*

 

fui ter os pés do Curupira

era o meu pedido a Tupã

mas ganhei foi esta perna de Sací

não sei o que fazer com isso!

com os pés do Curupira

era para eu regressar enquanto sigo em frente

resgatar o melhor do passado, não deixar passar

enquanto adquiro outras coisas presentes

mas tropeço nos meus próprios passos

carrego os enganos confundidos

e perco as oportunidades boas

ou elas se perdem de mim

seja como for!

preciso dos pés do Curupira

e enganar aqueles que estão

no meu encalço para me ver perder

eles iriam para um lado

e eu para o outro

 

 

 

 

 

 

*

 

Do esforço em desprender

Os grãos da vagem

E semear palavras na cotidiana

Delinguagem da rotina

 

versos de laço e nastro

versos de velas e avelãs

 

demando o denso

que possa ser mais resistência

do que a serventia

a implacável serventia

à indiferença da vida

 

 

 

 

 

 

*

 

prender os kamis na gaiola do meu cotidiano

e escutá-los sendo sol lua e estrela escutá-los

crepitando sendo fogo escutá-los sendo tempestades

relâmpagos escutá-los voando sendo céu vento

montanha  escutá-los sendo arroz árvore lychees

rio e nascente sendo uma cascata que atingiria o chão

da minha cozinha e eu ouviria o rumor da água caindo

e navegaria as torrentes

sem preocupação

 

os kamis estão livres por

                    e não comem alpiste

                                                    das minhas mãos

 

 

 

 

 

 

*

 

hoje era domingo

                            não é mais

estava na estação ferroviária    quando me dei conta   

era o Tempo que partia

nem lenço branco, nem despedida!

como é que ele vai assim, sem malas feitas?

e eu que nem sabia, estava de passagem!

 

surpresa parada na plataforma   sem saber se agora

vendo-o antes do sumiço   deveria acenar ou partir

 

Pode-se partir sem nunca se sair do lugar

Pode-se partir através de um único gesto

de um virar as costas  de uma única palavra

ou um fechar as pálpebras

 

várias formas de partir                   me preencheram

 

e fiquei na dúvida se eu, sem aceno, virasse as costas e fosse embora

seria eu quem partiria?

 

se era ele que me deixava    sem sequer um imaginado

do que fazer com a sua ausência

 

o Tempo é sem dúvida mais poderoso

                            se parto não acontece nada      se ele vai

 

sou eu que fico na plataforma errada

 

 

 

 

 

 

Chac

 

quem está indefeso no ócio da tarde escorrendo

pelo vidro do automóvel com o pára-brisa ligado

em um domingo inutilizado pelo cinza

e um congestionamento na avenida

por causa de um buraco alagado

 

quem com tamanha chatice se desfaz

como uma construção de areia na língua das ondas

como se não fosse aprender com os erros

como se os erros não se repetissem

como se todas as garoas fossem iguais

 

e se busca a fortaleza, a muralha, a armadura

para não ser desmanchado pela língua da perda

 

quem procura não se desfazer no meio das gotas

não se transformar em uma poça de si mesmo

quem está indefeso navegando seus pensamentos

à deriva. À espera de uma ponte. À espera de uma ilha

 

 

 

 

 

 

*

 

se o que busco

é encher o cálice profano com o fel da minha vingança

matar os deuses para não ser igual a eles

desistir das tragédias, dos castigos que lançam

das intrigas urdidas, das mentiras crescidas

 

estes deuses que amordaçam quando temos a denúncia

que agrilhoam os passos quando temos os caminhos

que esticam os tentáculos quando queremos

abarcar nosso destino

 

se o que busco

é não ferir a vaidade divina

é não ser o pueril fantoche

preso nos dedos incansáveis

 

se o que busco

é apoderar-me dos poderes pelos quais luto

                            e me escapam

 

se o que busco

é desvestir a túnica de Hércules toda vez que fracasso

 

