ALZHEIMER

 

Na geriatria, quando as drogas fizeram efeito, a única lembrança dela foi Ausêncio.

 

 

 

 

CACO

 

Cansado do narcisismo alheio, fugiu do espelho: só refletia o que lhe cabia.

 

 

 

 

ORIGAMI

 

 

Amarelo grasnava o dia inteiro feito louco, reclamando, irado, da sua eterna condição de ser pato. E ninguém ousava dizer que ele era apenas um pedaço mal dobrado de papel.

 

 

 

 

CONCORRÊNCIA DESLEAL

 

Casados há sete anos, separaram-se sem crises. Um caso de absoluta compatibilidade de gênios: gostavam das mesmíssimas coisas e pessoas. Inclusive do rapazola malhado que, dia sim dia não, lhes fazia visitinhas.

 

 

 

 

MARCA DE CONDUTA

 

Cheia de lundu para ir à mesa, a indivídua só comia o que gostava e bem entendia. A casa repleta de pessoas antigas e de muita afinidade, ria com ela: — Não quero nada verde (frutas e verduras), nem marrom (feijão e carne) e muito menos amarelo (sucos). Gosto de coisa branca (pipoca, tapioca e picolé de limão) é só isso e pronto! E... lá ia almoçar as pequenas iguarias que a avó paterna, rindo muito, lhe fazia. Afinal, gosto não se discute e ela era muito 'espilicute'. Foi assim até o dia em a avó de nome Rosa partiu e levou com ela o enorme jardim, a cor da nuvem e o 'pronto'.

 

 

 

 

PAPO DE FULÔ

 

No dia em que a Alma dos brinquedos resolveu transferir-se de casa, conheceu a solidão e o medo. O mundo passou a ser das pessoas de carne e osso e estas desmentiam veementemente o gosto doce do chá-de-chuva, do bolo-de-nuvem e do biscoito-de-madrugada, com gostinho de jasmim. Ainda bem que os Poetas falam a língua dos brinquedos, das... Almas e outras tantas raras essencialidades...

[Em linguagem de flor, 'essência' deve ser isso.]

 

 

 

 

CURPA SUA

 

Menina, vem cá te benzer que a rezadeira viu teu olho capenga! Chamava a avó, tentando a cura dos destemperos da criaturinha que mirava horizontes com olhares macambúzios. Nas mãos da rezadeira, sob a mira da pirralha, tombavam murchos os ramos de pião-roxo. A velha dava de ombros e dizia que era quebranto dos grandes, precisava muito... mais reza. Um dia, a menina já bem rezada, olhou para a benzedeira e fulminou: — Quem já viu fazer tanta reza pra no fim matar as plantinhas? Isso é errado e a senhora vai pegar é quezila de planta, viu? Pelo sim, pelo não, a rezadeira nunca mais apareceu.

 

 

 

 

 

 

 

fufu

 

falava com borboletas

numa língua disfarçada

pra não levantar suspeitas

a lagarta camuflada...

 

 

 

 

 

 

jambolão

 

tua amizade é feito aquelas

frutinhas doces caídas no chão:

a gente encontra, finge que limpa

na roupa, saboreia, e esquece

a nódoa que ficou na mão.

 

 

 

 

 

 

criaturodedeos

 

feliz de um gato griz

perdidamente encontrado

a um palmo do nariz

 

 

 

 

 

 

modesducé

 

enquanto todos procuravam

a menina desesperadamente pelas

ruas e oitões escuros da casa, uma alma

mais delicada encontrou-a bem ali, caladinha

sentada numa estante-esconderijo

à distância de um poema

 

 

 

 

 

 

quesseiloquê

 

um dia, brigaram

sem motivo aparente

e, enquanto ela lia, quieta

um dicionariozinho qualquer

ele esperava pacientemente

a tradução da Vida para

aquele "quesseiloquê''

desimportantíssimo

 

 

 

 

 

 

a menina lia

 

o mundo que me perdoe

mas hoje eu não

estou nem

aqui...

 

 

[ imagem ©tomas hawk ]

 

 

 

 

 

 

Lilly Falcão, brasileira, que se diz matuta de Timbaúba/PE, reside em Recife/PE. Publicou em várias antologias: Crônicas (Anjos de Prata, 2005/2006/2007); Poemas (Mosaico/Ed. Andross, 2005), tendo sido a vencedora do Concurso Nacional de depoimentos sobre a obra de Fernando Sabino, texto publicado no prefácio da edição comemorativa do 50º aniversário da obra O encontro marcado. Venceu, também, o 1º Concurso de Poesia da Editora Arte Literária, São Paulo/2007; o 1º Concurso de Microcontos da Andross Editora, São Paulo/2007; o 1º Concurso Mercedes Benz "Contos Caminhoneiros"/2010 e o 1º Concurso Inernacional de Poesia "Mulheres Emergentes"/2010 . É servidora pública federal concursada. Obviamente. Tem poemas e textos publicados em vários sites, entre eles: Anjos de Prata, Releituras, Poetas del Mundo, Balela — Só Literatura, Cronistas Ponto Com.