Chico Lopes acaba de lançar o livro Hóspedes da Noite. "São histórias do interno e do externo de personagens amarradas a um mundo cuja compreensão necessita do olhar e da consciência, instâncias que, entretanto, parecem desalojar-se mutuamente. O desencontro entre o fora e o dentro é revelado por uma construção textual refinada e sutil, que suprime os limites e transita em matérias de difícil definição". A afirmativa é de Valentim Facioli, que assina a orelha do livro e o considera "uma espécie de vertigem com abismo provável sempre à vista". Com certeza, em razão da fragilidade dos seus personagens — tão humanos, tão reconhecíveis — que o autor esmiúça e desnuda, de modo a causar espanto.  O Chico é de engrandecer miudezas. Bom de ler, bom de papo. Como se comprova nesta entrevista. [Silvana Guimarães]

 

 

 

 

 

 

Silvana Guimarães - Chico, você acaba de lançar seu terceiro livro de contos, Hóspedes do Vento (São Paulo, Nankin Editorial), que junto aos dois anteriores — Nó de sombras (2000) e Dobras da noite (2004) — formam uma bela trilogia. O que este livro representa para você em relação aos outros?

 

Chico Lopes - Sinto que este terceiro livro reflete bem a passagem dos anos e um possível amadurecimento. São dez anos desde que Nó de sombras, que é de 2000, foi publicado, e foi meu livro de estreia, quando eu tinha 48 anos. Agora, estou com 58. A trilogia parece simbolizar toda uma década, já que Dobras da noite saiu no meio, em 2004, e agora sai Hóspedes do vento, fechando-a. Creio que é um livro mais heterogêneo que os outros dois na forma, pois, diferentemente de ambos, tem mais contos curtos do que longos, mas é o meu mundo temático, sempre se desdobrando: a solidão, as fantasias sexuais e afetivas confrontadas com uma realidade particularmente difícil, os párias, os loucos, os sonhadores delirantes. Dessa vez, uma preocupação maior com a velhice e a morte também, refletindo, naturalmente, o que eu disse logo no início.

 

 

SG - Todos os contos deste livro têm dedicatórias. Por quê? O que alguém precisa fazer/ser para merecer um conto seu?

 

CL - Dediquei meu primeiro livro todo à minha mulher, Maria Vitória, pelas razões óbvias. Depois, no Dobras..., percebi que travava mentalmente, ao escrever, diálogos com certas pessoas que acolheriam bem aqueles temas. Uma amiga, Rosângela Vieira Rocha, a quem expus um conto que já estava em andamento, o "Belmiro agoniza", me deu uma sugestão que mudou o rumo da coisa. Acho que os diálogos com amigos, outros escritores, é sempre fecundo por causa disso. O mesmo aconteceu com "A many splendored thing", desse livro, que dediquei ao escritor Lima Trindade. Dediquei meu conto favorito, "Cavalo e sombra", a um amigo como eu nascido em Novo Horizonte, Claudemir Bellintane, que conhecia tanto quanto eu o personagem real que inspirou o vaqueiro Tião Celestino. Mas em geral meu processo é mais solitário, e dedico o produto já acabado a algumas pessoas mais íntimas, nem sempre escritores. É particularmente chato quando a gente sente que o escolhido não gosta muito daquele conto, que talvez preferisse outro.

 

Acho que o ato de escrever, por mais solitário que seja, é tremendamente social. Acredito, inclusive, que o que a gente procura é uma espécie de despersonalização, que tem mais a ver com um fundo coletivo fervilhante que há em nós. Às vezes, sinto que sou instrumento de alguma coisa muito maior do que eu. E acho isso ótimo, porque uma das melhores coisas da Literatura é isso de nos dar o poder (talvez ilusório) de ter muitas almas. Na verdade, nossa preciosa identidade social, civil, cotidiana, cai demais na aridez. A fantasia nos salva.

 

Para merecer um conto meu, o que é preciso? Nada além de amizade. Ainda acho a amizade o grande sal da vida.

 

 

SG - Como, em geral, você se relaciona com o ato de criar? Vamos falar sobre o primeiro conto do livro — "O Assobio" — que eu gostei muito de ler. Na prática: pode explicar-me a gênese da sua narrativa? 

