Três

 

Morreu minha

         fome de vida.

Minha professora tocando uma cítara —

morreu.

Morreu ela e morreu a cítara.

 

Muitos

         mas muitos anos depois —

a cítara.

 

O garoto que fugiu de casa

com uma mochila

e que só se guiava

pelos peixes

e pelas nuvens carregadas —

morreu.

Morreu ele, os peixes, as nuvens, a mochila.

A cor deles

a voz deles

a canção deles.

 

Muitos

         mas muitos anos depois —

a mochila.

 

Não disseram

vou morrer

não avisaram

não pensaram

não se desculparam por não avisar.

 

Morreram.

 

E na rua os carros continuam.

 

Morreu minha mão nunca nascida.

 

E na rua os faróis acendem todo dia.

 

Oh, gorda lua acendendo o alto das árvores por trás

(de forma que para mim ficam as árvores

ainda mais negras):

não te peço para morrer.

Te peço para deixar de ser.

 

Essa é a solução:

não morrer

mas

deixar de

 

ser.

 

 

 

 

 

 

Cinquenta

 

Sabe quando um peixe vivo é trazido pela maré

e a maré abaixa e ele morre?

E quando a água

vem não adianta:

ele já morreu.

 

E vem aves comer ele e comer perto dele.

 

 

 

 

 

 

Dois

 

Fumei.

Sentei:

metade do corpo

na sombra

metade do corpo

no sol.

 

Meu coração

metade meu

metade teu

batia forte.

 

Olho para a camisa,

para a minha barriga:

o pano treme

com o meu coração

que bate forte.

 

Então é assim

— doce sangue

confessando nos intestinos

o quanto peca

e

erra

no coração.

 

Coração.

No coração.

Do coração.

Para o coração.

Depois do coração.

 

Atrás

atrás do coração.

 

 

[Poemas do livro O abraço mais triste do mundo, inédito]

 

 

 

 

 

 

Temporário

 

I

 

Um dia ele se matou

E como não havia acontecido nada

Não aconteceu nada.

 

 

II

 

É como uma fumaça de cigarro

Tão leve e fedida e bela

Quanto uma fumaça de cigarro.

 

 

Só que sem cigarro ou sem pessoa que a faça no ar.

 

 

III

 

Isto, minha filha: o mundo.

Não isso, mas isto.

 

 

IV

 

Piquem-me

Dentro de uma bacia

Como cebola

Chorando não por causa de mim

Mas por causa do que se desprende de mim

 

 

[Do livro A parede e o sangue dela, inédito]

 

 

 

 

 

 

A forma como você limpava a maçaneta da porta

 

Está nesta boca que subverte esperma

O mesmo sentido lacônico e vicinal

Da mãe que come o filho,

Do pai que come o filho,

Da jovem que come sangue.

 

Ah! A beleza.

Em cada quina da incerteza.

 

 

[Do livro Casa devastada, inédito]

 

 

 

 

 

 

Fumaça

 

Um córrego enterrou minha infância.

 

Parei a leitura para descer a manhã.

Você não me incomoda, pode ficar.

 

Pensei em fazer

Até cartões de ano novo.

(Tudo para não cair na

Fórmula no

Carrossel velho e chorão na

Formatação Times New Norman 12, espaçamento 2)

 

Já te contei de quando morri afogado

No rio atrás da minha casa?

 

Não vale a pena.

 

Estamos afundados na noite

Para falar

Da noite

Não para falar com a noite.

 

Escuto grito de criança.

Então passa um ônibus.

Começará a chuva?

Ao meu lado

Duas mulheres

Falam do trânsito

Ruim

Do governo

Ruim

Da vida

Que é difícil mas é boa.

Ouço. Que mais se pode fazer senão ouvir?

Tapar os ouvidos é que não vamos.

Claro, não vamos. Sem dúvida, não vamos.

 

Voltemos à noite.

Coma outro prato de sopa.

Eu te acompanho,

Se você ficar.

Se você ficar se embebedando,

Eu te acompanho.

