Nada além do frio e da língua hostil. Língua que não abriga, repele.

Dias curtos e brancos. Noites demasiado longas, desrespeitando o sentido do tempo.

 

Levantar com esforço, ir até a pia do banheiro. Olhar o espelho.

Que rosto era aquele?

Concentrar.

Abrir a torneira. Deixar a água correr. Fazer a barba, escovar os dentes. Nessa ordem.

Vestir a mesma roupa de ontem. Olhar para o pequeno monte de peças sujas a um canto do quarto. Avaliar se é hora de colocar tudo na máquina.

Abrir a geladeira. Avaliar.

Fazer mentalmente a lista do supermercado:

3 iogurtes

1 detergente pequeno

3 maçãs

3 águas

(Na hora da insônia à noite, sente muita sede.)

 

Fechar a porta. Descer. Entrar na cafeteria da esquina. Tomar uma xícara de café.

Tomar o metrô até a Tallstingen.

Chegar ao pequeno prédio cinza. Entrar. Subir a escadaria.

Ir até a escrivaninha do fichário.

Começar a catalogar as fichas em inglês e francês.

 

A tática é essa. Concentração total em cada detalhe dos gestos cotidianos. Não deixar o pensamento se soltar. Não deixar que as lembranças o invadam com seu tropel particular de carne e osso.

Não enlouquecer.

Não perder o sentido das coisas. Se concentrar nisso.

Respirar. Parar.

Focar na ficha.

 

Ficha número 120

Data: 2/abril/1969

Nome: Jesus Arroyos

Idade: 26 anos

Origem: Uruguai

Escolaridade: formação técnica como ferramenteiro.

Histórico resumido: Sem militância definida. Preso por cerca de 6 meses. Marcas de torturas. Processado por prestar apoio à organização dos Tupamaros. Exilado pela Cruz Vermelha Internacional. Não necessita acompanhamento especial.  

Conhecidos: fichas nº 103 e 38.

Contato: Cruz Vermelha Internacional.

Condições atuais: empregado na fábrica Bergstigen.

Endereço atual: Solgatan, 83/51B

Supervisor responsável: Dr. Stellan Mankel.

 

Seus olhos deslizam para o pedaço de braço branco sob sua camisa. As cicatrizes têm vida própria, pulsam.

Mas não são elas que o apavoram. São apenas marcas do que já passou. O terror, quando vem, é de outra fissura. A que importa, profunda; a que não cicatriza. A incapacidade de continuar. A impotência mental e física.

A mesma que o faz se isolar de tudo e de todos.

A mesma que fez dele um vencido. Um  homem à margem. Imprestável.

 

Ficha número 114

Data: 7/dezembro/73

Nome: Jorge de Canto Lima

Idade: 32 anos

Origem: Brasil

Escolaridade: graduação em arquitetura

Histórico resumido: Militante. Processado por ações armadas no Brasil. Exilado no Chile. Preso no Estádio Nacional. Cicatrizes e sequelas físicas de eletrochoques, agressões e queimaduras, no Brasil e também no Chile. Tendências suicidas. Incapacidade parcial. Exilado pela Cruz Vermelha Internacional.

Conhecidos: nenhum

Contato: Cruz Vermelha Internacional.

Condições atuais: em acompanhamento, com medicação. Empregado na Associação de Solidariedade Internacional aos Exilados.

Endereço atual: Ljungskilevägen, 33/2.

Supervisor responsável: Dra. Birgitta Lansen

 

A ficha dele.

Todos os dias ele a lê. Lê também os relatórios de acompanhamento anexos.

É sua maneira de encontrar alguma concretude, ainda que provisória. Um tipo de chão. Ver escrito no papel por que se tornara essa carcaça.

A leitura reafirma sua decisão.

Está vencido. O rito final é o único que ainda falta.

Mas algum raciocínio lhe resta. Não vai deixar que imputem sua morte à estatística do inverno sueco. Não a transformará em um equívoco. Seu verdugo não é esse mundo branco.

Aguentará um pouco mais. Em poucas semanas, terá o suficiente para comprar a passagem até Londres.

Já sabe o ângulo em que pulará da ponte sobre o Tâmisa.