 

 

 

 

 

qual queda

 

o faxineiro veio limpar a janela

tirou as grades e deixou-a indefesa

a janela oferecia uma queda

que poderia ser a eterna

ou a de um instante

aquela que a gente cai em

feito um acrobata de circo

ou aquela da Ofélia

catando flores sobre o lago

 

a queda como a da andorinha

no limiar da sacada

ou a da equivocada Naiá

querendo abraçar a lua no reflexo

do igarapé

 

aquela que a gente sente

feito uma semente de açaí no solo da fome

ou a queda da manga madura

no cimento da calçada belenense

 

a janela oferecia uma queda

como a do caroço de pitanga cuspido

ou a de um pingo de chuva na torrente de um rio

 

não se sabe porque a questão não era essa

a questão era: em que andar  encontrava-se o faxineiro?

 

 

 

 

 

 

*

 

não mais crescem as maçãs

no pomar de Iduna

comeram-nas todas

e também as minhocas

 

eles viraram imortais

viraram deuses

vingando-se de suas fraquezas

                            humanas

 

mas estranhos deuses

lançam as setas

de suas palavras felinas

alvejam-me

babam o fel de seu veneno

possuem a face das mentiras

defasadas, sedimentadas

e a coragem de não chorar

 

todos eles são imortais

todos eles são deuses

os nossos pais, professores

chefes, amigos

amantes, os jogadores...

 

não comi a maçã de Iduna

a mim apenas restou

a cotidiana vulnerabilidade

de lidar com estes deuses

no trânsito, no supermercado

em frente ao mar, no trabalho

no hospital, no jantar...

no amanhecer no entardecer no anoitecer

 

não comi a maçã de Iduna

 

 

 

 

 

 

*

 

na plataforma do metrô

minha ida para casa

meu cansaço confundido com o normal do dia

— o rumor de um caso de amor

e tantas caras refletidas no vidro

 

nãopaisagem dentro do túnel

que a rápida viagem não nos deixa ver

 

teu desequilíbrio

me obriga a segurar-te sem querer

e saber que devo me segurar mais firme

na prosa a hora reduzida

fingida retraída de incerteza

correnteza de pensamentos distraídos

diante do fimmais um passo:

a certeza de que nãomais a seguir

o caminho foi traçado

no ponto de ônibus

o combustível queimando a tua espera bronqueia

inflama o desejo de Dante

ouve-se as gargalhadas da Divina Comédia

não consigo mais ouvir

         o rumor de um caso de amor

 

 

 

 

 

 

*

 

anseio morder tua boca de jambo vermelho

ainda mais que o momento é muito pouco

para sugar o agridoce néctar

de tua expressão e de teu corpo

 

para estender o instante em cada sentido

mentir para as horas escassas caindo

nas folhas róseas da Sapucaia

do outro lado da tarde

que o horizonte propaga

 

que a mecânica da realidade

seja interrompida por um segundo

que este eterno filete de sangue

que a hematófaga Humanidade

sedenta e insaciável, lambe

deixe de escorrer ao fundo

enquanto nossas bocas estiverem unidas

e nossos corpos o caroço de um coito

 

desejo tua boca de jambo vermelho

morder a minha

 

 

 

[Do livro inédito Murros de cattleyas]

 

 

 
 

 

"o dilema de um anjo I"

 

as rugas do mundo aprofundam a dúvida

progredimos tecnologicamente

e seguimos a passos de tartaruga a caminho da paz

                                            e da justiça social

sempre uma guerra em alguma parte do planeta e fingimos

                                        não ser perto de nós

eu precisaria muitíssimo olhar o mar

e não o jornal, flutuar meus olhos em seu azul e movimento

e deixar as roupas no varal e o vento morno soprando

ouvir o ruído dos insetos na indolência da tarde

o que tenho a dizer?

