MIMESE

 

Ah, anjo habitante do encontro,

No infinito, das paralelas do Bem e do Belo,

Ah, ente da aurora que a noite encerra,

Como o instante, que nunca é o mesmo,

Tu não te reproduzes jamais,

Embora eu, amiúde,

Engendre simulacros de ti.

 

Neles, onde não estás, estás;

Estás no vazio verdadeiro,

Fundamento do falso;

Estás na diferença

Entre o toque e o traço.

 

13 III 92

 

 

 

 

 

 

ABSOLUTO

 

Transcender o Verbo inefável,

transcender o blábláblá

e realizar o poema,

uma verdade maiúscula.

Mas todo e qualquer objeto

é furtivo e minúsculo.

Um coelhinho tão estimado

pela minha parentela

que acaba sendo colocado

no calor de uma panela.

Uma caneta de ouro perdida na saída

e achada pela colega

coreana do outro turno.

Alvíssimas nádegas

que surgem do nada.

No córrego sujo,

uma lâmpada, que, límpida, bóia.

Meninos matam o tempo

numa alegre guerra de mamonas.

Sim, é isso, é tudo,

é tudo o que é nada, quase.

Pirilampos, sereno

pulverizando as tardes e as frases.

 

12 X 07

 

 

 

 

 

 

DAMA DA NOITE

 

Sempre caminhei ao crepúsculo,

Para depois sofrer o abandono

No sono sem sonhos,

No dia ressurrecto

Em sina, anseio, suor e não.

 

Mas num dia de brasa e cinza,

Caio com a tarde,

Adentro os odores da noite

E não volto mais.

 

13 VI 88

 

 

 

 

 

 

ARREBATAMENTO

 

A Dietrich Bonhoeffer

 

Não é agora,

Nesta hora enferma,

Em que a força te falta,

E a vida há de ter termo,

Que o além se faz próprio.

 

O além foi teu,

Quando foste próspero,

E a vida aflorava

Alegre, livre, lúbrica.

 

Mas é agora,

Nesta hora última,

Que a vida se extasia da vida,

E o além se apropria de ti.

 

1º XI 88

 

 

 

 

 

 

APÓS

 

Porque o amor é forte como a morte.

Cantares de Salomão 8:6

 

 

Após o amor,

o rosto se torna pleno

como se morresse

ou ficasse encantado,

como se fosse Deus

e contemplasse as coisas criadas.

 

O ser, o não-ser, o dormir,

o morrer, o talvez-sonhar,

abraçam-se

como as flores às árvores,

como as solas dos pés

ao solo e as asas ao ar.

 

Não somos e somos deste mundo.

Charadas atrapalham o nosso pertencimento.

Lemos os mesmos livros?

Vemos os mesmos filmes?

Enxergamos os enigmas do mundo

com os mesmos óculos?

Nada disso importa.

Após o amor, um mundo,

novo, começa

e vira a ampulheta.

Incinerada a borboleta,

voltando o pó ao pó,

o Após — íntima categoria —,

como uma bússola indica

que movido à paixão será o pó.

Assim, ainda que haja um predador

sempre à espreita,

viceja a cerejeira,

conservando ilesa

a antiga, antiga inocência.

 

Como presas inconscientes da sina,

entramos em casas de brinquedo.

Com abracadabras, abrimos

as portas assombradas

por mulheres cheias de brilhos,

por homens cheios de dedos,

sabendo que, quando tudo acaba,

após o amor — o rosto se torna pleno.

 

29 VII 08

 

 

 

 

 

 

O FILHO DA MULHER

 

Pensar que Deus não existe.

Pensar nisso — profundamente.

Até que o próprio homem,

que pensa, logo existe,

que pensa que existe,

também desapareça

e surja o que é além do homem.

 

Pensar na vontade.

Pensar numa vontade — indômita.

Ela toma a forma de um cavalo,

um cavalo enorme,

forjado com a mais dura madeira,

com o ventre cheio de guerreiros.

 

Pensar naquela cidade

que os gregos riscaram do mapa.

Pensar numa mulher, que corcoveia

como um cavalo,

que, como um cavalo,

é dotada de uma bela crina.

Pensar, pensar sem compaixão,

que Tróia mereceu ser destruída

e que mulheres e cavalos

devem ser tratados com o chicote.

