UMA CENA TRISTE

 

 

Lá se vai ela preenchida de vazio, uma cena triste, ele chegando com sua moto azul e ela com seu casaco meio amarelado, e sentaram nas cadeiras sem quase se cumprimentar, foi um aperto de mão, nada mais, e pediram ambos a mesma coisa para beber, por favor, um copo e tônica com limão, sem gelo, dor de garganta, desculpa de um, dente sensível, desculpa do outro, e com a saída do garçom ficaram alguns segundos em silêncio, ela acendendo um cigarro, nossa, você voltou a fumar? sim, respondeu sem olhar para ele, e você a roer unhas, sim, respondeu ele, tímido, olhando para as mãos quase sangradas, e o garçom voltou com os dois copos e as duas tônicas, mas em um copo faltava limão, esperaram então para beber juntos mesmo com a relutância dela, não, pode beber, eu espero, nem estou com muita sede, e riu sem graça sabendo estar conhecida sua mentira, e disseram juntos como num passe de mágica, sinto sua falta, sinto sua falta, ecoou pela praça e ninguém ouviu, ninguém além de mim, que estava ali, ouvindo tudo perplexo com o olhar de amor e o sorriso de caridade forçada, mas não podia fazer nada, quem era eu, o mais desprovido das paixões, o mais fracassado dos relacionamentos, traído em seis namoros consecutivos, abandonado no sétimo, forçado pela doença a sair do último, o oitavo, sem a possibilidade mínima de ser feliz por meses, meu Deus, peço meses, anos, talvez, é pedir muito? não quero mais a vida toda sendo feliz amando e sendo amado como eu queria na adolescência, perdi aquela inocência, meu Deus, perdi aquela força que me fazia vibrar quando pensava no amor, e escrevia poesias, e ouvia músicas, e abraçava a mim mesmo me imaginando nos braços de uma outra pessoa que então não conhecia, pois é, não conheci, e sei hoje que não conhecerei nunca, e vendo aquele casal ali, dias depois da separação, me senti o mais normal de todos os seres, e ele entregou os óculos escuros, deixados sobre a cama no último encontro, e ela entregou a carteira vazia, só com um documento com foto e um cartão de crédito, carteira para balada, riram uma vez no começo de tudo, e que ele havia esquecido na bolsa dela naquela última balada, a primeira em que não brigaram, mesmo quando ela viu ele olhando de rabo de olho para uma rapariga loira e sem cor, não tinha cor a mulher e ele lá, olhando pra ela, e ela lá, fingindo não notar que o homem que dizia eu te amo de manhã, todas as manhãs, olhava para alguém tão sem cor, logo ele que gostava tanto do arco-íris, mas fazer o que, aquilo já havia acabado mesmo, dar barraco aqui só anteciparia o certo, e não queria isso, pelo seu rosto ela havia nascido para receber ordens, sim, não, vai, vem, finge, morto, deita, e não para tomar decisões, não tomou, então, e ficou lá, olhando ele que olhava outra, e quando se voltou a ela disse que queria ir pra casa, fuder, quem sabe, e foram, e fuderam, e perceberam, triste que só, que nem mesmo o sexo era o mesmo, tudo estava mudado, perdido, metamorfizado em algo que nem eles sabiam o nome se é que nome tinha, e seus dedos tocaram quando trocaram os objetos, e fingiram ambos não notar, mas notaram, vi pela perna trêmula dele, vi pela face corada dela, vi pelos olhos nublados de lágrimas dos dois, sim, os dois tiveram os olhos nublados de lágrimas que chegavam a brilhar e esconderam fingiram camuflaram e disseram e então, riram sem graça mais uma vez, ele se calou e deixou ela falar, cavalheiro que era, e então, ela disse, como você está, estou bem, caminhando, percebo que sou uma pessoa melhor, que preciso ser melhor, mesmo nunca estando tão sozinho como às vezes sinto que estou, ela não mudou seu semblante, é, disse ela, é... às vezes é isso mesmo, mas passa, essa dor, essa saudade, essa coisa toda, porque na verdade, sei lá, na verdade a gente já tava caindo nesse buraco, né, ele tocou o copo de tônica e viu as unhas roídas, sim, sim, passa, sei que passa, e você, como está, fiquei sabendo que anda se divertindo, ela riu irônica, sim, estou tentando, viajando, indo em festas, casamentos, funerais, qualquer coisa que possa ser diferente de você na minha cabeça, mas não entendo, não entendo porra nenhuma da vida, e não sei porque todos