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Leitura da obra Leão Lírico, de Elaine Pauvolid

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Este não é um leão comum. Não possui apenas a envergadura dos grifos rompantes medievais. Não é detentor exclusivamente da juba auriflamígera dos felinos africanos. Não ousa sequer arvorar-se o rótulo de quem se expressa pelo corpo ou pela linguagem da fala. Expressa-se pela apolínea lira, derramando, entretanto, um dionisíaco passeio pelas searas da humanitude.  É, portanto, um Leão Lírico. Aos poucos, mas também subitamente, este mesmo leão apossa-se de sua coroa, de seu cetro, de sua juba, de sua língua de fogo, de seu medievalismo, de sua africanidade, de seu corpo e de sua fala — e toma-nos como quem entra em nossas vidas por obra do acaso... mas permanece para sempre.

O poema que abre a obra — e lhe é homônimo: "Leão lírico" — como que profetiza, vaticina a aventura humana, centrada e simbolizada no "signo" (verso 3) que "trará o cetro à mão" (verso 4). Seria este centro/cetro o esplendor do signo no sentido de Ferdinand de Saussure, de Barthes, de Derrida, de Foucault, de Peirce, de Iser, de Gadamer, de Lacan, de Jung? Pela leitura da obra, de todos esses nomes e de mais alguém que, nas constelações de leão ou virgem ou libra ou sagitário, ainda não se manifestou. Mas fá-lo-á. Assim é  o livro que "não será lido nem escrito / será intuído pela graça do leão lírico" (versos 13 e 14). O primeiro poema, metonímia do livro inteiro, por identificar-se ao significante do título de toda a obra, é um poema com tom apocalíptico às avessas: não intui o fim da raça humana, tampouco o começo — mas o meio, um meio possível de detenção sem "remissão" (verso 18).

O embate entre a dor transcendentalista da existência pós-Sartre, ou seja, do fato de decepcionar-se com a própria decepção, se dá em contrastes coloridos, como no seu "Dia-a-dia", que segue o vaticínio do "Leão lírico" e é arrebatado em vales de lágrimas por uma "Verônica" minúscula, humanizada, ao lado da "Virgem"  maiúscula (verso 12, outro signo?), a quem se iguala "Sevilha" (verso 13), que se saúda com o "Ave" (v. 13) proverbial da Virgem Maria. Seria isso verdade? Seria esta hermenêutica válida ou simplesmente pecaminosa e espúria? Seria mesmo a Verônica, ou melhor, a verônica do Santo Sudário? Ou há algo além em Sevilha, "a cidade mulher", como disse João Cabral de Melo Neto? Santas mulheres, cidades ou pessoas? Qual o limite entre elas e nós, seja você quem for?

Os poemas de Leão Lírico são como o sertão de Guimarães Rosa: você pode achar-se ou perder-se ali. Isso foi o que disse o autor de Grande Sertão à sua tradutora H. de Onís, referindo-se ao sertão, a si mesmo e à literatura de um modo geral. É preciso ter um Goethe dentro de si, lembrou o pai de Riobaldo. E Leão Lírico o tem. Afinal, Diadorim era homem ou mulher?

Era um ser humano. Como Goethe concebeu.

De alma "fria" ou "amiga", como no poema "Descarte" (estaria faltando um "s" para completar o Descartes, René?), o eu lírico sabe "[....] existo de certa forma, / no entanto, cogito / que a quimera do infinito / não terá fim enquanto restar / um fio de dúvida em mim" (versos 8 a 12). A alusão ao "Discurso do método" é clara, mas, ao mesmo tempo, velada sob a angústia, sentimento tão repudiado pela herança Iluminista e Renascentista cartesiana. O homem da Renascença seríamos nós menos nossa humanidade profunda. Humanidade esta que Elaine e seu eu-leão lírico tentam reaver com o farol, o feitiço, o lobo, a morte e as delícias com que Nietzsche, enfim, reinventou a situação humana de luz e sombra.  É certo falarmos em Camus também, enveredando pelas mesmas searas. Ou em Flaubert. Em Eça de Queirós, "o homem que escreveu Madame Bovary", como diz Silviano Santiago em seu famoso artigo, alusivo a "Pierre Ménard, o homem que escreveu o Quixote", de Borges. Machado de Assis parodiou ou estilizou esse homem renascentista com seu satírico "humanitas" (palavra opacamente oriunda de um latim arcaizante) exposto às primeiras páginas do eterno Quincas Borba (nome de um cachorro): atropelem-se os velhos, pois humanitas quer passar, ao vencedor, afinal, as eternas batatas! Disse o bruxo do Cosme Velho.

