UM PAPAGAIO PALIMPSÉSTICO

 

 

Naquele dia — na beira da tarde —, logo acima do curral oval de poucas gramas, estavam sentados Pedro pai e os meninos da fazenda. Todos sentados na parte de capim menos castigado pelo gado. O tempo caótico naquelas paragens... O vento — forte e frio — expulsava as nuvens nefastas, armadas longe. No vale as nuvens aglomeram e às vezes com trovões pequenos. Portanto, há qualquer momento poderia chover — é o fim da colheita das grandes plantações de milho e feijão na Soparimba. 

Pedro pai manipula um saco plástico de adubo e, com suas mãos ásperas, dá retoques simétricos no quadrado de plástico. Para isso usa uma velha tesoura de ferro de tosar as crinas dos cavalos; tem válida serventia. Nesse saco plástico, reciclável, as palavras grafadas em letras grandes se encontram danificadas e até apagadas. 

Ao lado daquele cocho, na grama, em repouso há três gravetos medidos de alecrim coletados no cerrado, horas atrás. Além disso, jogados no chão, um facão e uma foice mal amolados. Nesse chão, Pedro pai estendeu o saco tosco, bem aberto e desamassado, que permaneceu ali na espera sobre a areia misturada com o barro de estrume de gado seco. Pedro pai contém um riso enigmático nos lábios, experimenta os gravetos, alisa e morga-os. Repara bem. O experimento pode resultar, no final, em logro para os meninos de olhos espertos e ansiosos. Os gravetos, em forma de cruz, são amarrados com pedaços de embira. 

— Pedro pai, quando ocê rasga a embira com as mãos embebidas de restos de água, ela traz cheiro tão bom! 

O graveto mais comprido, quando é alisado a canivetadas, morgado no amarro, forma em equilíbrio uma meia-lua. Logo após essa envergadura, também amarrado nas partes superiores dos dois gravetos — em forma de cruz —, o esqueleto da estrutura é testado contra o vento várias vezes seguidas. 

Sobre o saco plástico, a armação estruturada de forma aerodinâmica teve o amarramento ordenado — bem posto e caprichado. Tem de fazer, então que faça com calma, é fato indubitável! 

Pedro pai perscruta o tempo, pois o seu maior desafio está prestes a acontecer e tem que contar com a sorte e com o tempo. Verifica e aperta bem as amarrações do seu empreendimento. A rabiola, por fim, os meninos a fazem utilizando um bom barbante grosso e restos de outro saco plástico. Mas quando Pedro pai testa o seu protótipo imenso — capaz de assustar qualquer transeunte —, levantando-o contra o vento, percebe o estorvo e solta vitupérios, descartando de imediato a rabiola que rabeava — puxando de lado —, o que deixou os meninos boquiabertos e queixosos... 

— Vumpt, vumpt... é o vento forte contra o enorme papagaio de Pedro pai. Nessa perspectiva, os meninos correm a conduzir, a uma certa distância, o papagaio, levantando-o até quanto pudessem. No vento muito forte o papagaio foi solto, rompendo os bambuzais... alçando voo... decolando... enfim. Na verdade, bastou largá-lo e o tempo se encarregou, num instantâneo, de realizar o resto. Parecia mais que nem um passarinho; Pedro pai realçou isso em seu rosto, na hora. 

Aquele papagaio imenso, que foi motivo de tanta burlescaria, agora estava nos céus da Soparimba. As escritas no plástico, ainda nas alturas, se deixam vislumbrar ora sim, ora não. A manivela com a linha de nylon adquire um peso dantesco e, aos poucos, Pedro pai libera mais e mais linha. O vento cada vez mais forte sopra no vale da solidão. O céu está carregado de uma cor turva que vai se acumulando – concentrando no vale.

O peso aumenta ainda mais quando os meninos acrescentam na linha pedaços de papéis com diversificadas palavras. Palavras escritas com carvão. As letras foram rasuradas quando corrigidas umas sobre as outras, assim rapidamente, quando Pedro pai reescreve uma palavra em cima da outra. Logo as palavras, amarradas na linha de nylon, atravessam as cercas do curral, as formas das árvores, e passam por cima da grande casa da fazenda, se elevam nas alturas: tudo aquilo se tornou muito garrido. Pedro pai manda os meninos enviar mensagens para o mundo de lá. 