Se você entupir a goela com sopa,

Eu te acompanho.

Se você quiser catar feijão,

Eu te acompanho.

 

Enxuga a boca.

Teu sapato está

Molhado.

Será a vida espatifada

Nas calçadas da memória?

Começará a chuva?

 

Começará a chuva.

 

Reconheço o som.

É um córrego. É como um córrego.

Um córrego enterrou minha infância.

 

 

 

 

 

 

Troppo

 

Açougue aberto até tarde.

É madrugada.

Fecha o dia.

Ia dar outro gole.

O veneno?

É a água.

É o oxigênio.

Vê?

É morte.

Amanhã — é dia.

O cansaço de não ter

Dentro do cansaço outro desistir.

Fecha os olhos.

Vai amanhecer.

Vai amanhecer?

 

 

 

 

 

I'm home

 

Outro relevo

Outra cama

Outra voz

Outra partida

Outra chegada

Outra partida.

 

Meu cachorro

Era o mais animado

Quando voltei

Meu cachorro

É o único que

Não me impediria de partir

De novo. Ele gosta de mim.

 

Outra carne

Outro pires partido

Outra mão na minha mão

Outro céu escancarado

Outro coração contra a parede arremessado.

 

 

[Do livro Boi vivo, inédito]

 

 

 

 

 

 

Uma dor aguda que é crônica

 

Aqui não sou a criança que fui.

Na minha identidade gravaram o rosto

de um tolo: tipo estranho, cabelos muito curtos,

cabelos iguais à areia, pele brilhando, cabelo ralo. Reconheço.

 

Certos ângulos o deixariam com vontade da tua voz.

 

Se há voz humana — é fora deste corpo,

atrás da fotografia,

na boca da moça que me dá a identidade

e não lhe sei

nem o nome

nem a origem

nem a idade

nem o sexo, mesmo que

 

feminino.

 

(Não tenho reações bem definidas diante das coisas.

Se as sinto agora, não as sentirei depois.

Se as sinto boas, as sentirei horríveis.

A constância é uma solidão. Sou cadáver

tacado às águas para que não infeste a embarcação.

Pula no mar.

O meu nome é uma memória de escravos.)

 

Na minha cama

no meu peito:

Amor,

você me dói.

 

 

 

 

Saque

 

Minha mão que está aberta.

Minha mão que está aberta e destruída.

Minha mão está aberta e destruída não é minha.

 

Os mosquitos

que me picaram

 

a navalha

com que fiz a ponta do lápis

 

o revólver

engordurado de sangue

 

tua mão

feita de cacos.

 

 

[Do livro Agonizado está, inédito]

 

 

 

 

 

 

Réquiem

 

 

1. Introitus

 

Povoaram minha casa:

         Sinos dobrando, símbolos do estilo, demônios de capa preta,

Homens barbados comendo mulheres, mulheres gordas limpando os dentes com

         A ponta da unha,

Escritores vomitando num balde de suco de laranja,

         Instintos rodopiando com a ponta acesa.

Dêem-me o isqueiro! — grito para o Tumulto.

Deus, também tu, Deus, lançando-se ao vidro?

 

Encheram o tanque com pedaços de carros, fios de cirurgia,

Álbuns de fotografias.

Quero lavar minha roupa.

Ora, diz-me um pintor cortando as unhas dos pés: estás nu.

 

Qual o rosto do ladrão? Escuto um estalo. Meu

Cachorro amarelo some na escuridão das árvores. Ouço um

Berro canino.

Então um baque. São eles vindo. São eles vindo. São eles vindo.

Adormeço imaginando-me pondo fotografias no varal para secar.

 

 

2. Kyrie

 

Muitas das coisas que fiz

Foram internação.

Silêncio: começa um homem.

Alerta: passa o canhão.

Abaixo a liberdade!

Carroscarroscarros:

Toda solução é pouca

Toda velocidade é andar pra trás

Toda humanidade é desumanizar-se.

Queria uma solução

Queria um mundo.

Ganhei na loteria.

