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"Às vezes, quase sempre, um livro é maior que a gente".

João Guimarães Rosa

 

Entre as várias correspondências entretidas pelo escritor mineiro João Guimarães Rosa (2003b) e seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, algumas se destacam pelas revelações que autor faz sobre o seu processo de criação. Trata-se de uma exposição epifânica sobre as razões que o levaram a escrever e o que, de fato, ele julga ser o mais importante para a compreensão das temáticas a serem garimpadas em seus escritos. Poderíamos dizer que, nas missivas em questão, Rosa faz a sua declaração de princípios literários.

Um primeiro desvelamento feito por ele, diz respeito à valorização das dimensões sobrenatural e ligadas ao inconsciente, em detrimento de um movimento racional na composição de seu trabalho literário.

O conjunto de seus escritos seria fruto, sem dúvida, de sua intencionalidade estética, porém, haveria nele a presença de outros elementos que estariam para além de sua própria compreensão. O escritor atribui esse estranho movimento à vontade do livro em querer fazer-se a si mesmo,

 

Quero afirmar (...) que quando escrevi, não foi partindo de pressupostos intelectualizantes, nem cumprindo nenhum planejamento cerebrino'cerebral deliberado. Ao contrário, tudo, ou quase tudo, foi efervescência de caos, trabalho quase "mediúnico" e elaboração subconsciente. Depois, então, do livro pronto e publicado, vim achando nele muita coisa; às vezes, coisas que se haviam urdido por si mesmas, muito milagrosamente. Muita coisa dele, livro, e muita coisa de mim mesmo (ROSA, 2003b, p. 89).

 

Num diálogo com o crítico alemão Günter W. Lorenz, ele faz outra curiosa revelação,

 

Não preciso inventar contos, eles vêm a mim, me obrigam a escrevê-los. Acontece-me algo assim como (...) dizem em alemão: Micht reitet auf einmal1, que neste caso se chama precisamente inspiração. Isto me acontece de forma tão conseqüente e inevitável, que às vezes quase acredito que eu mesmo, João, sou um contado por mim mesmo. É tão imperativo... (ROSA in LORENZ, 1973, p. 327).

 

Para que não caiamos na tentação de simplificar essas declarações de Rosa, tomando-as como certa cabotinagem de sua parte, no sentido de supervalorizar e, ao mesmo tempo, mitificar sua própria obra, tomemos como foco de interpretação os próprios elementos formadores de sua visão de mundo.

Rosa compreende a literatura como seu compromisso essencial com o homem e, nesse sentido, não a separa da própria vida. Sobre o papel do escritor, ele afirma: "Sua missão (...): é o próprio homem." (ROSA in LORENZ, 1973, p. 318) e, em outro momento, diz "(...) é impossível separar minha biografia de minha obra." (In LORENZ, 1973, p. 339).

Talvez a menção dessas breves afirmações não seja o suficiente para superar algum ceticismo que ainda paire sobre o valor transcendente atribuído por Rosa à sua teia fabular. Talvez seja necessário desdobrá-las em suas minudências e densidades para que elas se consagrem em matéria crível e inconstestável. Não seremos nós, no entanto, que lograremos o alcance da dissipação de dúvidas que porventura ainda rodeiem a metafísica rosiana, deixaremos que o próprio autor, com sua contudente palavra, desvele seu credo:

 

(...) penso dessa forma: cada homem tem seu lugar no mundo e no tempo que lhe é concedido. Sua tarefa nunca é maior que sua capacidade para poder cumpri-la. Ela consiste em preencher seu lugar, em servir à verdade e aos homens. Conheço meu lugar e minha tarefa; muitos homens não conhecem ou chegam a fazê-lo, quando é demasiadamente tarde. Por isso tudo é muito simples para mim e só espero fazer justiça a esse lugar e a essa tarefa. Veja como meu credo é simples. Mas quero ainda ressaltar que credo e poética são uma mesma coisa. Não deve haver nenhuma diferença entre homens e escritores; esta é apenas uma maldita invenção dos cientistas, que querem fazer deles duas pessoas distintas. (...). A vida dever fazer justiça à obra, e a obra à vida. Um escritor que não se atém a esta regra não vale nada, nem com homem nem com escritor. Ele está face a face com o infinito e é responsável perante o homem e perante si mesmo. (...) [este é] meu compromisso do coração, e que considero o maior compromisso possível, o mais importante, o mais humano e acima de tudo o único sincero. Outras regras que não sejam este credo, esta poética e este compromisso, não existem para mim, não as reconheço. Estas são as leis da minha vida, de meu trabalho, de minha responsabilidade. A elas me sinto obrigado, por elas me guio, para ela vivo (In LORENZ, 1973, p. 330).

 

Ao entrançar linguagem e vida, Rosa demarca também o ponto de partida de onde brota a sua literatura. Ter nascido e convivido na ambiência sertaneja, estabeleceu o itinerário fundante das temáticas mais significativas que sua obra revela. Ser, fundamentalmente, um homem do sertão, fez de Rosa um escritor que, primeiramente, dará voz àquele que, sobretudo em sua infância, mas ao longo de toda a sua existência, mais lhe deu lições sobre o essencial da vida e do viver: o sertanejo.

Gosto de pensar cavalgando, na fazenda, no sertão; e quando algo não me fica claro, não vou conversar com algum douto professor, e sim com alguns dos velhos vaqueiros de Minas Gerais, que são todos homens atilados. Quando volto para junto deles, sinto-me vaqueiro novamente, se é que alguém pode deixar de sê-lo (In LORENZ, 1973, p. 336).

 

No diálogo empreendido com Lorenz, durante a realização do I Congresso de Escritores Latino-Americanos, realizado em Gênova, em 1965, inquirido sobre a presença do tema "homem do sertão" em sua obra, ele declara:

 

(...) sou antes de mais nada este 'homem do sertão'; e isto não é apenas uma afirmação biográfica, mas também, e nisto pelo menos eu acredito tão firmemente (...), que ele, este 'homem do sertão', está presente [em minha obra] como ponto de partida mais do que qualquer outra coisa (In LORENZ, 1973, p. 321).

 

Pois é a partir do sertão que o escritor mineiro irá criar o tópos ficcional, enquanto espaço geográfico, mas, ao mesmo tempo, como símbolo metafísico, de sua virtuosa matéria literária, como ele mesmo diz, "(...) este pequeno mundo do sertão, este mundo original e cheio de constrastes, é para mim o símbolo, diria mesmo o modelo de meu universo" (In LORENZ, 1973, p. 322). Essa tradução simbólica promovida por Rosa, segundo nosso ponto de vista, é o maior feito de sua inventividade literária, pela proeza de ter conseguido adensar num só elemento significante — o sertão — uma inumerável possibilidade de significados, locais e universais; imanentes e transcendentes; físicos e espirituais.

 

(...) não do ponto de vista filológico e sim do metafísico, no sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde Inneres und Aussers sind nicht mehr zu trennen2 (...) (In LORENZ, 1973, p. 343).

 

Temos aí, portanto, a melhor tradução do epíteto Grande Sertão: Veredas para a obra de maior relevo de Rosa. O "Grande Sertão" simbolizando o universo de todas as paisagens geográficas, espirituais e humanas do mundo: as veredas. Mais que isso, representaria também o todo do Real que nos ambienta, cuja aparência só nos é dada a conhecer por suas sutis e tênues possibilidades e manifestações. Nas palavras de Riobaldo: "O sertão é do tamanho do mundo" (ROSA, p. 2001a, p. 89) e, assim sendo, ele anuncia: "Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas — e só essas poucas veredas, veredazinhas (ROSA, 2001a, p. 116).

A construção complexa de suas metáforas e símbolos apresentam-se como uma clara opção contra o esvaziamento da linguagem, contra a reificação comunicativa entre os homens e, mais que isto, em seu desejo de assegurar a presença inefável e imponderável do espírito metafísico no recôndito de sua ficção. Segundo ele,

 

Os paradoxos existem para que ainda se possa exprimir algo para o qual não existem palavras. Por isso, acho que um paradoxo bem formulado é mais importante que toda a matemática, pois ela própria é um paradoxo, porque cada fórmula que o homem pode empregar é um paradoxo (in LORENZ, 1973, p. 324).