O que tem a fazer agora é apenas se focar.

Mais uma ficha. E outra. Até o final daquele dia.

Uma coisa de cada vez. Uma hora de cada vez. Um dia de cada vez. Uma noite de cada vez.

O controle de seu estado o exaure.

 

Ficha número 151

Data: 20/outubro/71

Nome: Salazar Torres

Idade: 33 anos

Origem: Argentina

Escolaridade: PhD em arqueologia, ex-professor titular da Universidad de Córdoba.

Histórico resumido: Sem militância definida. Expulso do trabalho letivo. Acusado de atividades subversivas e apoio estratégico aos Montoneros. Exílio voluntário. Escolha do país.

Conhecidos: fichas números 95 e 76.

Contato: nenhum; veio por iniciativa própria.

Condições atuais: em trânsito. Aguardando resposta à solicitação de colocação na Universidade de Nanterre, França.

Endereço atual: Långgatan, 6

Supervisor responsável: Dr. Lars Bnark

 

Ficha número 113

Data: 4/janeiro/74

Nome: Amanda Rojas de Bacellar

Idade: 23 anos

Origem: Santiago de Chile

Escolaridade: estudante do quarto ano de engenharia civil.

Histórico resumido: Militante. Prisão clandestina, sem processo. Trazida pela Cruz Vermelha Internacional. Marcas de eletrochoques, extração da unha do polegar direito e do mamilo esquerdo, queimaduras diversas, dilaceração do colo do útero e do canal vaginal. Marido, Julio Bacellar, desaparecido no Chile. Nenhuma escolha de país. Nenhum relacionamento. Apresenta mutismo e incapacitação temporária. 

Contato: Cruz Vermelha Internacional.

Condições atuais: em acompanhamento psicológico com medicação.

Endereço atual: Margarettagatan, 1C

Supervisor responsável: Dra. Alma Erickson.

 

Amanda.

Depois das sessões diárias com a psicóloga, ela fica sentada no banco de plástico branco na pequena sala da recepção da Associação dos Exilados. Toda tarde. A tarde toda. Aquele canto do banco é o mais próximo do que pode chamar de um lugar. É dali que ela olha o vazio.

Tão destroçada quanto ele.

Dois invólucros esvaziados de sentimentos e desejos. Dois corpos ocos. Duas mentes em busca de controle.

No final do expediente, quando Jorge sai, ela ainda está lá,  no mesmo lugar branco onde passa as tardes.

Ele lhe diz: "Hora de fechar".

Ela se levanta e sai a seu lado.

Caminham lado a lado, sem nada dizer.

Até a boca do metrô, aceitam a presença mútua. De lá, seguem cada qual seu rumo.

 

Hoje, no entanto, acontece algo.

À frente na calçada, a porta de um café-restaurante se abre e dali sai a figura exuberante do Dr. Lars.   

"Meus jovens", ele diz em espanhol. "Providencial encontrá-los aqui. Venham, entrem; tenho dois convites para a ceia que já vai ser servida. São seus. Tenho uma emergência e seria uma vergonha desperdiçar essa fartura. Entrem, entrem. Só vão ter que se sentar e desfrutar. Excelente".

Os dois olham para o Dr. Lars, impassíveis.

Puxados por ele, entram no recinto cheio. Sentam-se no lugar indicado. Esperam.

A ceia começa a ser servida.

Os vinhos. A comida bem feita. Um cheiro perfumado que há muito não sentiam.

Comem quase nada. Indiferentes. Cumprem uma obrigação.

Amanda nem toca no vinho.

Jorge mal bebe talvez um terço da taça.

Terminam a comida. O garçom retira os pratos.

 

Um violino começa a tocar ao fundo: Mahler.

Nenhum dos dois se levanta.

Há um brilho líquido que desliza pelo rosto de Amanda.

Um fio de voz sai de sua boca.

"Meu marido", ela diz. "Não vi o corpo dele".

Jorge não diz nada.

Muito aos poucos, ela continua.

"Um desconhecido veio me contar. Ficou preso com ele, mas não sabia seu nome. Ninguém sabia. Ele morreu sem dizer. Não podia dizer. Nem para o desconhecido na cela; um segredo a mais para o outro manter".