 

CL - Sabe como é, Silvana? Às vezes, a gente é perseguido a vida toda por uma ideia ou um fiapo de ideia que está ali, nos primeiros contos que tenta escrever, e, quando você julga que aquilo não deu certo e é melhor esquecer, com as voltas do tempo e das circunstâncias da história pessoal, acaba retomando tudo um dia sem querer. Eu tinha na cabeça, há muitos anos, a imagem de um sujeito que assoviava pelas ruas (era um trechinho de uma música de Mozart). Era um sujeito feliz, simplesmente, que de madrugada ia assoviando de mãos nos bolsos, contente com seu corpo, sua vida, parando pra dar sua mijada numa árvore, numa rua de cidade pequena. Daí, veio a ideia de que, por tão feliz, tão espontâneo, ele acabava criando inimizades que nem imaginava em pessoas que dormiam muito mal e ouviam aquele assovio satisfeito. Mulheres reprimidas passavam a desejá-lo, e precisavam acabar com sua espontaneidade, matando nelas o desejo que o assovio despertava. Porque às vezes tenho a impressão de que a felicidade simples, de graça como é, arbitrária e insondável como é, pode ser a coisa mais ofensiva do mundo para quem não é feliz. No caso do assobiador, sua felicidade não ficaria impune. A ideia ficou oscilando entre o trivial e o sombrio. E acabou dando nesse primeiro conto do Hóspedes do vento. Que, antes disso, foi publicado como "O cerco" no Suplemento Literário do Minas Gerais.

 

 

SG - Um passarinho me contou que você começou na escrita pela poesia e nunca publicou um poema. Conte-me: por que isso aconteceu? Como foi seduzido pela prosa?

 

CL – Deve ter sido um passarinho mesmo, porque eu os adoro e vivo botando em meus contos. Na verdade, comecei pela poesia. E também fazendo letras de músicas para amigos. Da poesia, saltei foi para a prosa, mas uma prosa poética, que também se mesclava à crônica, ao ensaio. Mas eu sempre achei que meu destino era a prosa de ficção, e me frustrava muito não poder escrever como os escritores que eu admirava. Eu vivia (isso eram os anos 70) querendo escrever como Dalton Trevisan (meu primeiro conto realizado era uma imitação descarada dos dele), como Clarice, Machado, Edgar Allan Poe, um monte de gente. Nos anos 80, eu saltei de vez para a prosa. Demorei muito a ficar contente com um conto meu. Escrevia e rasgava, escrevia e rasgava, montanhas de papel, de horas que eu considerava perdidas. Também queria escrever novelas (romances me pareciam exigir fôlego demais), que também rasgava. Só vim a publicar um livro de contos em 2000, aos 48 anos, como disse. Eu queria estrear só quando estivesse inteiramente certo de estar escrevendo alguma coisa decente. Minha autocrítica era pra lá de implacável. Não me importei nunca de passar anos, décadas, me purgando.

 

De certo modo, a poesia me parecia insatisfatória porque, aos poucos, me parecia falar com menos e menos leitores. Eu queria algo mais vasto, mais comunicativo, sem abrir mão daquelas ideias. Até hoje acredito que a minha prosa tem heranças desse poeta obscurecido.

 

 

SG - Fale, por favor, de seus modelos ou referências literárias, nacionais ou estrangeiros, do passado ou do presente.

 

CL – Minhas primeiras paixões foram livros de Francisco Marins, Monteiro Lobato, Julio Verne, eu adorava gibis de Tarzan, Zorro, lia fotonovelas e tudo que me caísse nas mãos, incluindo livros policiais, de terror, de mistério, em edições de bolso que um parente meu tinha (em casa não havia uma biblioteca).  Depois, um dia alguém me emprestou um livro que me virou a cabeça — eu tinha 14 anos e era o Capitães da areia, do Jorge Amado. Quis, então, ler coisas mais ousadas, questionando violentamente o meio que me cercava, a Igreja, as convenções, tudo... Fui parar em Dostoiévski. Um amigo tinha uma coleção inteira. Foi a maior comoção literária daquela minha fase da juventude, não esquecerei nunca. Creio que foi ali, no meio de Ivan, Raskolnikov, Aliosha, Marmeladov, vagando febril por tanta humanidade, que nasceu meu desejo mais pronunciado de ser prosador. Depois, vieram muitos outros autores e, decididamente, passei as décadas de 70 e 80 inteira lendo principalmente Proust. Dos brasileiros, lia muito Clarice, Graciliano, Machado, Rosa. De Graciliano Ramos, tenho certeza que ficou muito em mim. Eu ficava perturbado com aqueles personagens — Luis da Silva, Paulo Honório, o realismo aguçado, a prosa muito precisa e muito dura. (Graciliano até hoje me parece necessário reler por um dever de purificação). Mas queria também o mistério, a poesia, o inesperado de Clarice. Outros nomes: Campos de Carvalho, Lúcio Cardoso, Rachel Jardim, Loyola Brandão, Lígia Fagundes Telles... Com Loyola e Rachel Jardim, acabei me correspondendo pessoalmente, mais tarde.