 

Para o alcance de tais paradoxos, não basta, no entanto, o desejo do escritor. Este deve desdobrar-se em realizar uma operação na linguagem, de tal forma que ela, em si mesma, se consubstancie num constante contra-senso, numa permanente contradição, no sentido de manter o leitor numa busca incansável pela resolução de sua, aparentemente, absurda constituição. A esta tarefa, Rosa se deu, ao ponto de podermos também chamá-lo de "alquimista da palavra", tal a maneira como ele cunhava, construía, descontruía, recriava e ressignificava termos e frases na tessitura de sua escrita, "Escrever é um processo químico; o escritor deve ser um alquimista. Naturalmente, pode explodir no ar. A alquimia do escrever precisa de sangue do coração" (in LORENZ, 1973, p. 341), e continua,

 

Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem ficção poética e a realidade. Sei que daí pode nascer um filho ilegítimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como o usamos no Brasil; entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, eu traduzo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu (...) (in LORENZ, 1973, 326).

 

Poderíamos afirmar que, desta forma, Rosa, ao criar paradoxos, fundamentais para a manutenção do pano de fundo transcendente de sua obra, cria também, por meio da linguagem, uma metafísica própria e intransferível,

 

(...) há dois componentes de igual importância em minha relação com língua. Primeiro: considero a língua como meu elemento metafísico, o que sem dúvida tem suas conseqüências. Depois, existem as ilimitadas singularidades filológicas, digamos, de nossas variantes latino-americanas do português e do espanhol, nas quais também existem fundamentalmente muitos processos de origem metafísica, muitas coisas irracionais, muito que não se compreende com a razão pura (in LORENZ, 1973, p. 337).

 

Há em Rosa, neste sentido, um não conformar-se com o ato de operar a linguagem, enquanto ela não estiver absolutamente embebida de possibilidades interpretativas e perspectivas utópicas de realizações humanas. A sua maneira de lidar com a literatura é fazendo dela a arte do impossível, pois que, a cada mergulho nela efetuado, implica no reconhecimento de sua, a um tempo, perfectibilidade artesanal e imperfectibilidade realizacional. Este paradoxo constituidor da verdade de sua arte literária é seu trunfo e triunfo em favor de sua imortalidade,

 

Nunca me contento, com alguma coisa. (...) estou buscando o impossível, o infinito. E, além disso, quero escrever livros que depois de amanhã não deixem de ser legíveis. Por isso acrescentei à sintaxe existente a minha própria síntese, isto é, incluí em minha linguagem muitos outros elementos, para ter ainda mais possibilidade de expressão (in LORENZ, 1973, p. 338).

 

Ao lado da metafísica, a religião é outro fundamento, extremamente considerado, tanto em sua vida com em sua obra, que, como vimos, para ele são uma mesma e única coisa,

 

A religião é um assunto poético e a poesia se origina da modificação de realidades lingüísticas. Desta forma, pode acontecer que uma pessoa forme palavras e na realidade esteja criando religiões. Cristo é um bom exemplo disso (in LORENZ, 1973, p.349).

 

A autodefinição abaixo dá a exata medida do amálgama entre a religiosidade e a literatura em Guimarães Rosa,

 

(...) sou profundamente, essencialmente religioso, ainda que fora do rótulo estricto e das fileiras de qualquer confissão ou seita; antes, talvez como o Riobaldo do "G. S.: V", pertença eu a todas. E especulativo, demais. Daí, todas as minhas, constantes, preocupações religiosas, metafísicas, embeberem meus livros. Talvez meio existencialista-cristão (alguns me classificam assim), meio neo-platônico (outros me carimbam disto), e sempre impregnado de hinduísmo (conforme terceiros). Os livros são como eu sou (2003b, p. 90).

 

Por essa intrigante confissão, não nos é difícil compreender porque, na narrativa rosiana, é tão recorrente a presença de elementos transcendentes e vinculados ao sagrado, nas falas e nas ações de seus personagens. Estes buscam alcançar, em suas sagas, o supra-senso da compreensão humana sobre si mesma, sobre o mundo que os circundam e sobre todas as coisas que habitam este mesmo mundo.

Isso implica, necessariamente, uma trajetória interpretativa sobre sua obra que não deve ser trilhada somente com uma atitude racional. Antes, segundo seu credo, os mistérios da vida e do mundo só se desvelam para o ser humano, pelo que há nele de intuitivo, de revelador e de inspirador. Eis o cânone rosiano para a cognoscibilidade do universo, "(...) como eu, os meus livros, em essência, são 'anti-intelectuais' — defendem o altíssimo primado da intuição, da revelação, da inspiração sobre o bruxolear presunçoso da inteligência reflexiva, da razão, da megera cartesiana" (ROSA, 2003b, p. 90), e elege os principais inspiradores de seu critério metafísico-religioso: "Quero ficar com o Tao, com os Vedas e Upanixades, com os Evangelistas e São Paulo, com Platão, com Plotino, com Bergson, com Berdiaeff — com Cristo, principalmente" (ROSA, 2003b, p. 90).

Para termos uma idéia da importância que Rosa dá à dimensão metafísico-religiosa em sua obra, basta que observemos a escala valorativa que ele pontua para os aspectos que a salientam: "(...) a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos" (ROSA,2003b, p. 90-1, grifo do autor).

Por esta avaliação do próprio autor, acerca das temáticas que têm mais relevância em sua literatura, julgamos improcedente desconsiderar ou fechar os olhos para a presença recorrente e obsessiva de elementos míticos, místicos, metafísicos, arquétipos e sagrados em seu engendramento fabular. O que não quer dizer que os outros aspectos por ele mencionados e presentes de forma soberba em sua obra não tenham a sua devida importância. A diversa e profunda fortuna crítica que já se construiu a partir do pequeno, porém, denso, conjunto da obra rosiana dá o testemunho disso. No entanto, se dependesse do autor, a enlevação espiritual seria a grande contribuição que ele gostaria de deixar para os seus leitores, mas, como ele mesmo declarou, "(...) em arte, não vale a intenção." (ROSA, 2003b, p. 91).

O grau de intensidade com que Rosa lida com a dimensão do intangível, ambiente de predileção do trânsito da imaginação simbólica, na consecução de seu trabalho como escritor, consubstanciou-se numa das ficções mais densas e de maior complexidade artesanal jamais produzida no mundo das letras, dado o seu caráter, a um tempo, singular e universal.

Certamente, contribui também para este labor criativo, a grande preocupação de Rosa, quanto à retomada constante dos chamados temas eternos, presentes nos grandes clássicos da literatura universal, nos tratados metafísicos e nos chamados livros sagrados. Citações da Bíblia, dos Upanixades3, do Tao4, do Veda5, de Dante Alighieri (1265-1321), de Platão (427-347 a.C.), de Plotino (205-270?) de Jan Van de Ruysbroeck (1293-1381), de Nicolai Berdiaeff (1874-1948), de Henri Bergson (1859-1941), de Arthur Schopenhauer (1788-1860), entre outros, estão presentes, de forma manifesta ou velada, ipsis litteris ou recriadas, no conjunto de sua obra. Vale a pena apresentar, na íntegra, mais esta revelação de Rosa,

 

(...) foi intencional tentativa de evocação, daqueles clássicos textos formidáveis, verdadeiros acumuladores ou baterias, quanto aos temas eternos. Uma espécie do que é a inserção de uma frase temática da "Marselhesa" naquela sinfonia de Beethoven, ou da glosa de versículo de São João (Evangelho) no "Crime e Castigo" de Dostoiéwski. Com a diferença que, no nosso caso, ainda que tosca e ingenuamente, o efeito visado era o de inoculação, impregnação (ou simples ressonância) subconsciente, subliminal. Seriam espécie de sub-para-citações (?!?): isto é, só células temáticas, gotas da essência, esparzidas aqui e ali, como tempero, as "fórmulas" ultra-sucintas. (Um pouco à maneira do processo de modificações do tema — que ocorre, na música, nas fugas?) E para funcionar, apenas, em passagens de ligação, como coloração de pano-de-fundo (2003b, p. 86-7).