 

(Toda criatura é

mais profunda do que o seu criador.)

 

 

3. Dies irae

 

Meus intestinos — têm quantos metros?

Começo a sossegar.

Morreu acendendo um cigarro.

Não diga!

Sim.

Morreu tentando completar a palavra.

Não diga!

Sim.

Pois sim. Réquiem réquiem réquiem.

Começa a gritaria.

Outra valsa?

A contra-dança.

Por que não a anti-dança?

Por que não?

Pois sim! A anti-dança da vida.

 

Morreu tentando completar a palavra.

Não diga!

Sim.

Que palavra?

Sim.

 

(A palavra que era vida e não podia ser palavra.)

 

 

5. Rex tremendae (Fatal)

 

Sozinho. Sábado à

Noite. Desligo o réquiem,

Vou até a janela. Lavam

Carros, acendem banheiros,

Deixam janelas abertas (faz

Calor), ouço motores roncando,

Conversas nas montanhas, batuques,

Cães enfurecidos.

Toda a gente sente isso.

Saio da janela.

 

Inventem

Inventem

Inventem

— o hormônio da nitroglicerina.

 

 

8. Offertorium

 

Fé — depois do Desconhecido.

Fé — depois do Mistério.

A Música dos Mortos:

Canta o amanhecer. Roga

A luz da Noite. Ajoelha-se o

Altar. Perdemos a Confissão.

Matamos o Fogo. Perdemos a Confissão.

O caos — antes

Da Noite. Perdemos a Confissão.

Tumulto — escreve meu Nome.

Multidão — devolve meu Nome.

Lugar — simultâneo ao pensamento de Outro

         Lugar.

Perdemos a Confissão. Perdemos tempo.

Outra dose. A lua saindo sem deixar Mácula.

O céu limpo. O sangue das pedras. O espaço da vida.

Perdemos a Confissão. Perdemos o Tempo.

 

 

9. Sanctus

 

Este sentimento de que estou incomodando... Sinto

Desde que me lembro de estar aqui. Eu bato na tecla:

Estar aqui. Eu bato na tecla:

Não estarei atrapalhando o sono do meu cachorro amarelo?

Meu réquiem nas alturas: os cachorros ouvem mais. Não estarei

Enchendo as orelhas dele com lixo de ilusão humana?

Mas, que merda, o que posso sentir senão alegria de

Estar aqui

Incomodando?

Faz-me mal, faz-me bem: isso serve

Para fazer uns cinco versos.

 

 

10. Lacrimosa

 

Onde mais eu posso pisar

Além do chão?

Alguém aqui se lembra de quando começou?

Levantem-se.

(De pé.)

Eu sou só um cara que

Resolveu avisar aos outros

O que ainda vão ver.

 

Escrevo para o que vai vir.

 

 

14. Lux aeterna

 

E se quem nos criou tiver sido o Demônio?

Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós.

 

E se Deus for criatura do Demônio,

Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz.

 

E não o Demônio criatura de Deus?

Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, tende piedade de nós.

Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz.

 

 

15. Réquiem aeternam (Quantos anos você tem?)

 

Pudor pudor pudor

Mas sejamos despudorados.

Enchi minha obra de trivialidades

Para que não pudessem dizer com certeza?

É ele é ele é ele!

Vamos dizer: meu nome é Tudo.

Minha vontade é Vida.

Meu negócio é Coisa.

 

Minha morte é o Outro.

 

 

[Do livro Com as pernas para fora da janela, inédito]

 

 

 

 

(imagem ©manuel da costa)

 

 

 

 

Thiago Mattos nasceu em Petrópolis. Estudou Cinema. Estuda Letras. Aos 16 anos, caiu em desgraça mental, sentimental, espiritual: escreveu o primeiro poema; nunca mais se levantou. Há pouco tempo, incentivado pelo artista visual Júnior Suci e pelo poeta Flávio Viegas Amoreira, decidiu-se por abrir uma greta da gaveta. Desde então, algumas breves seleções de seus poemas vem sendo publicadas em portais literários.