 

Acho que o Brasil literário é um espanto em termos qualitativos: ter gente como Rosa, como Clarice, como Machado! Mas, se você me perguntasse qual o livro que mais me marcou, eu responderia meio automaticamente: Em busca do tempo perdido. Proust, para mim, é o maior de todos os escritores.

 

 

SG - Quem são os seus autores contemporâneos preferidos e qual é a sua relação com eles?

 

CL – Não sou um leitor que se prenda a escolas, a estéticas rígidas. Leio de tudo, de policiais a livros de mistério, de fantasia, levado por intuições de momento. Sou fascinado por policiais, terror, suspense, aventura, porque eram mania na minha infância, e se misturavam com minha admiração bem precoce pelo cinema de Hitchcock, pelos filmes de ficção-científica e mistério. Mas preciso respirar ares filosóficos e literários mais vastos, é sempre assim, vou alternando mundos muito diferentes, sem preconceito, do entretenimento simples a coisas mais sérias e ambiciosas. E, na verdade, não me prendo à contemporaneidade, não me importo muito com modas. Leio de tudo. Os brasileiros em que me detive nos últimos anos foram Ronaldo Correia de Brito, Nelson de Oliveira, Marcelino Freire, Rodrigo Lacerda, João Gilberto Noll, Maria Valéria Rezende, Ricardo Lísias (ele tem um livro com novelas formidáveis, como "O capuz") e outros, mais ou menos conhecidos. Quanto aos estrangeiros, ignoro o que está em voga, pego em Paul Bowles, Truman Capote, Carson McCullers, Iris Murdoch, Dennis Lehane, Ray Bradbury, Philip K. Dick, Ruth Rendell, Doris Lessing, um monte de autores. Mas, na verdade, se me sinto frívolo e dispersivo, volto correndo para os clássicos. Como não reler Machado, por exemplo? É uma delícia eterna. E é o sabor sempre novo do que parece conhecido, mas nunca se exaure.

 

 

SG - Você é crítico literário, papel que exerce em várias publicações na internet. Como explica a quase ausência da crítica literária nos jornais, substituída pelas resenhas? Aliás, qual é a sua opinião sobre a crítica literária praticada nos dias de hoje? Como ela afeta a literatura?

 

CL – Eu não me sinto propriamente crítico literário, escrevo só sobre livros que me parecem dizer alguma coisa, pessoalmente. Não é uma postura profissional. Minhas idiossincrasias me impedem de ter pretensões a uma rigorosa objetividade (o que me parece um mito, aliás). Escrevo com paixão e não me importaria nem um pouco de ser tachado como "impressionista" (não tenho formação acadêmica). É comum eu escrever sobre livros que estão totalmente esquecidos, que às vezes compro nos sebos. Mas escrevo livremente e, graças à internet, sem me sentir tolhido com a política dos "tijolinhos" das resenhas de revistas e jornais maiores. Não sou guiado por patotas e agendas ideológicas tampouco, graças aos deuses. Quero acima de tudo a liberdade, o prazer, o tesão da leitura. Odeio gente pedante, que parece já ter nascido com bom gosto, sem jamais ter se alimentado de lixo estético, quer dizer: gente basicamente irreal. Odeio pavões sentenciosos. Odeio a arrogância, os grupinhos fechados, os fundamentalismos rancorosos. Quero ficar muito longe dessas coisas. E, claro, nem sempre é possível. Elas não deixam.