 

Fruto deste complexo artesanato literário, a matéria fabular rosiana está em permanente diálogo com o que há de mais denso, profundo e simbólico na tradição metafísica e literária universal. Este background de temas eternos como o Amor, o Ódio, a Vida, o Sagrado, o Medo, o Divino, o Demoníaco, o Tempo, a Morte, o Ser, o Mundo, a Fé, o Homem, também está presente de forma indelével na narrativa de Guimarães Rosa, intencionalmente na tessitura da trama, mas surpreendentemente velada, quando a trama se consuma em estória,

 

E eu mesmo fiquei espantado de ver, a posteriori, como as novelas, umas mais, outras menos, desenvolvem temas que poderiam filiar-se, de algum modo aos "Diálogos"6, remotamente, ou às "Eneadas"7, ou ter nos velhos textos hindus qualquer raizinha de partida (ROSA, 2003b, p. 90).

 

A partir deste criterioso, complexo e denso pano de fundo, constituidor de sua obra, e, reconhecendo as dificuldades que isto implicaria num trabalho de tradução literária, Rosa, no diálogo epistolar mantido com Bizzarri, alerta-o quanto a algumas preocupações que ele precisava ter na tradução do espírito de sua narrativa8pois ele mesmo, como autor, já realizara um processo de transcriação literária advinda de âmbitos transcendentais,

 

 

Eu, quando escrevo um livro, vou fazendo como se os tivesse "traduzindo", de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no "plano das idéias", dos arquétipos, por exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando, nessa "tradução". Assim, quando me "re"-traduzem para um outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o Tradutor quem, de fato, acertou, restabelecendo a verdade do "original ideal", que eu desvirtuara... (ROSA, 2003b, p. 99)

 

Por um lado, o tópos, a um tempo, real e fictício que ambienta sua ficção, o sertão, já é em si mesma uma fonte de dificuldades, dado o exotismo e a diversidade pitoresca de lugares e de seus respectivos epítetos, muitas vezes intraduzíveis. Por outro, os aspectos temáticos ocultos na obra imergem o tradutor num novo sortimento de enigmas, colocando em xeque a qualidade da tradução, pois que, segundo Rosa, "(...) são vaguezas intencionais, personagens e o autor querendo subir à poesia e à metafísica, juntas, ou, com uma e outra como asas, ascender a incapturáveis planos místicos" (2003b, p. 37). Como se fora Hermes, o deus-mensageiro-alado, Rosa, ampara-se, de um lado, com a poesia e, de outro, com a metafísica e converte sua fabulação em palavras cifradas enviadas pelos deuses, exortando-nos à sua decifração.

O sertão rosiano, não é somente uma paisagem ambientadora de sua narrativa, pois, uma vez desdobrado, não se desvincula da atmosfera metafísica, por conta de sua própria constituição geográfica, impregnada de cantos e recantos, caminhos e descaminhos, imensos vazios e veredas inacessíveis. Nesse tópos diverso de paisagem natural e humana, transita também o sertanejo, desconfiado, buscando amparo e proteção para a caminhada naquele chão que, silenciosa ou ruidosamente, o surpreende a todo momento, como diria Riobaldo, "Mas o sertão de repente se estremece, debaixo da gente..." (ROSA, 2001a, p. 538). A nosso ver, o sertão, em última instância, acaba por se transformar no personagem principal do conjunto da ficção do escritor mineiro. Para ele, "(...) no sertão, (...) a magia é inseparável de todos os aspectos da vida, os valentões costumam às vezes trazer letras, cabalísticas escritas, digo, gravadas, no chapéu-de-couro, ou em papeizinhos enfiados no respectivo forro; para virtudes várias, proteção perante o destino" (ROSA, 2003b, p. 81). O trabalho de transcriação literária de Bizzarri, neste caso, é assomado, segundo Rosa, por dois desafios prodigiosos: "(...) um externo, o sertão primitivo e mágico; o outro, (...) Guimarães Rosa, mesmo (...)" (ROSA, 2003b, p. 87).

Na edição original de Corpo de baile, antes, portanto, de sua subdivisão em três obras autônomas, a forma orgânica com que Rosa estabeleceu a seqüência de leitura dos poemas e contos, — assim chamados por ele nos índices, presentes tanto no início como no fim do livro — já resguardava em si mesma, muito além, de uma mera justaposição textual, o itinerário, embora labiríntico, a ser percorrido pelo leitor-intérprete, para o alcance da compreensão simbólica do conjunto da obra. O percurso de decifração é iniciado pela estória de Miguilim ("Campo geral"), que resguarda vários e sutis elementos autobiográficos e anuncia, de forma adensada, o que está presente na composição das narrativas que a sequenciam. O rigor de Rosa nesta composição artesanal é acentuado, pois nem a nomeação dos títulos se lhe escapa. Vejamos que diz o escritor sobre este arranjo fabular,

 

A primeira estória, tenho a impressão, contém, em germes, os motivos e temas de todas as outras, de algum modo. Por isso é que lhe dei o título de "Campo Geral" — explorando uma ambigüidade fecunda. Como lugar, ou cenário, jamais se diz um campo geral ou o campo geral, este campo geral; no singular, a expressão não existe. Só no plural: "os gerais', "os campos gerais". Usando, então, o singular, eu desviei o sentido para o simbólico: o de plano geral (do livro) (2003b, p. 91).

 

A importância da narrativa de "Campo geral" na abertura de Corpo de baile é tão fundamental que, numa das correspondências mantidas por ele e seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason, em que este solicita a Rosa indicações na reordenação das estórias, para tradução e publicação em dois volumes da referida obra, o escritor mineiro apresenta­-lhe três possibilidades, porém, em qualquer das opções, a estória de Miguilim teria que ser, necessariamente, a introdutória,

 

O importante, a meu ver, é que, em qualquer caso, o Primeiro volume se inicie com a novela "CAMPO GERAL", por ser a de um menino, a mais abrangedora de aspectos, revelando logo melhor a região e compendiando a temática profunda do livro, de certo modo (ROSA, 2003a, p. 95).

 

Três narrativas de Corpo de baile, em especial, são reveladoras da verve simbólica presente na literatura do bardo moderno mineiro: "Uma estória de amor", "O recado do morro" e "Cara-de-Bronze. Os críticos sérios que se debruçaram sobre a obra rosiana, entre eles, Paulo Rónai (2001), elegem-nas como as mais crípticas, as de arquitetura lingüística mais complexa, constituindo-se, portanto, num manancial de símbolos a serem perscrutados e desvelados. Rosa, permitindo-se a dar algumas pistas ao leitor, no índice colocado no final do livro, reúne os três contos mencionados em torno da palavra "parábase". Ferreira (1986) nos esclarece que, nos primeiros momentos do teatro grego, tanto na tragédia como na comédia, havia um momento em que os atores se desvestiam de seus personagens e se dirigiam ao público, com o intento de fazer observações, dar opiniões, prestar esclarecimentos e, até mesmo, realizar alguma espécie de exortação. Eis o significado de parábase, cujo sentido metafórico, Rosa queria ver resguardado na leitura daquelas narrativas. Ou seja, nelas estariam presentes revelações cifradas que o leitor deveria buscar para caminhar com mais largueza e profundidade no universo sertanejo de Corpo de baile. Nas palavras de Rónai, nestas três estórias "A linha simbólica é predominante (...), o enredo, propriamente dito serve antes de acompanhamento" (RÓNAI in ROSA, 2001, p. 23).