 

a melhor coisa do dia hoje, excluindo uma rápida chuva

que lavou a poeira dos muros, foi ler um poema de

                    Tanikawa Shuntaro

dedicado a um desenho de Paul Klee que dizia algo como

 

um anjo que chegou de um segundo mundo ao lado desse

arrastou-se pelos séculos e estava tão magro, fino

como um risco, precisava voar porque suas asas foram

um presente dos homens, precisava voar mesmo como

uma drosófila vive por um dia e ansiava como água

uma ínfima gota de alegria

 

o que tenho a dizer?

eu que nem asas tenho!

 

 

 

 

 

 

*

 

os gatos recém-nascidos

jogados no riacho com margem de mato

pelas mãos de minha mãe

sem querer cuidar de mais gatos abandonados

 

viravam Serafins

e sobrevoavam as tranças da água inquieta

pousavam nos muros quebrados das casas

abriam as asas quando as falas aumentavam

nas escadas, nas praças, nas calçadas

 

viravam Serafins

e a lufada dos carros passando rápidos

lançava-os para vários lados

formavam de vez em quando um redemoinho brando

ou iam coçar-se em cima dos telhados

 

miavam de noite em cima das telhas

não havia estrela, de vez em quando a lua cheia

e as sirenes das ambulâncias e patrulhas

ou andavam na esquadria da janela

e escondiam-se atrás das cortinas

 

quando minha mãe vinha

desapareciam

como bola de sabão

explode repentina

 

 

 

 

 

 

*

 

alguns poemas sempre ficam para trás

ninguém os mais, ninguém fala mais deles

não são mais reimpressos

um céu para poemas? um paraíso que os recolha?

um inferno que os dane?

para onde vão quando são abandonados

esquecidos, enterrados pelos outros mais fortes

expressivos, essenciais?

um asilo para isso, alguém que se encarregue

de ir passear com eles?

ou são apenas os estudiosos

teimosos que insistem em encontrar interpretações

como as escavações no Egito?

 

alguns poemas sempre ficam para trás

pobres deles!

não sou eu que vou lhes colocar

a coleira!

 

 

 

 

 

 

*

 

a vida não é feita de caroço

existe a polpa macia da frivolidade

não da sarcástica e amarga

não da frivolidade putrefata

que esmaga a seriedade

e suga a gema das coisas

deixando-as ocas

mas esta que vem de vez em quando

encher nossa boca de brincadeira

de fruta madura

nossas mãos de liberdade

de descanso

e parte quando ouve da seriedade

o seu canto, mas ainda se encontram

não são inimigas, admiram-se

como duas margens de um rio

segurando o caldo da vida

 

 

 

 

 

 

*

 

ao premer as lembranças

o dulcíssimo caldo envenena-me

de saudades inefável, irrefreável

para sentir-me ausente de mim

sem a orla de terra depois do naufrágio

sem o frescor do mato depois de março

 

enveredo-me neste labirinto

que me arrasta ao inatingível

ao medo de nunca mais

                            rever-te

e reconhecer que nenhuma palavra

alcança a distância nem o tempo esgotado

 

 

 

 

 

 

*

 

com o ruído dos carrinhos de rolimãs

descendo a ladeira na tarde de um domingo

 

o cheiro da carne assada

escapa pela janela escancarada

no meio dia canta a revoada de andorinhas

no pé de maracujá, escondida do estilingue

 

Já vou já!