 

As resenhas, de fato, andam com cara de mero marketing ou de editora ou de autor, de um modo muito bisonho. Na internet se lê coisas muito melhores que nos jornais. Acho a crítica importante, mas só até certo ponto. Pode dar alguma colaboração, mas não afeta as decisões profundas e solitárias que o talento pode tomar. O fundamental é que um escritor siga suas emoções, se depure, leia, leia, leia muito, ouvindo mais sua voz interior que cartilhas estéticas de igrejinhas. Ler muito, amar a humanidade com uma crença frustrante, desesperada, apaixonada, também é fundamental. Sem amor, sem piedade, também sem uma boa dose de crueldade lúcida, não há escritor. Mas, ler, acima de tudo. Ler o tempo todo. E escrever e reescrever quantas vezes for preciso, e nunca se dar por muito satisfeito com nada. Escritor satisfeito é quase sempre escritor medíocre.

 

 

SG - O que pensa das resenhas que se lê hoje em dia, em sua maioria, elogiosas, cheias de louvor aos autores?

 

CL – Há desespero em se divulgar gente que não recebe o bafejo do marketing, o que é compreensível. Faz-se a famosa "ação entre amigos" porque, por baixo disso, há a triste verdade de um país onde se lê muito pouco e onde publicar um livro, seja ele qual for, já parece uma proeza. Mas nem tudo que permanece obscuro ou anônimo é bom, naturalmente. Há anonimatos plenamente merecidos, do mesmo modo como há famas forçadas.

 

Há uma despreocupação com ler de fato um livro todo, conhecer de fato um autor, e é isso que mais me incomoda. Há pouca cultura literária, e ela parece diminuir dia após dia (o que há é o desejo apressado de tornar o escritor alguém digno de ser notado pela mídia, e, para isso, vai-se falando qualquer coisa, dando um vernizinho intelectual aqui e ali a gente que não tem valor algum). Elogio automático é uma desgraça. Há muita preguiça, muita vaidade, muita pressa.

 

Eu não me comprometo por aí, simplesmente leio o que consigo ler dentro do meu tempo e meus afazeres e, se me parecer bom, se for possível, comento. Detesto brigas estéreis por egos melindrados, e acredito em "crítica construtiva" sim, acredito em escrúpulos, em fidelidade ao que sinto. E acho que evitar desafetos compulsivamente é covardia. Ninguém escapa a ser detestado, às vezes pelo simples fato de existir e pensar algo diferente do que se espera. É preciso que se diga o que se pensa. O que não significa sair dando tiros a torto e direito. Quem faz isso não poderá depois escapar dos tiros alheios nem queixar-se deles. É preciso haver elegância, moderação, humanidade. A pretensão a "dono da verdade" é um verdadeiro horror. Nesse sentido, vão se criando alguns verdadeiros monstros, que parecem acima de tudo escritores "manqué" decididos a infernizar os escritores verdadeiros, cujos erros e acertos precisariam ser vistos com mais cuidado.

 

 

SG - O que acha dos concursos literários? Já se aventurou em algum? Acredita que são isentos?

 

CL – Já me aventurei sim. Acho que os concursos são necessários. Quanto a serem isentos, é inevitável que nem todos sejam. Mas me parecem necessários nem tanto pelos prêmios ou pelo reconhecimento ou o que seja, mas simplesmente porque estimulam a criação. Escritores às vezes fenecem por falta de motivação, de esperança, e a perspectiva de ganhar algum dinheiro ou ser publicado é um ótimo alento.

 

Recebi prêmio de honra ao mérito por três dos contos longos do Hóspedes do vento no concurso Josué Guimarães, de Passo Fundo, em 2007. Foi o único prêmio que obtive até aqui. O resultado, ainda que modesto, me agradou.

 

 

SG - O poeta Tchello d'Barros escreveu este "slogamínimo" para os estudantes: "vá ler mais / pra / valer mais". Qual a importância da literatura no dia-a-dia das pessoas? Por que ler? A leitura dignifica o homem?

 

CL – Sem ler, impossível ser feliz, livre, criativo, em resumo: humano. Eu teria enlouquecido, vivendo como sempre vivi num mundo acanhado, num meio hostil, se não fosse esta bênção: os livros. Todo poder à Literatura e à Imaginação! Tudo que eu disser a favor será pouco.

 

 

SG - Você também é tradutor. Tradução é um ato de criação?