Paz, amor, alegria, "armonia", abundância, "cassa", roupa, perseverança, casa, "lápisc"... Seguem para o céu em meio às trovoadas. 

A linha é liberada totalmente da manivela e Pedro pai não suporta tanta batalha pesada. Luta contra o tempo. Vêm os primeiros pingos da chuva, e ele, sapeca, corta com o seu canivete a linha sem que os meninos saibam. Deu a impressão de que a linha tivesse arrebentado por si mesma. Mesmo porque, àquelas alturas, o homem, resignado, não tinha como lutar mais contra a natureza. 

O papagaio ainda fora visto, nas alturas, pela ultima vez sendo arrastado pelo vento forte nas nuvens agitadas. Os meninos, com suas cabeças erguidas para o céu puderam ouvir ainda as palavras de Pedro pai, indo na direção do paiol, enquanto eles fugiam para dentro da casa: 

— Eu é que nunca vou sair da Soparimba! 

 

 

MANANCIAL 

 

Depois do Brejão, onde há um antigo muro trabalhado árdua e manualmente com pedras, em tempos outros, fez-se um desvio que é o ladrão d'água, que segue em direção ao munho. O munho do Jaleco. A casa do munho, fechada com cadeado mesmo quando mói fubá, situa-se abaixo de duas moitas de bambu, formando um círculo — como se fosse um aboboral — propício a boas sombras. E ao seu redor a água corre em estreito córrego entremeado de capins. Do outro lado do Brejão, logo acima, vizinha à casa do Otávio, mora uma mulher casada cujo marido, trabalhador da Rede Ferroviária, quase sempre está ausente.

Beatriz, a bela, belos dotes juvenis, bastante sacudida e enxuta, segundo seu Esteves, possuidora de vários amantes, muitos dos quais não se conhecem e dão uma de que não sabem. Carinhosa com todos, com diferentes histórias para cada um, sabe muito bem como mantê-los e sempre atraí-los, e nunca provoca brigas de caráter de separação definitiva.

Seu Esteves muito se agrada de ir campear gado solteiro no retiro do Jaleco. Quando escapole nas noites, dona Ester ralha demais com ele, porém lhe agrada fazendo de conta que desconhece os fatos, permanecendo com suas rezas. Faz pirraças só com os outros da família, e seu Esteves nunca é o culpado de nada!

Gugulim e Mmamaú e outros pequenos logo no início das brigas entre o casal, sobre coisas triviais ou mesmo sérias, ou ainda sobre comentários maiores da ausência de seu Esteves, são afastados ou já acostumados saem por conta própria. Afugentam-se rapidamente quando estão perto das palavras ríspidas.

Numa noite dessas de ventos e tempo que ameaçam chuva, seu Esteves, caçando indaga, criou coragem de repente e mandou que arreasse sua mula Avenida, também rata, e partiu, às escuras, aos galopes rumo a lugar que ele não quis divulgar. Todo mundo sabia qual o lugar aonde ele ia.

Próximo ao munho do Jaleco, entre as duas moitas de bambu, ele deixou amarrada sua mula e a pé atravessou a pinguela, zarpando em direção à casa de Beatriz. O tempo fechou de vez e havia chuviscos grossos jogados pelo vento. O mato do brejo trazia o frio e seu Esteves o sentia na pele. O murmúrio das águas no córrego era um silêncio arrebatador. Ele, então, entrou pelo curral impedindo que a porteira fizesse barulho. Cachorro nenhum latiu. O homem, assim, com medidos passos ganhou o fundo da casa.

