Benzodiazepínicos

 

 

De manhã — penteio o cabelo embaixo do chuveiro e os meus olhos ardem. Fecho-os. Fricciono as pálpebras logo em seguida, até que passe o incômodo. Depois abro os meus olhos: embaçados. Continuo o movimento de desembaraçar, fio por fio, todo o cabelo — sem pressa. Lembro que, há dias, não lavo a cabeça. Então continuo me penteando enquanto a água corre para o ralo, ruidosamente. Em menos de cinco minutos, tenho em minhas mãos inúmeros fios embaralhados, como novelos de cabelo humano perdidos entre os meus dedos. Meu cabelo cai. A cada dia que passa meu cabelo cai mais. Um dia — em breve —, não restará mais nenhum fio e ficarei calva. Mas não me importo: cabelo é célula morta. Deixo-os cair. (Ou, se não caem enquanto penteio debaixo d'água, arranco-os eu mesma com as mãos, disfarçadamente. E deixo que escorram até o ralo que, no dia que entupir, não escoará a água do meu banho e me fará afogar enquanto rearranjo, despreocupadamente, as minhas poucas madeixas.)

De tarde — estávamos sentados no banco da praça. Cada um com seu picolé em mãos. Os pés do garoto não tocavam o chão, ficavam pendurados. O garoto é meu filho. Nas tardes de verão ele quer tomar sorvete e ver os rapazes soltarem pipas. As pipas sobem por uma linha cheia de sangue — e dizem que um sujeito teve a cabeça decepada por ela, ontem, enquanto passava veloz em sua motocicleta. O meu picolé está derretendo e eu perdi o controle. Tudo escorre pelas minhas mãos e me mela os dedos. Sinto pavor. O garoto continua com seu sorvete. Às vezes olha para mim, como se esperasse por algo além; mas eu já lhe dou picolés e deixo que ele veja os rapazes soltarem pipas — o que mais ele pode querer?

De noite — a vizinha veio saber se eu preciso de alguma coisa. Eu só queria ter um bom jantar, e ninguém entende. Ela diz que eu devo levantar e ir prepará-lo, então. E eu acho — mas não digo — que eu devia tê-lo já pronto, feito por alguém, diante de mim. Chamam de "corpo mole". Eu não sei de que eu chamo. Peço para a vizinha bater a porta quando sair. Peço que ela saia. Eu não olho, mas sei que ela balança a cabeça reprovando o que vê, e leva o meu filho para jantar na casa dela. Então eu viro para o lado e peço a deus que me venha sono e com ele um sonho bom. Para que eu acorde e penteie o cabelo na água da manhã do dia seguinte; ou para que eu me afogue, finalmente, na mesma água de todos os dias, entre os mesmos fios de cabelo.

 

 

 

 

 

Nada do que já existe retorna, porque simplesmente: há

 

 

Se pudesse, talvez, teria pulado do parapeito e esquecido da varanda, para evitar haver, momentaneamente, o que ser dito. Porque ele a levara até lá, guiando-a pelo frágil pulso. E as palavras — dela — vieram aos poucos, só puderam vir aos poucos, sendo que tudo o que mais desejou, enquanto falava, era que ele não tomasse as suas mãos, (porque, úmidas, tremiam). Um sol, desses de cair de tarde, pintava o redor e passava despercebido — tomados que foram no detalhe, apenas, a desviar o fio narrativo. Ao passo que ele se aproximava cada vez mais dela, e ela, por sua vez, conciliando a fala com o esquivar-se, chegava mais perto do parapeito, como quem quer distância do medo ou do pavor, e curva as costas para trás, buscando. Quando ele a interrompeu, e falou com uma frase amena, ela engoliu seco e esforçou-se na expressão de uma tranquilidade conquistada. Porque tinha que ter o controle aparente sobre o corpo, e a alma — piegas observação — seguiria pela sombra, sem ser noticiada. E mais e mais; ele falava e seu corpo (involuntariamente; é possível) se aproximava do dela, imóvel estrutura contra o parapeito. Pois que ela ouvia. Sem palavras que fossem suas, assim, não ousava movimento, e então descobriu que precisava responder, para poder dominar um pouco melhor o espaço. Tendo falado, por conseguinte, alguma qualquer outra coisa, uma pergunta da insegurança, coisa vaga ela falou. Enquanto que ele rapidamente elaborava uma resposta. (O estreito dividir da varandinha, era preciso realmente reagir...) Se pudesse, talvez, teria pulado do parapeito e esquecido da varanda, pensou. Mas pensou só quando tarde já era e não estava mais ali. O tempo decorrido, o dia indo longe, como distante paragem. E depois, tudo: aquela conversa que sequer recordava como terminara ou por que, o parapeito de fuga, apenas tendo marca do vivido, naqueles moldes de adultério de certezas...

(Latejou temporariamente uma dor, ferida que nunca cicatrizara, porque devia ser amor aquilo, mas não cabia palavra nenhuma ali.)

 

 

 

 

 

 

Excertos da imaginação

 

 

I. A pequena criatura dança, como se houvesse palco. Ela crê. Então na plateia estão seus parentes e amigos, apreciando seus belos movimentos. Rodopia. É como se em seus pés estivessem as sapatilhas de cetim e gesso que erguem os seus gestos. Contudo, são apenas osso, pele e ligamentos as suas estruturas. Mas ela crê. E, terminando mais uma pirueta, ela dobra ligeiramente uma das pernas e curva todo o seu corpo — ela está agradecendo aplausos, flores jogadas sobre o palco e holofotes a ela direcionados. Assim se fecham as cortinas e a noite acaba. E é como se houvesse palco.

 

 

II. Não há dúvida de que aquela antiga canção foi ouvida. Era a ladainha das senhoras que vinham da igreja. No entanto, a rua está vazia e se faz noite. Não houve missa na paróquia próxima. Um padre faleceu. A cidade está parada e sem expectativas. Apenas uma pessoa resiste à janela – e ela não tem dúvida de que aquela antiga canção foi ouvida. As notas soaram, as vozes chiaram e o painel com bocas e corpos se ergueu diante de seus olhos. Ladainha e senhoras, tudo junto, bem à frente. Ninguém poderia negar. Ninguém estava para perceber. Logo, não há dúvida e há apenas um lado que resiste pela razão: ouviu-se a canção, sim. Cantaram, sim. Em algum lugar; e ela aconteceu, não foi trazida pelo vento.

 

 

III. Quando ele aponta para o céu — reclamo. "Vai nascer na ponta do dedo uma verruga", porque estrelas se vingam. E ele olha como criança que é, retraindo as mãos, apagando os dedos. Dividimos as noites entre as histórias que um dia me contaram. Quando passa um cometa ao longe — aceito. "O seu pedido será realizado e você será feliz", porque jamais no tempo presente; tudo não passa de sussurro de imaginação. Um dia ele vai crescer e se tornar homem e eu quero estar lá para isso. Quando ele contornar as minhas palavras — reafirmo. Será verdade porque o tempo torna a sabedoria em experiência adquirida.

 

 

[imagem © a. brito]

 

 

 

 

Bruna Maria é carioca e mestranda em Literatura Portuguesa. Enquanto não publica seu primeiro romance [selecionado em 2010 pela Fundação Biblioteca Nacional para receber amparo do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa durante o término de sua escritura], bloga em: http://blog.brunamaria.com.