Por meio de cada uma destas narrativas, Rosa presta uma homenagem a três expressões artísticas, cujas densidade e beleza se pautam pelo que elas oferecem ao ser humano, em termos de sensibilidade estética, ampliação de visão de mundo e enlevo espiritual: a (a) narrativa ficcional, mediante as fabulações orais presentes em "Uma estória de amor", que, para Rosa,

 

"(...) trata das "estórias", sua origem, seu poder. Os contos folclóricos como encerrando verdades sob forma de parábolas ou símbolos, e realmente contendo uma "revelação". O papel, quase sacerdotal, dos contadores de estórias. [Enfim,] A formidável carga de estímulo normativo capaz de desencadear-se de uma estória contada (...) (2003b, p. 91-2);

 

Quando Rosa fala na origem e no poder das estórias, não há como não nos referenciarmos às narrativas míticas, cuja pronunciação, por si só, criava seres e universos, bem como, toda uma atmosfera de crenças e verdades, no dizer de Riobaldo, "O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo" (ROSA, 2001a, p. 194), daí o papel sagrado de quem as narrava. Para Rosa, o fabulador oral é herdeiro do antigo poeta-rapsodo grego, pronunciador dos mitos.

A (b) música, representada pelas canções populares, tema desenvolvido de forma mítica em "O recado do morro", assim traduzido pelo escritor mineiro:

 

(...) é a estória de uma canção a formar-se. Uma revelação, captada, não pelo interessado e destinatário, mas por um marginal da razão, e veiculada e aumentada por outros seres não-reflexivos, não escravos ainda do intelecto: um menino, dois fracos da mente, dois alucinados — e, enfim, por um ARTISTA; que, na síntese artística, plasma-a em CANÇÃO, do mesmo modo perfazendo, plena, a revelação inicial (2003b, p. 92).

 

Essa síntese artística presente na canção9 construída em "O recado do morro" repertir-se-á de forma também enigmática em Grande Sertão: Veredas, através da "canção de Siruiz"10, resumo condensado da longa saga de Riobaldo.

A (c) poesia, pano de fundo de "Cara-de-Bronze", cuja densidade, Rosa deixa extravasar nas falas tangidas por seus personagens vaqueiros:

 

(...) o que há. nos ditos dos vaqueiros são tentativas de definição da poesia, desde vários aspectos (...) exemplos de realização poética. (...) há um oculto desabafo lúdico, pessoal e particular brincadeira do autor, só mesmo para seu uso, mas que mostra [r] (...) não resisto: "Aí, Zé, ôpa!, intraduzível evidentemente: lido de trás para diante= apô éZ ía, : a poesia.... (2003b, p. 93).

 

A primeira obra de Guimarães Rosa foi um conjunto de poesia intitulado Magma, com o qual ele concorreu num concurso promovido pela Academia Brasileira de Letras, em 1936. O parecer do avaliador, o poeta Guilherme de Almeida, foi contundente, não deixando possibilidade de existência de um segundo colocado, dada a grandiosidade da lírica rosiana. No entanto, apesar de ter sido laureada com o primeiro prêmio, Rosa jamais publicou esta obra em vida, deixando, inclusive, recomendações a seus familiares que não a editassem. Tal pedido foi assegurado até o ano de 1997, quando Magma veio ao lume do público leitor, com a autorização de sua filha Vilma Guimarães Rosa, detentora de seus direitos autorais. O fato de Rosa não ter desejado publicar a sua primeira e única obra de poesia deveu-se a seu desejo de realizar uma poética que tivesse   uma permanência, bela e profunda, nos interstícios de sua épica, e não de forma patentemente lírica, pois, como ele afirma, "(...) meu epos é poesia (...)" (ROSA, 2003a, p. 148), como se deu no exemplo arquetípico de "Cara-de-Bronze". Confirmadoras desta questão são suas próprias palavras,

 

(...) descobri que a poesia profissional, tal como se deve manejá-la na elaboração de poemas, pode ser a morte da poesia verdadeira. Por isso, retomei à "saga", à lenda, ao conto simples, pois quem escreve estes assuntos é a vida e não a lei das regras chamadas poéticas (in LORENZ, 1973, p. 326).

 

Rompida a unidade de Corpo de baile por conta de sua subdivisão, um pouco desse elã simbólico foi cindido, embora cada uma das obras, tomadas autonomamente, assegure o pendor pelo transcendente. Na busca da preservação da tensão simbólica da obra, em sua nova apresentação em três volumes, Rosa faz algumas recomendações a Bizzarri, quanto à utilização das epígrafes, fundamentais como anunciadoras das temáticas imersas nas narrativas, na recomposição do compacto livro,

 

De fato, já que você vai colocar, como concordamos, o Coco11 como epígrafe da "Dão-Lalalão" ele passará: 1) a ficar bem distanciado de Plotino12 e Ruysbroeck13, cuja proximidade lhe faria perder o sabor; 2) a estar no meio do livro, estando já o leitor bem introduzido no mundo do sertão  (2003b, p. 122-3).

 

Rosa elogia a solução encontrada por Bizzarri, quanto à nota explicativa que ele faz sobre a tradução livre em italiano do Coco, colocando-a bem distanciada da presença poética da canção popular, de modo que não fosse contaminada pelo desenfeitiçamento de uma linguagem racionalizante,

 

(...) a explicação que Você deu (...), tão boa em si, pode servir, e bem, como nota-de-pé-de-página, ou no "Elucidário". Ao passo que, simplesmente sotoposta ao Coco, quebra o encantamento mágico, a que visamos, e traz o acento para o aspecto "documentário" do livro — que é apenas subsidiaríssimo acessório, mais um "mal necessário", mas jamais devendo predominar sobre o poético, o mágico, o humor e a transcendência metafísica (2003b, p. 123).

 

Acerca desta mesma preocupação com a sanha da linguagem racionalista querer desencantar a linguagem simbólica, Rosa exorta Bizzarri aos desafios que os dois iriam enfrentar, quanto à receptividade dos leitores europeus ao elã metafisico-religioso-inconsciente presente em sua obra. No contexto da tradução de Corpo de baile (década de 1960), Rosa já era um diplomata profundamente conhecedor da ambiência intelectualista da Europa, o que lhe autorizava a uma avaliação de um forte esvaziamento do transcendente e do epifânico sobre o mistério da vida, no Velho Continente,

 

Naturalmente, alguns riscos teremos de correr, com o público europeu — talvez hoje excessivamente materialista, racionalista, político, positivo, intelectualizante ou plebeizante, afastado do puro mágico, perdida sempre mais a sensibilidade e receptividade para o "beatífico" (2003b, p. 125).

 

Para confirmar este ponto de vista de Rosa, destacamos também o depoimento de Curt Meyer-Clason, relatado em carta, após a leitura de seu conto "Campo Geral",

 

O senhor acreditará se eu lhe disser que o mais importante (para mim) nesta narrativa não existe mais em nossa latitude: o constante sobe e desce da alma como espelho do mundo, a consciência como medida e meio de todas as coisas, como balança onde se pesa e como o homem se afirma diante do homem, diante da criação, diante de Deus. (...). Mas aqui em nosso país está tudo endurecido, a balança está enferrujada e não obedece mais aos impulsos suaves, quase imperceptíveis, vindos de fora. Ela chega a ranger, mas não se mexe (2003a, p. 198).

 

As notícias trazidas da França, por exemplo, onde a tradução e a publicação de Corpo de baile já havia se realizado, dão conta de sua boa receptividade, apesar da tradição iconoclasta cartesiana que informava seus leitores. Isto foi possibilitado, segundo Rosa, por um espírito cosmopolita, aberto a novas compreensões e visões de mundo, "Na França, porém, o saldo tem sido nitidamente a favor. Gostam, mesmo os racionalistas, da 'atmosphère de rêve', camuflada e protegida (digo eu) pela coberta do pitoresco sertanejo" (2003b, p. 125).