Outras figuras bíblicas são lembradas (ou evocadas) na obra, bem mesmo ao gosto do autor de Além do bem e do mal, há pouco citado, que predizia: "O que seria dos livre-pensadores se não fosse a Igreja?" — Disse, ipsis literis, Nietzsche. Erra quem acha que o prussiano que amava e odiava Richard Wagner era avesso à cristianidade. Ele era avesso ao cristianismo, o que é bem diferente. Erra, também, que supõe ver em Leão Lírico uma única face humana. Veem-se várias que, em vez de entrar em conflito dialético, entram em conflito dialógico, ao gosto de Bakhtin e Kristeva (por falar em Cristo...). Assim, "Esther", por exemplo, aparece, lembra-nos o Velho Testamento, por enquanto só aparente em seu contraste com o Novo Testamento, mas é riscada do livro. Mas aparece. Assim como anjos eróticos (não pornográficos, nada pornográficos, esses anjos são de Nélson Rodrigues e não adejaram em Leão Lírico), grassam com a sutileza de um santo altar medieval. Evocam-se mortos e evoca-se a própria voz da morte, que culminam, todos, na "Força de Deus", na "Praia de nudismo", no "Cio", nos "Arquétipos", na "Angústia" nos poemas "Sem título" (há coisas que, se nomeadas, perdem-se, como disse Ludwig Wittgenstein 2, ou seja, o autor das Investigações Filosóficas: "A linguagem é Teologia"), no "Gozo" nas "Estrelas, na "Infância compartilhada", estado de beatitude suprema a que se chega por via do humanismo.

Este Leão Lírico é, enfim, um mergulho nas profundidades da superfície, no oco da bolha de sabão que sobe a alturas vertiginosas e se vai transformar em estrelas estupefactas. Com ele, aprendemos o que o melhor amigo de Michel de Montaigne (a quem este homem mágico dedicou seu Ensaio "Sobre a amizade") disse: "O fogo que me faz arder é o mesmo fogo que me ilumina" (Étiènne de La Boëthie). Se é um livro que evoca dor, horas que não passam, oferece, também, a quem quiser a volta do Leão Lírico, ou o "Leão lírico II", uma panaceia miraculosa: demonstra que a dor é "[....] necessária quando passa" (fragmento do título do poema da página 121): Afinal, diz o leão com sua lira a encantar até Cérbero, o cão dos infernos: "Eu, que as sinto, que fique / para dizer que só me foram necessárias / as dores que passaram" (versos 4 a 6).

Enfim, se o livro tem silêncios enormes, como na sétima Sinfonia de Beethoven, ou no segundo movimento do Concerto número 4 para piano e orquestra do mesmo compositor, então já completamente surdo, tem também "Medo da vida" e esperas felizes. E, ainda que com medo assumido, erotizado, elevado às fogueiras sagradas de todos os altares dos refolhos e das reentrâncias da alma humana, o leão o enfrenta, e, a ficar preso, prefere a postura altiva de um anjo livre, de um Serafim ou de um Querubim humano e escrito sob versos [....] "que aparece de repente, / feito um peixe / que pula do aquário" (outro signo?).

Ponto final.

 

 

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O livro: Elaine Pauvolid. Leão Lírico. Rio de Janeiro: Edição da autora, 2008,

144 págs., R$38,00. Para comprar: Livraria da Travessa [www.travessa.com.br]
ou: epauvolid@gmail.com

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março, 2011

 

 

 

 

 

Marcelo Moraes Caetano é carioca, pianista clássico, com prêmios no Brasil e no exterior, tradutor de inglês, francês, alemão, latim e grego e escritor com vários livros publicados, no Brasil, Estados Unidos, Suécia, França e Inglaterra. Entre suas obras estão A clara de ovo (editora 7Letras, 2003), Romances de entressafra (Editora Vivali, 2005), A humanidade na Arca de Noé (Editora Vivali, 2005), Cemitério de Centauros (SENAI-FIRJAN, 2007), premiado como melhor livro de poesia inédito da XIII Bienal Internacional de Literatura do Rio de Janeiro), Análise das funções da linguagem sob corpora da Literatura com ênfase em João Cabral de Melo Neto (Academia Brasileira de Filologia, 2008), The white fast egg (Pg Editors-USA, 2009), Försiktighetsprincipen, Arbete, eller Konste Kentaurer Kyrkogård, DMOZ , 2009 (Suécia), Solidariedade (ONU-UNESCO, 2005, edição trilíngue, Brasil, França, Inglaterra), Educação (ONU-UNESCO, 2006, edição trilíngue, Brasil, França, Inglaterra), Gramática Reflexiva da Língua Portuguesa (Editora Ferreira, 2009), Gramática para o Vestibular (Editora Elite-Maria Anézia, 2009), Literatura Brasileira para o Vestibular (Editora Elite-Maria Anézia, 2009), Redação para o Vestibular (Editora Elite-Maria Anézia, 2009), Caminhos do Texto (Editora Ferreira, 2010), Instâncias do sentido: o dicionário e a gramática — múltiplas interconexões semiológicas (Academia Brasileira de Filologia, 2010), Água pura (Paco Editorial, 2010), Gramática para o Ensino Médio (Editora Elite-Maria Anézia, 2010). É especialista em Educação e Tecnologia pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Estudos da Linguagem pela PUC-RIO, colunista da Revista da Cultura (SP, SC, RE etc.), conselheiro editorial do selo Lítero Editores, crítico literário e pesquisador com dedicação exclusiva pelo CNPq. Os seus mais recentes livros podem ser encontrados aqui e aqui.