os lugares, até aqueles que nunca estive com você, me lembram você, entende, entendo, ele respondeu, entendo sim, e também sinto isso, e sei que também isso passa, né, é, até isso, disse ela acendendo mais um cigarro no intervalo de um gole e outro, a fumaça saindo de sua boca vermelha como chaminé, faz tempo que voltou a fumar, perguntou então ele quebrando o silêncio já quebrado pelos carros, desde que terminamos, novamente o silêncio, até que ele, depois de cinco ou seis minutos, disse que teria que ir embora, tinha umas coisas para pegar e uns ajustes a fazer e umas contas a pagar e procurar um apartamento porque a casa onde morava já tinha enchido o saco e não queria mais morar naquela região e queria ir pro outro lado da cidade, lá onde não existia travestis vendendo corpo e traficantes comprando almas, lá longe onde poderia ser feliz numa casinha família, num prédio de família, sei lá, e ela disse que tudo bem, poderia ir, ficaria ali mais uns instantes, esperando o tempo passar, trazia consigo um livro e um bloquinho em branco onde poderia escrever pensamentos palavras ações não consumadas e escrever quem sabe cartas, gostava de escrever cartas, você sabe, eu gosto de escrever cartas, sim, ainda tenho as que você me mandou naquela gaveta, fechadas, escondidas entre cuecas e meias e minhas intimidades todas, e ela ficou perplexa com sua intimidade lembrada, e ele ficou vermelho de tanta lembranças daquelas peças, e eles sabiam o que o outro pensava, e ambos sabiam e sentiam e queriam mas algo que nem um dos dois sabia o nome, pobres jovens apaixonados sem razão que queria colocar razão em tudo, nem eles tão objetivos e científicos sabiam o nome dessa coisa que os somava e os diminuía, que os queriam tão pertos e ao mesmo tão distantes um do outro como água e óleo e tinta que juntava nos dois e ficava como lembranças mal apagadas e saudades mal curadas e passado mal passado, e então ele se levantou e estendeu a mão para um adeus, sim, um adeus, não seria mais um até logo, até sábado que vem, até amanhã, até o jantar, meu amor, não, não daquela vez, senti nos olhos dele e dela o adeus estampado cruel e risonho como o demônio gritando adeus adeus A-D-E-U-S e ela estendeu a mão se levantando e pensei putz eles vão se abraçar e vai rolar um beijo aqui mesmo e ele vai entranhar as mãos nos cabelos dela e ela vai gemer baixinho dizendo que saudade de você, meu amor, e ele vai sorrir safado e dizer igualmente baixinho agora estou aqui, meu amor, e vai ficar tudo bem, prometo, promete como você prometeu antes, não, de outro jeito, agora é pra sempre, e se perderiam mais uma vez naquele pra sempre que nunca é pra sempre e diriam um ao outro eu amo você como se fosse a primeira vez e chorariam ali, diante de bitucas de cigarros e copos pela metade de tônica com gelo e limão e eu, em uma mesa não muito distante, acreditaria novamente no amor, até acordar, e acordei, e lá estava ele já na esquina, sem olhar pra trás, cabeça erguida e corpo ereto, e aqui estava ela, cabeça baixa com lágrimas nos olhos, dizendo pela última vez é pela última vez que choro por você, seu maníaco manipulador, seu puto, seu cachorro estraga prazeres, não me ligue mais, não vou te atender, não me venha chorar carências, pedir desculpas, suplicar retornos, quero viver a vida que não terei com você, quero ser melhor, preciso ser melhor, vou ser melhor como nunca fui antes, e acendeu mais um cigarro sabendo que não seria o último, e o garçom ia vindo quando a viu chorando e ficou com receio e voltou para a cozinha onde tinha uma porção de batatas esperando com bacon e queijo e ela ficou lá, sozinha, chorando como a garoa de são paulo esperando um arco-íris surgir, e não surgiu, nada aconteceu, ela apenas se levantou e foi embora entrando na estação de metrô ali do lado e eu fiquei espiando ela desaparecer no buraco na calçada enquanto comia minha porção de batatas com queijo e bacon e pensei: lá se vai mais uma possibilidade de amor, mais uma potência de morte, lá se vai mais um ser como qualquer outro, como eu, lá se vai a infinita natureza humana, preenchida com suas duas essências, amor e morte. Lá se vai ela, a vida, preenchida de vazio.
 