Essa presença de uma "atmosphère de rêve" sob o pitoresco sertanejo dá o tom paradoxal da narrativa poética rosiana. Nela, há a presença de uma constante busca por um modo de narrar que, segundo o autor, "(...) não deve ser explicado logicamente; deve ser compreendido intuitivamente, deve ser pensado até o fim" (in LORENZ, 1973, p. 347), pois se trata de uma matéria inconsciente, onírica, metafísica e imponderável, que se manifesta através das características, modos de ser, visões de mundo, ações e falas de seus inumeráveis personagens, quase sempre esfarrapados, desvalidos, enlouquecidos, ingênuos e broncos. Todos eles compondo um surreal corpo de baile, cuja melhor tradução é Rónai quem nos dá,

 

"(...) o autor (...) localiza-os em broncas almas de sertanejos, inseparavelmente ligadas à natureza ambiente, fechadas ao raciocínio, mas acessíveis a toda espécie de impulsos vagos, sonhos, premonições, crendices, e vivendo a séculos de distância da nossa civilização urbana e niveladora. São almas ainda não estereotipadas pela rotina, com receptividade para o extraordinário e o milagre, (...) tais sentimentos plasmam a mente de personagens marginais, imperfeitamente absorvidas pelo convívio social ou nada tocadas por ele: crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas, capangas, vaqueiros (RÓNAI in ROSA, 2001, p. 18).

 

Pois são, justamente, essas figuras social e culturalmente desvalorizadas que Rosa elege como mensageiras de seus enigmas. São esses vários "Hermes" desfigurados que trazem o vaticínio rosiano, cifrado em metáforas e símbolos, para a nossa paciente decifração.

Verificamos a presença do que Rosa chama de humour, precisamente na forma como ele constrói a tipologia de seus personagens, numa articulação concertada entre seus modos de ser e a mensagem transcendente que anunciam. No primeiro prefácio de Tutaméia14, "Aletria e hermenêutica", o escritor mineiro, fazendo uso de seu constante paradoxo, traduzido na fala de Riobaldo, pela expressão: '"É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é não é..." (ROSA, 2001a, p. 27), explicita o que pretende com a opção que faz por personagens equívocos em sua densa narrativa, através de uma exposição sobre a humildade despretensiosa da anedota. "A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota" (2001e, p. 29). A partir desta afirmação, Rosa passa a enumerar e ilustrar as principais características da anedota, sendo a primeira, o seu essencial e efêmero, caráter de ineditismo. Uma vez contada, a sua função risível se esvazia, requerendo sempre um novo arranjo inaudito e drolático para seu funcionamento. Mas, para além desta função óbvia, Rosa vê a possibilidade de a anedota ser utilizada como instrumento de análise das questões ligadas à poesia e à metafísica, portanto, não sem motivo, ele percebe que "(...) a palavra 'graça' guarde os sentidos de gracejo, de dom sobrenatural e de atrativo (ROSA, 2001e, p. 29, grifos do autor), já que o espaço do humour, na realização artística, funciona como um sensibilizador para o não-racional, para o não-prosaico. Nesse sentido, para Rosa, "Não é o chiste rasa coisa ordinária; tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento" (ROSA, 2001e, p. 30, grifos do autor). É certo, porém, que não serão todas as anedotas que terão serventia para o fim que ora discutimos, qual seja, o de fazer com que convivamos com o espírito do indelével, do imponderável, que "(...) reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria" (ROSA, 2001e, p. 30, grifos do autor), pois, "A vida também é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas" (ROSA, 2001e, p. 30, grifos do autor). Assim, as anedotas requeridas, portanto, para esta tarefa, são as que Rosa nomeou de anedotas de abstração. Vejamos alguns exemplos das dessa qualidade,

 

Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão, quando alguém lhe grita: — "Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo"... Larga o herói a carrocinha, corre, vôa, vai, tom a barca, atravessa a Baia quase... e exclama: — "Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa..." (ROSA, 2001e, p. 30, grifos do autor).

 

(...) aquela do cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva, e, como estivesse justo sentado debaixo da goteira, perguntou-lhe o condutor por que não trocava de lugar. Ao que, inerme, humano, inerte, ele respondeu: — "Trocar... com quem?" (ROSA, 2001e, p. 30-31, grifos do autor).

 

(...) o caso do garotinho, que, perdido na multidão, na praça, em festa de quermesse,se aproxima de um polícia e, choramingando, indaga: — "Seo guarda. o sr. não viu um homem e uma mulher sem um meninozinho assim como eu?!" (ROSA, 2001e, p. 3, grifos do autor).

 

Assim é que, sendo conduzidos pela visão de mundo de uma criança de oito anos, Miguilim, ansiamos por ressignificar nossa vida inteira, mirando-a pela primeira vez e valorizando-a em sua simplicidade e naturalidade, como em "Campo geral".

Da mesma forma é que, pela boca de um velho mendigo, Manuelzão ouve uma antiga epopéia que se lhe revela a completude que faltava para intuir o sentido de sua vida, em "Uma estória de amor".

Também, em "O recado do morro", o modo equívoco da compreensão de um louco sobre uma frase por ele ouvida e, para outros ensandecidos e/ou ingênuos transmitida, chega aos ouvidos de um cantador popular que a transforma em canção, cuja revelação poética salva o personagem Pedro Boi de morte à traição.

E é com esse mesmo espírito que, em "Cara-de-Bronze", um velho e paralítico fazendeiro envia um de seus vaqueiros para que reveja e traga minuciosa descrição de seu antigo torrão natal. Depois de longa viagem, Grivo retoma com fartas observações desconexas, acerca da paisagem do lugar para onde fora enviado, cujos sentidos só poderiam ser recompostos, poeticamente, pela memória do fazendeiro moribundo.

Por que Rosa destina a estes personagens tão desfigurados — em comparação àqueles poderosos, impávidos e belos, frutos de uma épica triunfante — o heroísmo e o poder da intuição, da inspiração e da revelação?

Em Tutaméia (2001e), Rosa, mediante seu estilo inconfundivelmente entrançado, apresenta, a nosso ver, a solução para o complexo e sutil paradoxo da humildade convertida em força. Introduziremos esta questão, a partir de uma breve digressão sobre um tema, oculto nos recônditos da imortal obra do escritor alemão Thomas Mann (1875-1955), A Morte em Veneza15 (s/d), que tomaremos emprestado sob o epíteto de "heroísmo da fraqueza".

Na confecção da matéria artística, há um trabalho a ser realizado pelo modelador, que se estabelece por um "apesar de". Para o protagonista de A Morte em Veneza, Gustav Von Aschembach, "(...) quase tudo grande que existia, existia como um "apesar", realizado apesar da: aflição e tormento, pobreza, abandono, fraqueza corporal, vício, paixão e mil obstáculos (...)" (MANN, s/d, 30).

Assim, ao modelar a sua obra, o artista também se coloca como personagem de sua própria trajetória artística, sendo, nesse caso, modelado pelo Artista-Tempo16. Desta maneira, o artista converte-se no herói de sua própria epopéia, cujos antagonistas poderosos, o Tempo e a Morte, são enfrentados por sua capacidade criadora de transformar-se a si mesmo em seu próprio antidestino, através de uma marca idiossincrática presente em sua obra. Identificando este belo e terrível trabalho sendo realizado por Aschembach, que, segundo o ponto de vista de um de seus críticos, "(...) em orgulhosa vergonha cerrava os dentes e permanecia calmo enquanto espadas e lanças lhe atravessavam o corpo" (MANN, s/d, 30), o narrador de A Morte em Veneza compara essa atitude do artista, sobretudo, do escritor, em sua luta por impor-se contra sua própria destruição, à imagem de São Sebastião crivado de flechas, como a melhor tradução deste heroísmo da fraqueza,

 

Isto era bonito, espirituoso e exato, apesar de seu cunho aparentemente demasiado passivo. Pois o porte no destino, o garbo no tormento, não significam apenas uma tolerância; são uma realização ativa, um triunfo positivo, e a figura "Sebastiana" é o símbolo mais belo, se não de toda a arte, ao menos da arte em questão. Penetrando com os olhos neste mundo narrado, via-se: o elegante autodomínio que até o último momento esconde aos olhos do mundo uma minação interna, a decadência biológica; a amarela e sensualmente prejudicada feiúra, que é capaz de atiçar seu ardor de cio para a uma chama limpa, elevar-se mesmo ao poder no reino da beleza, a pálida impotência, que busca a força das profundidades esbraseadas do espírito, para ter aos pés da cruz todo um povo arrogante, prostrado aos seus pés; a gentil atitude no serviço vazio e severo da forma; a falsa e perigosa vida, a rapidamente enervante saudade e a arte do impostor nato: observando-se todo este destino e muita coisa parecida, podia-se duvidar se em geral existia um outro heroísmo que o da fraqueza? (MANN, s/d, p. 30-1).

