O Passeio do Vestido

 

O vestido tão airoso, diáfano e tímido decidiu ganhar as ruas. Pois não suportava mais viver nas trevas de um lúgubre guarda-roupa cavernoso. Assim que se fez uma luz de fresta — nada mais resta! — refletiu a irreflexível peça de vestuário. Não hesitou e ganhou vida em movimento aproveitando-se do balé do vento, proporcionado pela janela aberta e distraída, assim como sua dona nua que cantarolava embaixo do chuveiro. O vestido agiu, sofreu um sutil desfiar ao tentar se livrar do gancho do cabide/capitão/pirata e do possessivo paletó, que o enlaçava, cantando Chico. Sempre esquecido e espremido por outras peças mais jovens, frescas e perfumadas e de boa etiqueta.

Sem pestanejar, escapuliu pela janela. Fazia tempo que não tolerava mais ser trocado por calças justas colantes, sem nenhum romantismo. Havia também blusinhas compressoras e vulgares, além de decotes pronunciados que nada tinham a dizer. Atravessou o jardim e muitos transeuntes que o assistiam, ao passarem nas calçadas, por pouco achavam que era apenas uma cortina locomotiva de voal a escapar dos devidos trilhos.

A proprietária nua, ao ver o armário escancarado, esbravejou da janela sacolejando os seios empolgados. O vestido deu de ombros àquela que tanto o desprezou, "ele", tão feminino.

Seguiu assim pelo caminho, o vestido leve e alegre como que feito de balões coloridos. Lépido e faceiro a rebolar delgadamente, passo a passo, a deslizar pelas paisagens urbanas, atravessando faixas e semáforos.

Logo, encantadora jovem mal ajambrada e simplória, sorrindo o fisgou como nuvem, o vestiu como manto sagrado e saiu feliz a flutuar por aí. Como em propaganda de desodorante ou perfume, todos os homens admiravam-na ao vê-la passar, torcicolos a fio. Em outro corpo, casa e armário, era agora traje preferido, quase único, a passear insanamente pelas ruas, avenidas, pontes e elevados, dos jardins floridos aos becos sórdidos. Era a roupa mais usada e quase filha única de mãe solteira infértil pós-parto. Já era peça muita usada e pouco lavada, bem puída, quase rota, esticada, esfregada, arrancada e despida às pressas por mãos brutas de homens de Neandertal.

         A vestimenta, certo dia, quase foi para uma grande caixa de madeira juntamente com a leviana jovem de quase um vestido só, mas certa esperta amiga achou que havia na peça ainda mais algumas idas e o surrupiou da falecida. Mandando-a assim para a outra vida, como veio a esta. Logo bem lavado, bem passado e engomado, foi ao baile, cobrindo a humilde furtadora e nova tutora. Sem querer, o vestido a fez passar vergonha desnudando-a durante a dança em movimentos bruscos e expondo-a ao riso do populacho.

 

Hoje o vestido está dividido em partes. Um fragmento acompanha o rodo na área de serviço, outra parte irmã acaricia o declive ondulado do tanque no quintal ao som da água que corre, outros já se deitam sobre a pia da cozinha, cheios de detergente e sabão. Ao cair da tarde todas as partes se encontram penduradas no varal sob um resto de sol quente. Sem prendedores que os segurem, já ressequidos se rebelam e se reúnem decidindo voar como pequenos balões quase murchos e cinzentos sobre o ar leve, compondo aos poucos uma silhueta do que já foi um vestido, um dia, uma tarde, um passeio...

Nunca se arrependeu da decisão de sair do armário. Sabia que o prazer das aventuras e, consequentemente, as agruras da vida, eram fatais e que faziam parte, tal como a dor de sua feitura com o passeio da agulha e da linha e o pregar dos botões.

 

 

 
 

 

A Volta da Mulher-Livro

 

A mão aberta e espalmada acariciava mais uma vez aquele dorso, aquele tronco, aquela pele anunciada em letras douradas. Esperta e com capas abertas como um para-quedas para amortecer a própria. Mas a mão do leitor de nada quis saber e enfiou-a, arquivando-a como que para sempre na estante. — Que petulância, que despautério! — pensava a mulher-livro.

Depois que o tal leitor havia gozado, graças ao seu corpo e conteúdo, numa relação de alguns dias, já que o leitor era um tanto lento, e considerando que, seu conteúdo era  um tanto farto, resultando assim em uma semana de romance interno e externo. Estando assim satisfeito, lhe dava as costas, como algo vencido e superado em sua medíocre vida de leitor faminto. Mais um, mais uma, e partia para a outra prateleira a usufruir de mais um corpo, para se deleitar de outra ostra literária. — Não se abram, não se deixem levar, não se entreguem! — exclama a mulher-livro ao ver-se sendo descaradamente, trocada por outra, ou por outro. — Quanta promiscuidade! Mesmo em meio à multidão da estante, sentia-se só e pensava lá com suas páginas. Um dia ele quis me levar para sua casa, sem poder impedir, fui. Sei que, o que o atraiu foi minha capa, é a primeira coisa que atrai alguém, em segundo lugar foi o título — Incrível como os ditos seres humanos ainda se prendem tanto, e agem tanto, movidos por títulos! Chegando em seu lar, ele me desnudava, me acariciava página a página com suas mãos de pianista, tocando-me como um instrumento raro. Conheceu-me totalmente por dentro, primeiro desfrutando de minha contracapa, degustando minha introdução, deliciando-se com minhas linhas e entrelinhas, devorando-me em capítulos, fartando-se com brilho nos olhos a cada revelação, depois chegou comigo ao prazer final, salivando com tal ambrosia literária, com olhar malicioso e saciado. Não me abriria mais com suas mãos, não colocaria mais seu marcador de couro dentro de mim, dividindo-me em partes. Então segurou-me fechada, assim descansei um bocado de tempo, quase adormecendo em repouso sobre seu sexo intumescido. Doce ilusão momentânea, não me abriu mais, não me tocou, apenas arquivou-me como tantas outras, como tantos outros. Sendo assim, seria tudo ou nada, atirei-me quando ele passava, com reflexo ligeiro, este me amparou com palma macia, não resistiu, abriu-me, vociferou uma de minhas partes mais prazerosas, não resistindo, manteve-me aberta, a devorar-me novamente. Assim, levou-me novamente para sua cama, sorrindo. Era só isso que eu queria, mais uma vez. Havia valido a pena esperar, já havia se passado cinquenta anos, até atirar-me à sua frente após decidir o arriscado suicídio com final feliz. — A volta da mulher-livro. Não sabia quanto duraria, mas quem sabe? Poderia tornar-se seu livro de cabeceira definitivo, e deitado sobre o criado-mudo e sob o despertador calado, eterno triângulo amoroso adormecido ao lado do amado leitor envelhecido. 

 

 

 

[imagens ©fabiana barreda]

 

 

Cesar Póvero (Campinas/SP). Ator, arte-educador, escritor, roteirista, dramaturgo. É autor do livro Casa Nua (Editora Reverbo, 2010). Edita o blogue literário Poeteria Crônica e seu Portfólio.