 

CL – Acho que é sim. Na verdade, a primeira vez que travei contato com a ideia de tradução como ato criativo, foi em Haroldo de Campos, no livro A arte no horizonte do provável, que me marcou muito numa certa época. Nunca pensei que faria traduções profissionalmente, mas, como gostava muito de traduzir letras de música (dos Beatles e outros, nos anos 60 e 70) e traduzia para mim mesmo trechos de prosa em Inglês, acabei chegando a isso, mas foi um processo demorado. Gosto de traduzir — o ato sempre me parece desafiador, gosto da sensação de que aquele dado autor será lido em Português graças a mim. Poesia, particularmente, é um grande desafio, e a ela se aplicam melhor as teses do Haroldo naquele livro. Mas tenho traduzido prosa, apenas.

 

 

SG - Seus contos costumam evocar letras de músicas e cenas de filmes. Qual a sua relação com o cinema e com a música? Quais são as suas preferências musicais e cinematográficas?

 

CL – Cinema é paixão desde menino. O meu lugar favorito na minha cidade natal era o cinema, que infelizmente, como em quase todas as outras cidades pequenas, não existe mais. Ali a aprendi a amar Hitchcock, Polanski, Coppola, Kubrick e muitos outros. Até os anos 80 aquele cinema existiu — deu tempo ainda de pegar sessões sucessivas de Blade runner, um dos meus filmes mais queridos.

 

Sou programador e apresentador de filmes no Instituto Moreira Salles – Casa da Cultura de Poços de Caldas, há 16 anos. Vivo em meio a revistas, livros de cinema, DVDs. Vejo de tudo, e por isso o ar de sacralidade que a arte tinha para mim, quando menino, foi se perdendo um tanto, com o conhecimento, a experiência. Mas basta que eu descubra, no meio da enxurrada comercial, um filme digno e vibrante, e a minha paixão cinéfila volta com tudo. Meus diretores favoritos são Hitchcock, claro, David Lynch, Herzog, Almodóvar, Welles, Babenco, Tim Burton (não sempre), Huston, Wilder... na verdade, é mais justo dizer que a gente ama mais é certos filmes e às vezes conclui que os diretores, no conjunto, não mantêm sempre a coerência artística ideal (devido ao aspecto industrial e contingente do Cinema). É comum que a atmosfera dos filmes penetre nos meus contos. Creio que aprendi, vendo filmes, certas regras de ritmo, concisão, desfecho, certas elaborações sugestivas, certas elipses. E era inevitável, devido a essa paixão sistemática.

 

Quanto às músicas, desde sempre amo música popular e clássica, toda espécie de música. E tenho uma memória muito grande para letras — portanto, trechos de canções que combinam com o estado de espírito do conto ou do personagem sempre são inevitáveis, em meus contos. Bem, dizer de preferências? Digamos que ouço de Carlos Gardel a Gustav Mahler, passando por Peter Gabriel e Chico Buarque. Ouço de tudo, e especialmente música instrumental. Mas adoro música popular brasileira, especialmente a do passado.

 

 

SG - Segundo Walter Benjamin, o cinema é a maior das artes. Ele considerava o cinema (a fotografia também) a forma de arte mais significativa para a reflexão estética dos problemas da modernidade, a que rompe definitivamente com a tradição. Você concorda com isso?

 

CL – Sou cinéfilo tarado, mas não consigo concordar com isso de haver uma arte maior do que todas as outras. O Cinema, falando agora com um esforço danado para me livrar da paixão que me faz ver todo tipo de filme, tem demais de indústria para ser uma arte assim tão superior. Pode ser grandioso aqui e ali, mas o que há de ruindades, por Deus! Por outro lado, sempre acho que a Literatura, mais livre, atinge zonas da inteligência, da sensibilidade, da Beleza, que o Cinema, por ser tão atrelado à massa e ao mercado, jamais poderá atingir. Hitchcock foi grande, claro, mas nunca grande da maneira que Proust o foi. E nunca pensei em ser cineasta pelo simples fato de que me parece assustador ficar pensando em contratar a estrela X ou Y, ficar submetido aos caprichos de um produtor cheio de dinheiro, a um espírito de equipe castrador ou a um orçamento apertado, etc. Por outro lado, os roteiros parecem andar muito pobres, pela necessidade de adular a burrice que engrossa bilheterias. Avatar, por exemplo, é uma miséria em termos de roteiro. O Cinema não tem de modo algum a liberdade que uma página em branco pode oferecer a um escritor. Quando é grande, quando se arrisca, em geral, é mal compreendido pelo público. E ele depende demais do público para voar alto de fato.