 
 

 

KOBA

 

Para Dan Mendes Rosa

 

 

Koba? Você está aí? Ah, que susto! Pensei que tinha ido embora. Tá escuro, né? Pois é. Noite fria. Amanhã é meu aniversário. Vai ter festa na escola. E mamãe vai fazer o bolo. Mamãe disse que não era mais pra conversar com você. Ela acha que você não existe. Não entendo. Estranho, né? Acho que quando a gente cresce a gente não enxerga os amigos de verdade. Você é meu amigo, Koba. Meu melhor amigo. E papai disse que preciso crescer rápido, amadurecer, ele diz. Não sei o que quer dizer, mas sei que se eu for ficar cego quando crescer já não quero mais. Não quero te perder, Koba. Não quero mesmo. Como vou ficar? Sem amigos? Sem você? Você me entende, né? Sei que entende. É o único que me entende.

Ai, Koba, tá frio aqui, né? Vou fechar a janela. Peraí, deixa eu acender a luz. Que chão frio! Essa janela tá meio emperrada. Forçaaaa... Pronto. Para de rir, Koba! Peraí, deixa eu apagar a luz. Nossa, olha como a cama está longe! Como vou andar tudo isso no escuro? Não tinha visto que era tão longe... E agora, Koba? Você vai me ajudar, né? Eu sabia. Você é um grande amigo, Koba. O melhor que eu tenho. Vai me proteger? Fica ali, perto da cama, e não deixa nenhum bicho sair daí. Eu vou apagar e correr. Um. Dois. Três. Pronto. Valeu, Koba! Valeu mesmo.

Ai, Koba, que sono, né? Corri muito hoje na escola. Você acredita que o Murilinho me chamou pra jogar bola com ele? Pensei que ele fosse chato, mas não é. Já o Carlinhos me chamou de bobo. Não gostei não. Minha mãe diz que isso é falta de educação. Eu acho que é falta de amigo. Falta de um amigo como você, Koba. Um bom amigo.

Ai, Koba, tomara que eu não tenha pesadelos, né? E que eu durma rapidinho, porque daí amanhã chega rápido. Meu aniversário! Será que vou crescer muito essa noite? Nossa, Koba, me deu um arrepio agora pensar nisso! Um medo. Tomara que amanhã o Murilinho me chame de novo pra jogar bola. Tomara...

Ai, Koba! Já são mais de onze. Nossa! Quase meia noite. Quase meu aniversário. Falta só três minutos. Meu coração tá disparado. Agora só dois. Parece que já tô sentindo minhas pernas crescerem. Um minuto! Papai disse que já seria homenzinho hoje! Ser homenzinho é amadurecer, Koba? Koba? Koba? Você está aí? Ai, meu Deus! Koba! Eu não quero mais amadurecer! Já tô com saudades de ser criança...

 

 
 

SEM CHANCE DE RESSUSCITAR

 

 

Olhei para o lado e vi o cigarro ser consumido pelo tempo.

Nada mais me restava. Só as lembranças. E elas não eram boas companhias.

Meus olhos se fecharam de sono e dor. Minha cabeça latejava incessante sem pressa de chegar o fim dos tempos. Gritava ser eterna a pulsação dolorida. Lágrimas caíram, não pela dor, mas pela saudade, que não uivava, nem gritava dentro de mim. A saudade dele me extinguia da vida, me separava do mundo, transportava-me a outra realidade mais fria e mais morta. E era lá que eu era consumido pela dor.

Ele era apenas um amigo, e deveria continuar assim. Eu era quase metade de um homem formado. Não tinha sonhos em especial, nem planos. Importava-me mais com os planos dos outros. E me infiltrava neles. Quando ele entrou na minha vida possuí seus sonhos. Nada mais importava. Nada. Apenas que seus sonhos fossem realizados. Empenhei-me nisso. Era a sua felicidade que importava. Queria ser responsável por ela.

Sua amizade era tão importante pra mim. Sua companhia era forte demais para mim. E a mais rápida ideia de vê-lo beijando outro me machucava. Pensei ser ciúmes de amigo, porém com o tempo doía demais. Não era só isso. Fechei meus olhos e quando abri já estava apaixonado. Ele vinha até mim para contar seus amores, minha imaginação fluía, meus nervos se contorciam, meus olhos ardiam, meu coração pulsava e minha respiração se tornava ofegante demais para ser escondida. Mesmo assim eu sorria. E sorria sincero. Sorria para ele. E para ele tudo era sincero.

Mas como entender uma força tão grande, algo superior às minhas vontades? Como poderia frear sentimentos, desejos, anseios?

Entreguei-me então ao sofrimento solitário e solidário de permanecer fiel à amizade, prendendo os monstros dentro de mim e esfriando minha alma enquanto seu desejo maior era o de explodir dentro de si própria e conceder aos amantes a alegria de simplesmente amar.