 

 

Na metafísica pessoal criada por Rosa e residente em sua obra, há sempre uma escolha pelo menor, pelo menos visível, pelo singelo, pelo detalhe, pela minúcia, pelo desvalorizado, pelo desacreditado, pelo simples, na composição temática de sua literatura. Entendemos que este heroísmo da fraqueza é a sua marca indelével. Este é o seu antidestino. É a imposição que ele lança a si mesmo, como um artesão da palavra: a busca por sua eternização. Sendo um homem de carne-e-osso e espírito, assim como qualquer um de seus iguais, premido pelo desejo de auto-realização num tempo/espaço e condicionado pela finitude, ele se municia com sua única possibilidade de permanência: a sua própria obra, com que busca manter-se vivo e vencendo Cronos, através de cada novo leitor que se debruça sobre sua palavra escrita, "As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras; para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço do infinito. Vivo no infinito; o momento não conta" (in LORENZ, 1973, 328).

Paradoxalmente, nesta opção pelo mais fraco é que reside a sua grandeza. A opção pela humildade é que assegura a sua ressurreição e, em decorrência, a de todos os homens.

Desta forma é que Riobaldo ao declarar, na abertura de Grande Sertão: Veredas, "— Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja" (ROSA, 2001a, p. 23), querendo tranqüilizar seu interlocutor, informando que nada aconteceu, ou que o som que ele ouvira é de coisa sem importância, pode significar também que, com, estas palavras, Rosa, pela boca de seu narrador-personagem, esteja anunciando, à imitação da criação do universo por Deus, o surgimento do universo do Grande Sertão de sua metafísica, desde o nada, ou ex-nihilo (ARAÚJO, 1996).

Também, em "Sobre a escova e a dúvida", último prefácio de Tutaméia, Rosa apresenta um despretensioso glossário, em que inclui a palavra homônima ao título da obra, por ele assim traduzida: "nonada, baga, ninha, inânias, ossos-de-borboleta, quiquiriqui, tuta-e-meia, mexinflório, chorumela, nica, quase-nada; mea onmia" (2001e, p. 233), todas elas significando sua auto-dissolução em sua própria obra, já que, após ponto-e-vírgula, ele inclui o termo em latim mea omnia, que traduzimos por "todas as minhas coisas". Em outras palavras, Tutaméia funcionaria assim como sua obra testamental, em que ele deixaria aos seus leitores, como herança literária, nada e tudo. Nada para quem nela não ousar entregar-se e, tudo, que será sempre, quase-tudo, para quem tomá-la com paciência e perseverança, perdendo-se e achando-se em seu labirinto narrativo.

Há um aspecto gnosiológico de fundo que sustenta esta questão.

Para Rosa, há uma diferença essencial entre intelectualidade e sabedoria. A intelectualidade é estabelecida pela via de uma lógica racional, que culmina, muitas vezes, na absolutização da verdade e, em decorrência, no encarceramento conceitual do homem e do mundo. Esta atitude conduz a um espírito de exatidão que não se harmoniza com o inacabamento e com a vitalidade da existência humana. A sabedoria, por sua vez, tem a ver com o alcance do conhecimento sobre o homem e sobre o mundo, mediante um acedimento sensível e espiritual, portanto, aberto às várias e surpreendentes dimensões que o humano demasiado humano apresenta, "A sabedoria é saber e prudência que nascem do coração" (ROSA, in LORENZ, p. 350). Nesse sentido, não há nenhuma contradição em alguém ser, como no seu caso, possuidor de um alto grau de erudição e se abrir constantemente a outros componentes da gnose humana, muitas vezes desvalorizados e desqualificados como ilógicos informadores de verdades sobre o homem e sobre o mundo. Entre esses componentes, ele menciona o desconhecido, o inconsciente e o irracional. Esta abertura é viabilizada por um conhecimento que Rosa chama de prudente, por este ser abrangente, não-preconceituoso e poroso a perspectivas de várias vertentes do saber, sejam elas científicas, míticas, metafísicas ou artísticas.

Dessa forma, a criação de seus personagens, invariavelmente, tem como fonte de inspiração, as figuras reais do sertão, que ele conheceu e com quem conviveu, detentoras de uma sabedoria ancestral para o bom aconselhamento e depositárias da memória mítica e fabulatória sertaneja, "Minhas personagens, que são sempre um pouco de mim mesmo, um pouco muito, não devem ser, não podem ser intelectuais pois isso diminuiria sua humanidade" (in LORENZ, p. 350).

Entre os outros elementos que Rosa (in LORENZ, 1973) se utiliza para realizar a alquimia da matéria vertente de sua narrativa, está: o seu método no manuseio das palavras, como se elas estivessem vindo ao mundo pela primeira vez, eliminando de cada uma delas as nódoas assimbólicas da linguagem ordinária, para alcançar das mesmas os seus sentidos primordiais. Este modo de burilar as palavras fez com que lhe atribuíssem o titulo de revolucionário da língua, recusado terminantemente por ele, pois que, segundo seu ponto de vista, tal epíteto servia apenas para causar-lhe mal-estar entre os literatos, quanto ao engajamento político de sua poética. Ironizando o sentido do termo revolucionário, Rosa prefere ser chamado de reacionário da língua, já que sua preocupação fundamental é com a construção do vocábulo a partir de sua gênese, "Cada palavra é, segundo a sua essência, um poema" (in LORENZ, 1973, p. 346).

Nessa busca obsessiva, Rosa não consegue conter em apresentar-se como um demiurgo em relação às palavras, já que busca criá-las à sua imagem e semelhança,

 

Não sou um revolucionário da língua. Quem afirme isto não tem qualquer sentido da língua, pois julga segundo as aparências. Se tem de haver uma frase feita, eu preferia que me chamassem de reacionário da língua, pois quero voltar cada dia à origem da língua, lá onde a palavra ainda está nas entranhas da alma para poder lhe dar luz segundo a minha imagem (in LORENZ, 1973, p. 341).

 

Há também a inserção, em seu estilo narrativo, das idiossincrasias dialetais de seu berço sertanejo, cujo linguajar ainda resguarda a marca da originalidade e, por esse motivo, está prenhe de uma sabedoria ancestral e mítica. Da mesma forma, por ter sido um escritor ambientado na modernidade, não se furtou ao experimentalismo lingüístico, característico dos escritores e poetas de seu tempo, porém, sem tirar os olhos de uma tradição idiomática vinculada às raízes da língua portuguesa, usada pelos sábios e poetas medievais. Obviamente, é preciso incluir neste rol alquímico-literário, a condição de poliglota17 do escritor mineiro, que o permitia encontrar soluções poético-linguisticas inusitadas para criações metafóricas mais candentes.

Finalmente, é necessário ressaltar a sua disciplina, intransigente e obsessiva, na busca da construção de uma linguagem que, de fato, se consubstanciasse no veículo de uma verdade a ser revelada; numa obra que perdurasse para além de seu tempo e de seu espaço,enfim, numa linguagem que fosse portadora da voz do infinito,

 

Apenas sou incorrigivelmente pelo melhorar e aperfeiçoar, sem descanso, em ação repartida, dorida, feroz, sem cessar, até ao último momento, a todo custo. Faço isso com meus livros. Neles, não há nem um momento de inércia. Nenhuma preguiça! Tudo é retrabalhado, repensado, calculado, rezado, refiltrado, refervido, recongelado, descongelado, purgado e reengrossado, outra vez filtrado. (...). Acho que a gente tem de fazer sempre assim. Aprendi a desconfiar de mim mesmo. Quando uma página me entusiasma e vem a vaidade de a achar boa, eu a guardo por uns dias, depois retomo-as, mas sinceramente afimando a mim mesmo: — Vamos ver por que é que esta página não presta! E, só então, por incrível que pareça, é que os erros e defeitos começam a surgir, a pular-me diante dos olhos. Vale a pena, dar tanto? Vale. A gente tem de escrever para 700 anos. Para o Juízo Final. Nenhum esforço suplementar fica perdido (ROSA in LORENZ, 1973, p. 234-5).