 

 

SG - E por falar em tradição, você tem alguma preocupação em trabalhar a linguagem dos seus escritos?

 

CL – Naturalmente que tenho, e acho que quem não tem está se condenando à irrisão ou é estupidamente vaidoso para reconhecer a importância dela e está perdendo um tesouro. A tradição é fundamental. Mas renová-la também é. De algum modo, assimilando-a com a humildade e o senso crítico, é sempre possível continuá-la e movê-la pra frente, no que tem de melhor. Quanto ao meu trabalho, lamento muito meus erros, me purgo, me xingo, esperneio e vivo reescrevendo tudo que posso reescrever. O consolo é que sempre poderá haver segundas edições.

 

 

SG - Sei também que você é desenhista e pintor. Chico, no bom sentido, você pinta e borda e faz o que mais?

 

CL – Na verdade, comecei desenhando e pintando e a literatura veio depois. Eu tenho uma relação muito visceral com imagens, por isso o amor ao Cinema, e por isso escrever, para mim, é um flertar com várias outras artes. Na verdade, não pinto e desenho tudo o que gostaria, porque me falta tempo. Faço minhas telas quando me sobra um tempinho, e continuo apaixonado por certa fusão de expressionismo e surrealismo, com imagens próprias, que aprendi a fazer, com os anos. Mas não tenho maiores pretensões quanto a isso. Exponho quando me dá na telha, e, quanto a desenhos, às vezes faço capas de livros para amigos, ilustrações aqui e ali. Fiz ilustrações com mais regularidade nos anos em que trabalhei em jornais. Sou um pouco faz-tudo sim. Mas claro que não me saio bem em tudo, apenas me expresso nessa arte também. É uma necessidade meio... vital, eu diria, porque a Pintura, diferente da Literatura, é um prazer de ordem mais... física.

 

 

SG - Você tem algum ressentimento de viver numa cidade do interior de Minas ou acha que é precisamente por viver aí que sua literatura é mais rica, mais personalizada? Pergunto isso, porque acabo de reler seu artigo "O Inferno Jeca Enfrentado com Literatura", publicado na Germina [clique aqui e leia].

 

 

CL – Ah, esse artigo provocou algumas polêmicas entre os que o leram... Houve quem até me agradecesse por descrever com precisão o problema de um escritor em cidades do interior, houve quem achasse que fui exagerado. Creio que ele tem ares de bronca, e eu poderia ter dito mais coisas no terreno da amenidade, claro, com mais moderação e verdade, igualmente. O que me chateia é que se idealiza demais a vida no interior como tranquila, benéfica, etc. — uma visão que implica numa certa hipocrisia de quem pertence a uma classe que pode ficar curtindo paisagens, viagens e passeios e de algum metropolitano que não mora nelas; quem simplesmente vive nos lugares e tem que conviver com as dificuldades naturais da vida, não vê as coisas com essa complacência duvidosa. Fica-se falando em Paraíso, quando se esquece que, onde há o homem, lá estarão conflitos, lutas, tormentos — afinal, não faz muito tempo que fomos expulsos dele?

 

Não gosto do ufanismo, de bairrismo ingênuo. E certa literatura brasileira sempre fez de cidades do interior uma coisa hipocritamente idílica, encobrindo o que elas têm de desesperador e sufocante ou de simplesmente humano (e onde há seres humanos, dificilmente haverá consensos felizes). Mas isso já mudou, claro. Nos últimos anos, a literatura brasileira é acima de tudo urbana, como apontou o Luiz Ruffato, e pode-se, sem dar nomes, falar de cidades pequenas ou médias como se fossem subúrbios das metrópoles, porque tudo se parece, se achata, se uniformiza, em termos do novo crescimento urbano violento do país. De modo que aquela visão semi-rural, semi-bucólica, cheia de "prazeres simples e puros", já foi para o brejo. Eu adoro Minas e acho que morar em Poços foi muito benéfico para a minha literatura, de certo modo. Poços tem uns ares misteriosamente fecundos. Vim do interior de São Paulo, de uma cidade (Novo Horizonte) que, comparada a Poços, perde terrivelmente. Do pouco que andei por Minas (minha mulher é mineira), fiquei apaixonado pelas belezas todas. Mas minha ligação com o interior é primeiramente realista, experiente demais para ser mistificada. Amar alguma coisa não significa deixar de ver tudo que ela tem de imperfeito também.

