui o homo wilmaricus cobre corpo com estrelas, cerca-se de feras, descobre o fogo, comunica-se como pássaro e pesca suas memórias como um menino narciso de um Rio Paranaíba.

 

 

Conclusão

 

Silvaredo une poéticas que se distanciam no tempo, dado pela época em que cada um de seus livros foram confeccionados, mas, que dialogam entre si a partir de temas recorrentes e que vão de um extremo a outro da linguagem, da mais tradicional à mais avançada, como nos casos de Pardal de Rapina e Anu, respectivamente. Com estéticas e estilísticas diversas.

 

Anome Livros; lançado no evento Verão Poesia 2010; tendo textos dedicados ao poeta pelos também poetas Fabrício Carpinejar e Ricardo Corona; sendo prefaciado, editado e tendo o projeto gráfico pelos editores do jornal de literatura e poesia A Parada, Daniel Bilac e Valquíria Rabelo; fotografia da capa por Ivan Domingues; possuindo 213 páginas.

 

 

___________________________________

 

O livro: Wilmar Silva. Silvaredo. Belo Horizonte: Anome Livros, 2010, 213 págs.

___________________________________ 

 

 

março, 2011

 

 

 

 

 

Wallace Armani (Belo Horizonte/MG, 1977). Regente e compositor. Desde 2007, possui patrocínio da empresa Madeirense — Móveis para Escritório, sendo o único músico erudito a desenvolver parceria como essa no país. Autor de óperas (2); grande orquestra (9); orquestra de câmara (1); peças para coro a capela (3); coro e orquestra (2) e música eletroacústica (2). Tem textos publicados no Suplemento Literário de Minas Gerais, Dez Faces, Revista Atitude Tropical e Revista Tropofonia. Citado em monografia de pós-graduação pela PUC-MG, como único compositor de óperas da atualidade no Estado. Professor e estudioso de línguas estrangeiras. Diretor Cultural e Artístico do Circolo Trentino di Belo Horizonte, desde 2007. Na poesia, dá seus primeiros passos.
 
Mais Wallace Armani em Germina
> Entrevista