No interior da casa, a luz tremulante da lamparina pouco iluminava e permanecia sobre a mesa com toalha branca e um vaso de flores do campo, no centro. Sobre o armário de tantas peças, pratos e talheres e xícaras de chá, ficava um velho rádio desligado. Ela, Beatriz, na despensa, após algum tempo, saía de lá enrolada numa pequena toalha de banho, e de revés lançava o seu olhar comprido para o amante, sedento, sentado no fogão de lenha aceso. Se seu Esteves tivesse chegado mais cedo, teria o privilégio de levar água quente para o banho de Beatriz que fez o serviço sozinha. Isto ela comentou, com disfarçada surpresa, ao ver o amante ali que esperava sem ter avisado. O olhar dela fez com que seu Esteves a olhasse demoradamente.

O vento apagou a lamparina. Lá fora, além do murmúrio das gotas nas árvores e o vento farfalhando as folhas dos bambuzais, o barulho aumentava com o volume d'água do córrego, trazendo pedaços e troncos de madeira, pela chuva torrencial. Às vezes, relampeava tanto a ponto de clarear a relva. Algumas vacas se misturavam bem debaixo das moitas de bambu, todas a ruminarem.

No exato momento dos amantes insaciáveis, ouvem-se lá fora, vindos do curral, vozes e um zurrar, o sacolejar de um animal amarrado e cansado. Desta vez, os cachorros latiram muito.

Seu Esteves se antenou e da mesma maneira que veio desapareceu no escuro pela porta da cozinha, aliás local  por onde havia entrado sorrateiramente. Do quintal atravessou correndo por debaixo da cerca de arame e saiu cego e trôpego. Como a pinguela, cuja manutenção é obrigação do Otávio, não estava no lugar certo talvez por pura sabotagem — alguém passa por ali e joga a pinguela na correnteza —, houve erro de cálculo por parte de seu Esteves. De modo que o aventureiro de última hora caiu de braços abertos no córrego, enxergando pingos da chuva caindo na correnteza.

Não demorou a chegar em sua fazenda, todo molhado, debaixo de chuva, com a cabeça ainda suja de areia. Poderia dar uma boa desculpa, desde que não exigida. Enxugou a cabeça e o corpo com um pano velho e foi dormir ao lado da esposa. Sem diálogo, na noite comprida de muita chuva.

 

[Fragmento do livro Um carro de bois que tranpsortava logos]

 

 

 

[imagem ©ricardo tokumoto]

 

 
 
 
Newton Emediato Filho (Belo Vale/MG). Contista e pesquisador. Formado pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Graduou-se em Ciências Sociais (Sociologia, Antropologia e Política) e especializou-se na Faculdade de Direito, da mesma Universidade, em nível de Mestrado – Assessoria Técnico-Legislativa Avançada. É autor de vários ensaios sobre a obra de João Guimarães Rosa, tendo participação ativa em seminários internacionais realizados pela PUC/Minas sobre o escritor. Um Carro de Bois que Transportava Logos é o seu primeiro romance, com comentários (orelha) feitos por Luís Giffoni: [...] "Já disseram que Minas são muitas. A literatura também. Um Carro de Bois que Transportava Logos viaja por algumas delas" [...]. Seu conto "Um Papagaio Palimpséstico" foi selecionado no Festival Festivelhas, originado pelo Projeto Manuelzão/UFMG, realizado no Morro da Garça/MG, em novembro de 2005. Publicou Rio das Velhas em Verso e Prosa, Projeto Manuelzão, Instituto Guaicuy – SOS Rio das Velhas, primeira edição, dezembro, 2006. Seu miniconto "Palavras" foi publicado na coletânea Letras Mínimas pela Editora Guemanisse, Rio de Janeiro, 2007. Agraciado com Menção Honrosa no 5º Concurso Guemanisse de Contos e Poesias, que foi o mais concorrido concurso literário promovido pela editora, em dezembro, 2007.  Colabora com vários artigos, crônicas e ensaios em muitos sites e Ongs culturais, distribuídos por diversos estados brasileiros: Plural e Arte Eletrônica Cronópios de São Paulo/SP; Portal Cultura Livre no Rio de Janeiro; Recanto das Letras; Verdes Trigos – site cultural em que se encontra uma crítica de Rogério Salgado, poeta, crítico e jornalista, intitulada "Literatura onde o Real e o Imaginário se Confundem", sobre o romance infanto lírico juvenil Um Carro de Bois que Transportava Logos. Vive em Belo Horizonte/MG.