 

 

SG - O que a internet trouxe de bom e de ruim para a literatura? Aliás, para todas as artes?

 

CL – A internet é um instrumento, moralmente neutro, podendo ser usado para isso e aquilo, indiferentemente. De modo que nela, por sua natureza democrática, entra de tudo. É principalmente essa a sua virtude. Para mim, tem sido ótimo trocar, com a rapidez sabida, e-mails com amigos escritores ou simples amigos, fazer contatos profissionais, etc. Tudo se simplificou, com um computador à frente de nós, e quem não reconhece esse fato e prefere ficar longe é como alguém que ignora os benefícios da luz elétrica, achando mais romântico viver à luz de velas. O que as pessoas que criticam a rede temem é sua amplitude, seu desconhecido, suas possibilidades sem fim. Mas temer essas coisas é reacionário, é uma estupidez. Melhor mesmo é fazer um bom uso delas.

 

No caso específico da literatura, não é ótimo poder participar de sites como o Germina, onde em geral se tem uma liberdade de espaço e expressão de ideias com fôlego, que na imprensa de papel já não há mais? A literatura (infelizmente, com característica de aluvião, trazendo do bom e do ruim, é claro) tem se salvado é por aí. Fora o manancial de informações artísticas de todo tipo e qualidade. Quanto às chatices e mediocridades e abusos da rede, o que se pode é repetir alguns mineiros do interior que dizem sabiamente que "não há bondade sem senão".

 

 

SG - Já planejou o seu próximo passo na escrita? Podemos esperar um romance de sua autoria?

 

CL – Bem que gostaria de escrever um grande romance de minha geração, dizer como aqueles ideais dos anos 60, do "desbunde", da Contracultura, da luta pela transparência no comportamento, por uma ética libertária, foram sendo substituídos por conformismo, cinismo e desilusões sem fim. Teria muito que dizer sobre amigos que morreram, outros que infelizmente piraram e tudo mais. Mas, não seria uma coisa tão direta assim, a ficção ditaria os caminhos (não sou partidário do realismo estrito de modo algum). E, na verdade, devo confessar que os romances, pela extensão e o fôlego, são coisas nas quais mal penso.

 

Mas já escrevi duas novelas, de tamanho razoável (cerca de 90 páginas cada) e gostei do resultado — eram histórias que, por seu ritmo, sua ambição, não poderiam ser mantidas como contos. E tenho projeto de escrever outras. Se eu chegar ao romance, será muito naturalmente, com minha habitual lentidão e purgação.

 
 
junho, 2010
 
 
 
 

Chico Lopes (Novo Horizonte/SP, 1952). Escritor, tradutor, crítico de cinema, jornalista, autor de Nó de sombras (São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2000), Dobras da noite (São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2004) e Hóspedes do vento (São Paulo: Nankin Editorial, 2010). Seus contos e resenhas foram publicados em revistas como Cult, Pesquisa e Entre Clássicos e jornais como Correio Braziliense, Minas Gerais, Rascunho, dentre outros. Pulica regularmente crítica de cinema e literatura em sites da internet como Verdes Trigos, Verbo 21, Conexão Maringá, Cronópios e Germina. Realizou doze traduções de lieteratura clássica e contemporânea para a Landmark, Ediouro e Rocco. Vive em Poços de Cladas (MG), onde é crítico e programador de filmes do Instituto Moreira Sales — Casa de Cultura, desde 1994.

 

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Silvana Guimarães (Belo Horizonte/MG). Socióloga, escritora, redatora/revisora publicitária. Participou de algumas coletâneas, entre elas, duas que organizou: 29 de abril: o verso da violência (Patuá, 2015), Dedo de Moça — Uma Antologia das Escritoras Suicidas (Terracota, 2009) e Hiperconexões — Realidade Expandida Vol. 2 (Org. Luiz Bras, Patuá, 2014). Editora da Germina — Revista de Literatura & Arte, das Escritoras Suicidas e do site do escritor Rodrigo de Souza Leão. Vive em Belo Horizonte.

 

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