 

A metafísica rosiana, ainda que, insistentemente, se converta num anseio pela presença da deidade, tanto no processo criativo do escritor quanto no desejo dele de que este seja o móbil de quem o lê, não redunda na evaporação do humano nas brumas do transcendente, ao contrário, tomada com a seriedade que ela requer, transforma-se mesmo numa conjuração divina, beirando mesmo a blasfêmia e a heresia, dada a exortação a que o leitor é enviado: ao domínio da própria palavra criadora, do verbo engendrador dos gestos, das ações e realizações humanas, roubados ao Demiurgo. Assim como fez Prometeu, ao furtar a faísca do saber aos deuses e presenteando-a aos incautos humanos. Para Rosa,

 

Isto provém do que eu denomino a metafísica de minha linguagem, pois esta deve ser a língua da metafísica. No fundo é um conceito blasfemo, já que assim se coloca o homem no papel de amo da criação. O homem ao dizer: eu quero, eu posso, eu devo, ao se impor isso a si mesmo, domina a realidade da criação. Eu procedo assim, como um cientista que também não avança simplesmente com a fé e com pensamentos agradáveis a Deus. Nós, o cientista e eu, devemos encarar a Deus e o infinito, pedir-lhes contas, e, quando necessário, corrigi-los também, se quisermos ajudar o homem. Seu método é meu método. O bem-estar do homem depende do descobrimento do soro contra a varíola e as picadas de cobras, mas também depende de que ele devolva à palavra seu sentido original. Meditando sobre a palavra, ele se descobre a si mesmo. Com isto repete o processo da criação (in LORENZ, 1973, p. 340).

 

Ao colocar nas mãos do homem a fecundidade da palavra primordial, Rosa, segundo Lorenz, o põe "Liberto do peso da temporalidade" (1973, p. 341). Uma vez sendo criador, o homem pode proclamar também o seu Fiat Lux!, e dar renovado sentido à sua existência. É desta maneira que Rosa põe o peso equilibrador da imanência no prato oposto da balança em que está a insustentável leveza de sua transcendência,

 

É exatamente isso que eu queria conseguir. Queria libertar o homem desse peso, devolver-lhe a vida em sua forma original. Legítima literatura deve ser vida. Não há nada mais terrível que uma literatura de papel, pois acredito que a literatura só pode nascer da vida, que ela tem de ser a voz daquilo que eu chamo "compromisso do coração". A literatura tem de ser vida! O escritor deve ser o que ele escreve (in LORENZ, 1973, p. 341).

 

Esse compromisso do coração de Rosa não se realiza apenas numa perspectiva escatológica. Para ele, há o âmbito do arqueológico que não pode e nem deve ser desconsiderado, pois o fio da narração também é uma maneira de recordar. Em outras palavras, quando Rosa nos conta uma estória, talvez esteja, num primeiro momento, convidando-nos a nos lembrar quem somos e de onde viemos, para, num segundo momento, uma vez afeiçoados à grandiosidade de nossa origem, exortar-nos a grandes criações e realizações por nossa vida afora. O exercício de compreensão e auto­compreensão que ele exercita ao tecer sua narrativa, culmina nesse mesmo exercício, por parte do leitor, quando busca desenredá-la. Ouçamos de sua própria voz, essa complexa e intrigante trajetória,

 

Quando escrevo, repito o que vivi antes. E para estas duas vidas um léxico apenas não me é suficiente. Em outras palavras: gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar de sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade (in LORENZ, 1973, p. 328-9).

 

A metáfora do rio, dando sentido à eternidade, nos traz à lembrança, o fio d'água que é o início da caminhada de um singelo córrego que, ao se desdobrar sobre si mesmo e, ao receber outras águas, seja de outros córregos que o transversalizam ou das águas da chuva que a ele retornam, transforma-se em rio, cuja travessia sobre a terra, não se faz sem o enfrentamento de toda sorte de obstáculos e desafios: corredeiras, morros, quedas d'água, veredas, secas, enchentes, barreiras; até alcançar o seu apogeu fluvial em largueza e profundidade, para depois entregar-se, em abundância doce e tempestuosa, ao mar, salgado e iracundo.

Da mesma forma, com um breve travessão seguido da palavra "Nonada", Riobaldo, agarrando-se ao fio da memória, inicia a narrativa de sua trajetória, desde menino, pelo sertão, onde conhece pessoas, estórias, amores, desamores; combate em guerras; vivencia de perto o matar e o morrer; pactua com o demônio; crê e duvida de Deus, sai da condição de jagunço para a de chefe; cresce em confiança em si mesmo; alcança a velhice; hora de reflexão e despedida solitária, declarada pela reticente palavra "travessia".

Esse breve relato do rio/Riobaldo confunde-se com a reflexão de Rosa acerca da relação que o mesmo estabelece entre o infinito e a felicidade, já que o encontro do rio com o mar não significa a morte do rio, enquanto água que corre, e o encontro de Riobaldo, com o fim de seu relato não significa o fim de Riobaldo, como homem que narra. O fio d'água continuará a estabelecer novos fluxos fluviais e o fio da memória de quem leu a narrativa de Riobaldo continuará a estabelecer novos fluxos narrativos. Eis a divisa de Guimarães Rosa,

 

(...) apenas alguém para quem o momento nada significa, para quem, como eu, se sente no infinito como se estivesse em casa, o crocodilo com as duas vidas até agora, somente alguém assim pode encontrar a felicidade e, o que é mais importante, conservar para si a felicidade. Apenas na solidão pode-se descobrir que o diabo não existe. E isto significa o infinito da felicidade. Esta é a minha mística (in LORENZ, 1973, p. 329).

 

 

Notas

 

1 "De repente o diabo me cavalga" (LORENZ, 1973, p. 327). 

 

2 "O interior e o exterior já não podem ser separados" (LORENZ, 1973, p. 343).

 

3 "Texto filosófico composto entre os séc. VIII e IV a.C., anexado ao Veda, e no qual se desenvolve a reflexão acerca do relacionamento entre Átmã e Brama (...)" (FERREIRA, 1986, p. 1740).
 
4 Segundo Ferreira, o taoísmo é o "Ensinamento filosófico-religioso 
desenvolvido sobretudo por Lao-tse (séc. VI a.C.) e Tchuang-tseu (séc. IV a.C.), filósofos chineses, cuja noção fundamental é o Tao — o Caminho — que nomeia o grande princípio de ordem universal, sintetizador e harmonizador do Yin do Yang, e ao qual se tem acesso através da meditação e da prática de exercícios físicos e respiratórios" (1986, p. 1647).

 

5 "Conjunto de textos sagrados — hinos laudatórios, formas sacrificiais, encantações, receitas mágicas — que constituem o fundamento da tradição religiosa (do bramanismo e do hinduísmo) e filosofia da Índia" (FERREIRA, 1986, p. 1757).

 

6 Referindo-se ao modo de filosofar de Platão.

 

7 Menção à grande obra do poeta Virgílio (70 a.C. – 19 a.C.).

 

8 O escritor mineiro refere-se particularmente à conversão para o italiano de sua obra Corpo de baile, realizada por Bizzarri, que, a partir de sua terceira edição no Brasil, foi subdivida em três: Manuelzão e Miguilim; No Urubuquaquá, No pinhém e Noites do sertão.