E tudo deveria ficar assim: uma estreita amizade, diversão, viagens, boates, praias, passeios, compras, segredos, ligações, comidas, garotas... (?) Garotas? Não. Tanto eu como ele sabíamos um do outro. Seria pior se fosse o contrário. No começo de minha adolescência me apaixonei por um outro amigo. Hétero. Vi-me perdido num curto espaço de tempo. Esqueci a partir do momento que me mudei com minha família. O contato continuou: jamais termino uma amizade, por mais certo que seja o motivo. Apenas a leve distância e a saudade foram suficientes para acabar com aquele sentimento chato de se sentir. Ele era apenas amigo, nada mais. Alguém com quem partilhava sonhos e segredos, risos e lágrimas. Sentia-me mal em vê-lo com outros amigos, mesmo sabendo que sua opção sexual era bem definida. Mesmo assim, mesmo com essa certeza, via que o ciúmes era mais ligado à amizade que a outro sentimento. E a dor que sentia era a mesma, com ou sem a certeza.

Dessa vez ele não é hétero. Ele também é como eu. Ainda novato nesse mundo de sexo e prazer barato, de sonhos desfeitos em noites e sentimentos esquecidos em músicas. Dessa vez não há como haver distância. Não tenho planos de sair da cidade, e se for será com ele, para começar uma vida nova e um sonho novo. Porém, nada mais que a mais pura e sincera amizade. Mais uma vez não sacrificarei minha amizade por causa disso. E mais uma vez não assumirei algo que poderia destruir qualquer tipo de sentimento que existe hoje entre nós. Pelo menos era nisso que eu acreditava.

Entretanto, as coisas tomaram rumos inesperados. O que era paixão se transformou em amor. Paixão passa rápido, se esquece no tempo e na cama, no sorriso de outro ou na voz de si mesmo. Paixão pode durar um carnaval, uma noite, uma hora. Pode ser apenas firmada em tesão. Amor não. Amor é eterno, grande, único. Não se esquece com o tempo nem nos braços de qualquer outro que seja. E por isso toda a situação piora. Estou amando!

Até que cheguei à triste decisão de terminar com tudo. Afastei-me. Sacrifiquei meu bem maior contigo: nossa amizade. Eu, que  nunca terminava uma amizade (se é que amizades podem ser finalizadas pela vontade do homem sem vontades). Seus olhos eu não via mais quando chorava. Suas mãos não estavam mais ali quando eu caía. Sua presença, notada pelo seu calor, não era mais tão certa. Apenas fui. Sem olhar para trás, sem querer voltar. Pelo menos em decisão. Não poderia querer voltar. Assim, sacrifiquei também meus desejos. E sacrificando meus desejos, sacrifiquei meu amigo dentro de mim.

 

Sempre me vislumbrei com a morte. Achava incrível alguém dormir e nunca mais voltar a abrir os olhos. Vi muita gente em caixões, com a pele roxa, silenciosa. E lá ficavam pela eternidade. Mortos sempre permanecerão mortos. Os assassinos são presos, a terra é colocada, o caixão lacrado. Passam duas, sete, cem gerações de coveiros. E os mortos continuam mortos.

Porém, por que você morre dentro de mim — eu te mato todas as noites — e insiste em voltar com o amanhecer? Por que não continuas morto, como todos os cadáveres que vi? Por que não descer ao inferno, ou ir para o céu, enfim...

Mas não... Renasce. Ressuscita! Quase como um deus. Com uma diferença: não espera o terceiro dia. Ressuscita minutos depois de eu te matar dentro de mim. Te mato afogado, enforcado, esfaqueado, baleado, queimado, envenenado, chifrado, esmurrado, atropelado... Não importa. Sempre renasce dentro de mim. E a cada vez que te mato, morre junto um pedaço de mim. E acredite: não tenho o poder de ressuscitar como você.

 

Abri meus olhos. O cigarro não passava de uma tira de cinzas ainda fumegando. A noite já havia caído. Nenhuma luz. "Alguém tem que morrer". Repeti com Virginia Woolf. Mas como, sendo que ele ressuscita sempre que o mato? Então...

Olhei para o lado.

O cigarro, enfim, tinha se apagado.

Fechei os olhos e mergulhei na noite.

 

 
 

 

 

 

Ricardo Dalai (Londrina/PR, 1984). Faz Bacharelado em Estudos Literários. Participou de antologias e concursos, recebendo o 1º lugar no Concurso Dedic Escreve, Portugal Telecom; e o 2º lugar geral no I Concurso Caio Fernando Abreu de Literatura, de Santiago/RS. Escreve o blogue Reticências.