Há vários séculos o teatro europeu tem bases aristotélicas. Em outras palavras, acredita-se que o público que vai ao teatro deve se emocionar e se identificar com o herói, que o palco deve imitar a ação e que o ator deve encarnar a sua personagem, tudo isso de forma a tornar o teatro mágico e elevar o nível do espetáculo.

Brecht surgiu em cena para contradizer todas essas "verdades". Para ele, segundo Barthes

 

o público só deve engajar-se pela metade no espetáculo, de modo a "conhecer" o que lhe é mostrado, ao invés de se submeter a ele; que o ator deve dar à luz essa consciência denunciando seu papel, não o encarnando; que o espectador não deve nunca identificar-se completamente com o herói, de sorte que ele permanece sempre livre para julgar as causas, depois os remédios de seu sofrimento; que a ação não deve ser imitada, mas contada; que o teatro deve cessar de ser mágico para se tornar crítico, o que será ainda para ele o melhor modo de ser caloroso (BARTHES, 1999, p. 130).

 

O texto de Garcia (1988), corrobora as palavras de Barthes ao afirmar que o objetivo do teatro de Brecht é o de "mexer na consciência do espectador em relação à necessidade de se transformar a vida".

Verifica-se que o pensamento de Brecht alinha-se com os grandes temas progressistas da atualidade, ou seja, que o homem, sendo responsável pelo mal que o atinge, é também responsável pela dissipação desse mesmo mal; que a arte tem o poder e o dever de interferir, de influir na história; que precisamos mais de uma arte de explicação do que de uma arte de expressão; que o teatro deve colocar-se ao lado da história, desvendando o seu processo; e que, por fim, cada sociedade deve inventar, criar a arte que melhor possa conduzi-la à libertação (Barthes, 1999).

A obra de Brecht, Os fuzis da Senhora Carrar, ambientada durante a Guerra Civil Espanhola, vale como um exemplo das suas ideias expostas anteriormente.

Essa peça tem como cenário a casa da Senhora Carrar, localizada na Andaluzia. No início, o narrador nos conta que Teresa Carrar é uma mulher quarentona, esposa de pescador e que no momento está fazendo pão.

Ela se encontra em casa com o filho mais novo, José, um rapaz de 15 anos, enquanto o filho mais velho, Juan, de 20 anos, está pescando. Da casa ela "vigia" Juan em seu barco, pois teme que ele vá para a guerra.

Teresa não teme a guerra, apenas tem consciência de sua inutilidade. Ela se declara pacifista — "Sou contra todo o derramamento de sangue" (p. 17) — e sabe que o povo, os pobres só têm a perder numa situação como essa — "Nós somos gente pobre, e gente pobre não pode meter-se em guerra" (p. 17).

Durante o decorrer da peça várias personagens vão à casa de Teresa, sendo que a maioria delas — o padre, Senhora Perez, Pedro (irmão de Teresa), Manuela (namorada de Juan), um ferido de guerra — expõe o que pensa a respeito do conflito e do comportamento assumido por Teresa.

Teresa quer manter-se neutra, não quer que seus filhos lutem, que se envolvam no conflito, pois ela acredita que dessa forma estará assegurando, poupando a sua vida e a dos filhos. Ela declara sua ideia a todos, sem deixar dúvidas.

Isso, contudo, se mostra impossível. Todos cobram de Teresa um posicionamento, uma vez que a neutralidade não existe. Ser neutro significa pactuar com tudo o que está acontecendo, significa apoiar o governo e seus métodos de ação.

 Enquanto a senhora Carrar pensa somente em si, no seu bem e no de sua família, a sociedade, que se encontra representada pelas outras personagens, exige que ela pense em todos, no que é o melhor para a coletividade.

Dentro da própria casa o filho mais novo representa a voz da sociedade, cobrando dela uma posição no que diz respeito ao conflito, pois a neutralidade é algo que envergonha, que leva a segregação dos que a praticam.

O silêncio, que por vezes aparece na peça, deve ser um momento dedicado à reflexão. São nessas pausas que o espectador, junto com a personagem, tem oportunidade de ir formando a sua opinião.

A última página dessa obra (p. 50) é bastante significativa. Com a morte de Juan, o filho mais velho, Teresa Carrar vê não só a inutilidade da guerra, mas também a impossibilidade de se manter neutra em meio ao conflito e ela, por fim, decide aderir à causa.

Ela fala agora sobre os aliados e subordinados dos generais — "Eles não são gente. Isso é uma lepra, e tem de ser tratada a fogo como a lepra".

No momento em que ela cobre com uma bandeira o corpo do filho morto modifica-se o ribombar dos canhões ao longe, dando a impressão de que eles estão mais perto. Segundo Pedro, o irmão de Teresa, isso significa que o bloqueio foi rompido e que ele precisa ir embora. Podemos entender também que os canhões estão chamando Teresa para a guerra, exigindo que ela tome uma decisão que não pode mais esperar.

Teresa, então, acaba por dar os fuzis ao irmão e diz ao filho mais novo que vá se preparar. Ao vê-la retirando o pão do forno, embrulhando-o numa toalha e dirigindo-se para eles com um dos fuzis na mão, o rapaz indaga: "A senhora também quer vir conosco?", ao que ela responde: "Vou, por Juan".

Segundo Barthes

 

a moral vigente nas peças de Brecht nada tem de catequista, sendo, pois estritamente interrogativa a maioria das vezes. Sabe-se que certa peças suas terminam por uma interrogação literal ao público, que o autor encarrega de encontrar ele próprio a solução do problema proposto (BARTHES, 1999, p. 138).

 

Os fuzis da Senhora Carrar é uma dessas peças. A última pergunta que José dirige à mãe é, na verdade, dirigida a todas as mães e não só a elas, mas ao público em geral, é um convite: "A senhora também quer vir conosco?".

A senhora Carrar acabou, finalmente, tomando a sua decisão, e Brecht espera que cada espectador também tenha coragem de tomar a sua.

Ao responder "Vou, por Juan" Teresa Carrar não está indo somente pelo filho, mas no lugar do filho que, morto, está impossibilitado de se engajar na luta, e quando vivo foi por ela impedido.

Vale aqui a comparação entre as personagens Teresa Carrar e Pelaguéa Nilovna.

Pelaguéa Nilovna é a protagonista do romance Mãe, de Máximo Gorki, escrito em 1907 e considerado um de seus trabalhos mais importantes. É tido como a primeira obra do realismo socialista.

Diferentemente de Teresa, Pelaguéa aderira à luta dos trabalhadores na Rússia czarista inicialmente, por amor ao filho, e depois, ao compreender as injustiças de que os mesmos eram vítimas e por acreditar na validade de suas reivindicações.

Se Teresa vai para a guerra certa de sua inutilidade, Pelaguéa não vê para o povo sofrido de qualquer parte do mundo outra opção a não ser a de lutar por seus direitos.

 

 

 

Referências

 

BARTHES, R. Crítica e verdade. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 1999, 3.ed.

 

BRECHT, B. Teatro completo, em 12 volumes. Tradução de Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, vol. 6.

 

GARCIA, S. Teoria e prática do teatro. Tradução de Salvador Obiol de Freitas. São Paulo: Hucitec, 1988.

 

 

 
 
setembro, 2010
 
 
 
 

 

Nádia Montanhini (Rio Claro/SP). Doutora em química pela UNICAMP, e graduada em Letras pelas Faculdades Integradas Claretianas de Rio Claro/SP. Faz, atualmente, especialização em Língua Inglesa e Tradução na UNIMEP.