 

a mesa posta

as mãos imundas

dos brinquedos feitos

a família de prato cheio

as horas que esfriam

 

e as mudanças que chegam

servem-se deixando apenas

os ossos da nostalgia

 

 

 

 

 

 

a mosca

 

mais uma vez a realidade

transparente e dura

mais uma vez a claridade

inteira e pura

mais uma vez a luta

sobreviver e fatalidade

 

vencer

o grande risco

de encontrar a janela fechada

como um inseto contra o vidro

 

 

 

 

 

 

*

 

um poema sem pernas estava preso em uma pedra

leve precisava se soltar e ser arrastado pelo vento que vinha

sem  papel e sem força andando na curva da indiferença

a dureza da pedra sem vento imóvel no meio da trilha

sem a leveza não o prendia, abraçava-o, amava-o

somente ela, a pedra com o poema,

e cansada dos braços sem ser amados, afrouxaram-se

com a leveza sem poema, deixando-o partir sem a pedra

 

 

 

 

 

 

*

 

não havia mar

mas a imensidão batia no rochedo

como era natural aquele ir e voltar

das coisas constantes que se chamavam

cotidiano

 

não havia azul

mas o céu expandia

a sombra clara e o calor

sobre a cidade que se chamava

nossas moradias abraçadas umas nas outras

 

não havia montanhas

mas os declínios das ruas

formavam as ladeiras de paralelepípedos

que iam desembocar no plantio

de laranja lima e o milharal

de cabelos ao vento

 

não havia riqueza

mas um menino andava

de bicicleta nos trilhos de terra

com as canelas sujas

e a alegria cariada

e era o que se chamava de verdadeiro

 

quando mais tarde

as chuvas vinham saltitar

nas poças como bem queriam

 

mesmo que a bicicleta era enferrujada

roubada havia tempos de um vizinho

da outra quadra

mesmo que o prato na mesa

deixava a fome ainda viva

e o doce era um desafio

das pequenas mãos ávidas

na venda do velho avisado

 

mesmo que a telha da casa

era furada e do céu revestido de nuvens

pingava a água no meio da sala

 

não havia certeza

mas as coisas eram tão simples

que chamavam-na de infância

 

enquanto os anos vinham

e ceifavam as laranjas

como bem queriam

 

 

 

 

 

 

a queda

 

a bola de sorvete da menina

caída no chão na primeira lambida

                    derrete

o calor intenso do sol a pino

na calçada brilha

uma pomba com uma pata atrofiada

                   claudica

na margem da sublime perda

e ganha o doce sabor do acaso afortunado

 

o deserto na boca da menina

tem gosto de vento abafado — e saudade

ancorado no chão o olhar suave

e o tremor de uma lágrima

não possui a força de uma tempestade

 

 

 

[Do livro inédito Ossos da Saudade]

 

*

 

schreib mir, ob du schon Arbeit hast?

schreib mir, ob du eine Wohnung gemietet hast?

sind deine neuen Freunde wirklich Freunde?

verstehst du, was in ihrem Kopf vorgeht?

schreib mir, ob du jetzt Jemand anders liebst?

schreib mir, ob jetzt Jemand anders dich liebt?

 

 

 

 

 

 

*

 

die Welt geht den Bach runter

und ich in ihrem Innern

wie eine Raupe im Apfel

wohin fliehen?

hab keine Beine und keine Flügel

hab nur den Apfel

 

 

 

 

 

 

*

 

ich kenne das Schweigen der Blätter, wenn der Wind fort ist

ohne Abschied                                     entfernt von mir

ich kenne diese Stille, wenn mir die Farbe nicht mehr schreibt

keine Nachrichten von dir, kein Ton deiner Stimme

keine Schatten deiner Gestalt

ich kenne diese Ruhe, in der sich nichts bewegt

ich kenne diese Schwarzweissfotografie meiner Sehnsucht

 

 

(imagens ©soapbeard) 

 

 

 

 

Viviane de Santana Paulo (São Paulo/SP, 1966). Poetisa, ensaísta e tradutora, mestra em língua alemã para estrangeiros. É autora de Passeio ao longo do Reno (Alemanha: Gardez Verlag, 2002) e Estrangeiro de mim(Alemanha: Gardez Verlag, 2005). Participa da antologia Roteiro da poesia brasileira — poetas da década de 2000 (São Paulo: Global Editora, 2009) e da Antología de poesía brasileña (Madri: Huerga Y Fierro, 2007). Vive em Berlim.