PRESENÇA

 

dois corpos

despidos de alma

pendurados em espelho

 

nada a dizer

sentidos e só

 

respirar fundo

sussurrar leve

absorver amor

isento de sons

 

 

 

 

 

 

EM CARNE E VERBO

 

noturnamente

suicida-me

arranca-me de mim

 

despida

encolho-me

enxergo-me

 

amanhece-me noturnamente

ressuscita-me

e me abro:

feminina-me

 

 

 

 

 

 

SILÊNCIO

 

sim

sou

sua

 

aquece

sacia

sossega-me o cio

 

suga

sorve a seiva

dessa sua serva

 

sobe ao céu

em sussurros

espasmos

 

sim

sou

sua

 

 

 

 

 

 

HARMONIA

 

havia céu e solidão

em silêncio

uma estrela

ardia orgasmo

na escuridão

 

 

 

 

 

 

CAÇADA

 

a fêmea devora

a presa

com o olhar

voraz

 

a fêmea ferve

o sangue

da presa

para atacar

 

a fêmea penetra

o cerne do ser

que se rende

arde

queima

morre

e se refaz

 

 

 

 

 

 

EMBATE

 

a língua áspera

úmida

quente

é qual serpente

com seu veneno

corroendo a moral

que se despe

tímida

inocente

e por fim se rende

ao apelo sensual

 

 

 

 

 

 

EXORCISMO

 

mata-me

mete-me

minta-me

monta-me

muda-me

 

arremessa-me

 

entorna-me

lambuza-me

liberta-me

de mim

 

 

 

 

 

 

AO NATURAL

 

Recaiu sobre si a culpa da humanidade na tarde quente daquela viagem. Sol incendiando o verde das pastagens, morros e montanhas que passavam rapidamente pela janela, deixando pra trás uma brisa assanhada em carícias, provocando volúpia, impregnando todo o õnibus com o sêmen da natureza exalado em suor, descendo por todo o corpo como rio de água salgada, uma sede sem fim de tudo que pudesse refrescar o corpo e a alma.

Passiva, rendeu-se ao cansaço, despiu-se de conceitos, cerrou os olhos e...

 

 

 

 

 

 

DO QUASE PECADO

(poesia de anjos)

 

... segurasse suas mãos, levasse-a quase pluma por um poema na quase madrugada do setembro recém-nascido em sublime adultério de anjos... a sedução da alma! São demais os perigos desta vida...

... mas anjos não pecam, são puros. Até mesmo quando, distraídos, entornam desejo (a alma tem anseios).

Distraída, seria natural deixar-se levar pelas mãos. Um abraço mais envolvente, as mãos... poesia por toda parte.

(A poesia sai pela boca, está dentro da boca contida, a espera do milagre que a transforme).

Se, liberta de receios, abrisse em beijo a boca do poeta, consumado seria o pecado e a boca cuspiria no papel a poesia.

O desejo é o poema em estado de semente.

 

 

 

 

 

 

FINAL FELIZ

 

Naquela noite cobriu-a de mimos. Foram palavras, sonhos em pinturas vazadas até sons denunciarem novo dia. Braços a puxá-la noite adentro e sussurros te amo, te amo, juras de nunca usar extremos da cama, ladainhas de protetor, querer vê-la feliz, de não merecer tal vida de sacrifícios. E beijos tantos, tantos, até lábios amolecerem de tanto vadiar. Um sentir a vida de dentro, intenso, amor de verdade, daqueles de filmes de cinema.

Depois casaram-se.

 

 

 

 

 

 

MÃE DE FAMÍLIA

 

Os gritos que não que agora não e o fogo esquentando a barriga encostada no fogão e a insistência dele e a comida no fogo, hora de almoço, levar as crianças para a escola e a cozinha desarrumada, pia cheia de vasilhas e não, não e não, agora não, e ele invadindo seu espaço, umedecendo sua nuca e ouvidos ofegante em sussurros, e ela perdendo as forças, pernas estremecidas e as mãos dele afrouxando sua saia e ela sem voz em sussurros não por favor, não, o almoço, panela fritando arroz, bife na outra trempe, feijão inteiro fervendo o fogo invadindo toda a cozinha, e a mesa ali, posta, e as crianças na casa da avó tomando banho, e a comida...

... o cheiro da comida queimada, abolida da condição de ser almoço.

 

 

 

 

 

 

HISTÓRIA CURTA DE UM QUASE ROMANCE

 

        Seduziu-me  horrores e eu fiquei  totalmente sem ação. Bonito? Nada. Mas sexual pacas. Todo  elétrico, a mil por hora, cabeça brilhante, charmoso pra cacete, mas eu confesso que fico com medo. Jogar o medo pela janela? kkkk...  Mas olha só, ele tá namorando sério, que foda! Não lembro de nenhum homem ter me seduzido como ele. Vou te contar: quando estava casada, dei de cara com ele, daí ele veio me abraçando, falando bem de pertinho, assobiando uma música no meu ouvido... falamos sobre a possibilidade de eu trabalhar com ele. Ele disse que eu teria que esperar, caso estivesse pensando em me separar, até que ele conseguisse a vaga pra mim. Daí deixei passar e há uns dois meses liguei pra ele. Falei: Guilherme, aqui é a Laís de Bicas, lembra de mim? Eu queria marcar com você para conversarmos sobre a oportunidade de trabalho e tal, e ele: claro, estou te devendo muita coisa: um chopinho num final de tarde, um papo mais demorado. Então vamos conversar sobre o trabalho e depois tomamos um chopp. Daí marcamos e quando cheguei em Beagá fui direto à empresa dele, me atendeu na sala dele e já foi falando: tá tão longe, senta aqui pertinho, me mostrou os projetos e tal, conversamos sobre várias coisas e daí ele foi para o computador e me chamou pra sentar do lado. Foi me mostrando fotos dele, daí mostrou os filhos, ele parece um menino.  Já era quase nove da noite, a empresa fechada, só nós dois, daí eu falei que tinha que ir e que deixássemos o chopp para a próxima. Saímos da sala e ele foi me mostrar o prédio. Apertou todos os botões do elevador, falou, só pra você conhecer os andares... kkkkk... daí nos despedimos e ele quase me beijou, e falou: demora não. Nunca mais nos vimos.

 

 

 

[ imagens ©tomas hawk ]

 

 
 
 

Idalina de Carvalho (Cataguases/MG, 1960). Cursou Letras (FIC - Cataguases) e Filosofia (UFJF – Juiz de Fora).  Editou a Revista de Literatura e Arte Pensaminto (1994 a 2000), criou e dirige os projetos de incentivo à leitura "Chá com Leitura" (para jovens e adultos) e "Faz-de-conta" (para crianças) do Instituto Vencer, ONG que criou em 2006. Como coordenadora municipal de cultura de Cataguases, implantou, em 2001, diversas bibliotecas em bairros e distritos da zona rural, criando também o projeto "Cultura nos Bairros", que levava semanalmente aos bairros uma caravana com oficinas culturais e equipe de apoio ao funcionamento das bibliotecas. Tem publicados os livros Quase pecado (2001) e Meandros (2010), ambos de minicontos e poesia. O conto juvenil,  Beijar, ficar e outros verbos adolescentes (2011). Mais, clique aqui, aqui e aqui.