 

9 "Quando o Rei era menino/já tinha espada na mão/e a bandeira do Divino/com o signo-de-salomão./Mas Deus marcou seu destino:/de passar por traição.//Doze guerreiros somaramlpra servirem sua leis/ganharam prendas de ouro/usaram nomes de reis./Sete deles mais valiam:/dos doze eram um mais seis...//Mas, um dia, veio a Morte/vestida de embaixador:/chegou da banda do norte/e com toque de tambor./Disse ao Rei: — A tua sorte/pode mais que o teu valor?//— Essa caveira eu vi/não possui nenhum poder/ — Grande Rei, nenhum de nós/escutou tambor bater.../Mas é só baixar as ordens/que havemos de obedecer.// — Meus soldados, minha gente,/esperem por mim aqui. Vou à Lapa de Belém/pra saber que foi que eu ouvi./E qual a sorte que é minha/desde a hora em que eu nasci....// — Não convém, oh Grande Rei/juntar a noite com o dia.../— Não pedi vosso conselho,/peço vossa companhia/l.Meus sete bons cavaleiros/flôr da minha fidalguia.../Um falou pra os outros seis/e os sete com um pensamento:/ — A sina do Rei é a morte,/temos de tomar assento.../Beijaram suas sete espadas, produziram juramento.//A viagem foi de noite/por ser tempo de luar./Os sete nada diziam/porque o Rei iam matar. Mas o Rei estava alegre/e começou a cal1tar...//— Escuta, Rei favoroso,/nosso humilde parecer:.........................." (ROSA, 2001d, p. 95-6).

 

10 "urubu é vila alta/mais idosa do sertão:/padroeira, minha vida —/vim de lá. volto mais não.../Vim de lá, volto mais não?...//Corro os dias nesses verdes/meu boi mocho baetão:/buriti — água azulada/camaúba —sal do chão...//Remanso de rio largo,viola da solidão:/quando vou pr'a dar batalha/convido meu coração..." (ROSA, 2001a,  p. 135).

 

11 "Da mandioca quero a massa e o beijú,/do mundéu quero a paca e o tatú;/da mulher quero sapato, quero o pé !/— quero a paca, quero o tatú, quero o mundé.../Eu, do pai, quero a mãe, quero a filha:/também quero casar na família./Quero o galo, quero a galinha do terreiro,/quero o menino da capanga do dinheiro./Quero o boi, quero o chifre, quero o guampo/do cumbuco, do balaio, quero o tampo./Quero a pimenta, quero o caldo, quero o molho/ — eu do guampo quero o chifre, quero o boi/Qu'é dele, o dôido, qu'é dele, o maluco?/Eu quero o tampo do balaio, cumbuco..." (in Rosa, 2001c, p. 27).

 

12 "Porque em todas as circunstâncias da vida real, não é alma dentro de nós, mas sua sombra, o homemexterior, que geme, se lamenta e desempenha todos os papéis neste teatro de palcos múltiplos, que é a terra inteira" e "Seu ato é, pois, um ato de artista, comparável ao movimento do dansador; o dansador é a imagem desta vida, que procede com arte; a arte da dansa dirige seus movimentos; a vida age semelhantemente com o vivente" (in Rosa; 2001c, p. 5).

 

13 "A pedrinha é designada pelo nome de calculus, por causa de sua pequenez, e porque se pode calcar aos pés sem disso sentir-se dôr alguma. Ela é de um lustro brilhante, rubra como uma flama ardente, pequena e redonda, toda plana, e muito leve" (in Rosa, 2001c, p. 5).

 

14 Tutaméia (2001e), última obra publicada em vida por Guimarães Rosa, é um conjunto de breves contos quefazem jus à literatura como Ezra Pound a definiu "(...) uma linguagem carregada de significado" (2003, p. 32). São quarenta contos com, no máximo, duas a cinco páginas, organizados e intitulados de A a Z. Essa seqüência se rompe após a letra F, nos meados do livro, quando o autor reposiciona as letras J, G e R que são as iniciais de seu nome, para depois retomar a seqüência normal do alfabeto. Outro aspecto curioso é o fato de Rosa entremear os contos com quatro prefácios em que estão presentes, segundo ele mesmo, sutis revelações sobre sua lavra literária.

 

15 Thomas Mann publica Morte em Veneza em 1912. Trata-se de um livro, se comparada às suas volumosas obras Montanha mágica (1924) e Doutor Fausto (1947), de fôlego menor. Em torno de um pouco mais de oitenta páginas, se desenrola a narrativa do renomado literato alemão Gustav von Aschembach que, em crise com a austera vida que levava em Munique, resolve passar uma temporada de descanso em Veneza. Nesta idílica cidade, no hotel em que se hospedara, vem a conhecer à distância, um jovem que, para ele, representa a própria encarnação da beleza e da inocência. Desde a decisão de ir para Veneza até o encontro inesperado com a beleza apolínea de Tadzio, passando pelo sentimento ambivalente de amá-lo apenas contemplando-o como a uma obra de arte ou consumar esse amor através de uma realização carnal, eis o dilema por que passará Aschembach, e que será também a ambivalência por que passará a cidade de Veneza, já que resguardará em si mesma a beleza e, ao mesmo tempo, o fedor, a imundície, a doença e a morte.

 

16 Uma brilhante tradução deste fenômeno foi realizada pelo compositor Chico Buarque, por meio da canção "Tempo e Artista": "Imagino o artista num anfiteatro/Onde o tempo é a grande estrela/Vejo o tempo obrar a sua arte/Tendo o mesmo artista como tela//Modelando o artista ao seu feitio/O tempo, com seu lápis impreciso/Põe-Ihe rugas ao redor da boco/Como contrapesos de um sorriso/Já vestindo a pele do artista/O tempo arrebata-lhe a garganta/O velho cantor subindo ao palco/Apenas abre a voz e o tempo canta//Dança o tempo sem cessar, montando/o dorso do exausto bailarino/Trêmulo, o ator recita um drama/Que ainda está por ser escrito//No anfiteatro sob o céu de estrelas/Um concerto eu imagino/Onde, num relance, o tempo alcance a glória/E o artista, o infinito" (BUARQUE, Paratodos, 1993).

 

17 Segundo Lorenz, "Por um artigo publicado no Brasil em 1967, após a morte de Guimarães Rosa, (...) ele falava português, espanhol, francês, inglês, alemão e italiano. Além disso, possuía conhecimentos suficientes para ler livros em latim, grego clássico, grego moderno, sueco, dinamarquês, servo-croata, russo, húngaro, persa, chinês, japonês, hindu, árabe e malaio" (1973, p. 339).
 

 

 

 

Referências

 

 

ARAÚJO, Heloisa Vilhena de Araújo. O roteiro de Deus — dois estudos sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Mandarim, 1996.


BUARQUE, Chico. Tempo e Artista in: CD Paratodos. 1993.

 

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.


LORENZ, Günter W. Guimarães Rosa. Diálogo com a América Latina: panorama de uma literatura do futuro. Trad. Fredy de Souza Rodrigues e Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: EPU, 1973.

 

MANN, Thomas. A morte em Veneza. Trad. Maria Delling. São Paulo: Hemus, s/d.


POUND, Ezra. ABC da literatura. 16 ed. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2007.

 

RÓNAI, Paulo. Rondando os segredos de Guimarães Rosa. In: Rosa, João Guimarães. No urubuquaquá, no pinhém (Corpo de baile). 9 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.


ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason: (1958-1967). Edição, organização e notas Maria Apparecida Faria Marcondes Bussolotti. Trad. Erlon José Pascoal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: Academia Brasileira de Letras; Belo Horizonte, MG: Ed. da UFMG, 2003a.


_____________________. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora UFMG, Nova Fronteira, 2003b.

 

_____________________. Grande sertão: veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001a.

 

_____________________. Manuelzão e Miguilim (Corpo de Baile). 11 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 2001b.


_____________________. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de Baile). 9 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001c.


_____________________. Tutaméia (Terceiras Estórias). 8 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001d.

 

 

 

 

dezembro, 2010