 

Pensar no asceta,

que se chicoteia, e desprezá-lo

por ser ele incapaz de fazer o mal

a não ser a si mesmo.

Pensar, todavia, que o Tigre,

capaz de um mal sem termo,

 que devora até suas crias,

ao final, como antídoto,

deve provar o seu próprio veneno.

 

O homem supera o homem

e o herói supera o herói

quando a violência se violenta.

O Argonauta é vencido

pelo cão que é gente,

pela saudade de filho,

volta à aurora de sua vida:

deixa de singrar o Extremo Ocidente.

 

O Cavalo de Tróia

perde a dureza da madeira,

faz-se carne, ferida,

numa praça em Turim.

O cocheiro, valente como um guerreiro;

covarde como um guerreiro,

fustiga o animal sem pena.

Mas Odisseu, que, atônito, vê a cena,

espontâneo como uma criança,

frágil como uma mocinha,

às lágrimas, se abraça

ao colo do cavalo em agonia.

 

As lágrimas vêm das nuvens,

onde andam anjos e poetas.

O céu chuvoso seca,

iluminando a carpintaria.

São vistos objetos úteis

ao lado de brinquedos,

um cavalo de pau entre eles.

Lá está Jesus Cristo.

Fora da cruz, trabalha na madeira:

exerce o seu humano ofício.

 

2 X 06

 

 

 

 

 

 

OS VELHOS ITALIANOS

 

For years the old Italians have been dying

all over America

Lawrence Ferlinghetti, "The Old Italians Dying"

 

Os velhos italianos já morreram

por toda a América,

com seus chapéus de feltro,

foram da vida expulsos

como Américo Vespúcio.

São nomes e feições que perduram.

Mas houve algum dia morte de fato?

Alguém alguma vez, com efeito, nasceu?

A América terá existido

fora da mente do navegante atrevido?

Uma ova — engano e magia — o ovo

e as Índias de Cristóvão Colombo.

Entre as Índias orientais e estas do Ocidente,

quantas mitologias, quantas túnicas,

quantas tróias e odisséias,

quantos escudos reluzentes,

quantos gládios, quantos púbis,

altos como estrelas.

"Terra à vista", disse alguém de Portugal.

Rebate falso, ainda que histórico.

Não era o Monte Pascoal.

Era Ulisses trombando com o Monte Purgatório.

 

Mas nestas terras de nativos e colonos,

em meio a sargentos e sarjetas,

encena-se La Divina Increnca.

O falar embananado e macarrônico

de quem já muito bebeu

balbucia uma babel.

Com uma mão carcamana, 

um pé na cozinha e outro no cangaço,

componho este pé-quebrado.

O poeta é um recalcado,

e o mais é fuligem.

São humildes todas as origens,

manjedouras

onde nasce o Gesù Bambino

de uma amorosa Madonna.

 

Rimbambiti, velhinhos tomam sol,

observando o vaivém da vida.

Não são os velhos de outrora.

Mas "nada de novo debaixo do sol".

O passado não passará, não passa, nunca passou.

O passado é apenas esquecido.

Por isso, "se o senhor não está lembrado,

dá licença de contar".

A altura dos edifícios

não demole a nostalgia dos cortiços,

das casas velhas, dos palacetes assobradados.

Nas saudosas malocas da memória,

a viva voz de uma santíssima ignorância:

"escuita", "num fáiz ãssim, filhinho".

 

Às primeiras carícias, às primeiras palmadas,

sucedem as pancadas da batucada da vida:

vêm os homens com as ferramentas.

Mas a malemolência de um samba

e a candura de uma cançoneta

dão bom dia à tristeza

e um ritmo inaudito

às inacabadas, infinitas

palavras do Paradiso.

 

19 I 2010

 

 

 

 

 

(imagem ©ricken gelen) 

 
 

 

 

 

Mário Dirienzo (São Paulo/SP, 1955). Formado em Direito, tem se dedicado à poesia, participando de grupos e concursos literários. Publicou o livro de poesia Emulação e maravilhamento (São Paulo: Escrituras, 2001). Integra o grupo de estudos Cavalo Azul, fundado pela poeta Dora Ferreira da Silva.