O brilho líquido é suave em seu rosto. Quase uma joia.

"No último dia, deu meu nome e o endereço da minha família. Pediu ao desconhecido que se saísse vivo, me avisasse. Foi nos primeiros dias do golpe. Que eu saberia, se ele me dissesse uma frase. Uma frase só. "I see a girl; a pearl of a girl".

Ela vê alguma coisa no vazio à distância.

"É de um filme que vimos juntos. Uma jovem conhece um rapaz num parque. Perto de uma estátua. Ela diz: "Look at me. Who do you see?". Ele responde: "I see a girl, a pearl of a girl".

No restaurante deserto, as luzes começam a se apagar.

"Fui presa só depois. Queria que também me matassem".

 

Quando saem, encontram a porta do metrô fechado.

Ele diz que pode acompanhá-la, mas o bairro onde ela mora é distante. Impossível chegar até lá a pé sob a neve que começa a cair. O quarto dele é mais central.

"Vamos. Você dorme em minha cama. Tem dois colchões. Ponho um no chão pra mim".

 

Na caminhada até seu quarto, é ele que de repente escuta a própria voz. Pela primeira vez, fala de algo que não o horror. Fala de uma coisa que houve antes. Um filme que também viu e agora se lembra.

Um homem e uma mulher caminhando por uma estrada.

Passa um carro. Eles dão adeus.

Não tem o mesmo significado que o filme que ela lhe contou.

Mas talvez para ele tenha.

Não é uma imagem de dor.

 

Apesar dos remédios, Jorge não dorme essa noite.

No escuro, tenta se concentrar.

Amanhã: levantar, ir até a pia, lavar o rosto, fazer a barba, escovar os dentes.

Nessa ordem.

Tirar dois iogurtes da geladeira. Duas maçãs. Servir.

Não ir até a cafeteria da esquina e sim fazer ele mesmo o café para Amanda. Sabe fazer um bom café.

Sem nenhum ruído, levanta-se do colchão no chão, abre o pequeno armário em cima do fogão. Ainda tem pó. Volta a se deitar.

Servir o café.

Se ela quiser pão, ele não tem. Levanta-se outra vez. Tem biscoito. Volta a se deitar.

Servir o café. Perguntar se ela quer biscoito.

Uma inquietação miúda toma forma dentro dele. Mas ele custa um pouco a reconhecer o que é. Um vestígio de vontade.

Cuidar de Amanda.

Da fragilidade dela. Das lágrimas que deslizaram como um brilho.

Isso ele pode fazer.

E só aos poucos compreende: isso parece que ele quer fazer.

Cuidar de Amanda.

Ela precisa dele.

Servir o café. Servir o biscoito. Levá-la ao parque. Como se leva uma convalescente.

Amanhã é sábado.

Focar nisso: levar Amanda ao parque.

Desde os horrores que viveu, é a primeira noite que tem alguma coisa levemente boa para pensar.

Cochila.

 

Dessa vez, não vê a ponte sobre o Tâmisa; e não sonha.

 
 
 
 

 

 

"Eu sou uma pessoa ótima. Quem me vê assim, como estou hoje, pode não se dar conta, mas sou. O próprio pastor vivia me dizendo isso. Cumpro minhas obrigações sem pestanejar desde pequeno. Meu pai vivia batendo em meu irmão mais velho, mas em mim não, nunca precisou. Fui bom filho, bom aluno, bom vizinho, bom funcionário, bom esposo. Seria um bom pai se tivesse tido filho, mas o Senhor não quis. Cheguei a ser voluntário no hospital com o pastor: fazia orações com os doentes, levava aos pobres enfermos a bênção de Deus. Sempre fui religioso, e há vários anos, graças ao Senhor, sou evangélico. Orgulho muito dessa minha correção na vida, e o pastor era o primeiro a dizer, "Dorival, você é uma pessoa ótima". Nunca roubei, jamais praguejei nem maldisse a vida nem desejei o mal do próximo. Ficava sempre no meu canto, fazendo minhas coisas da melhor maneira possível, sem mexer com a vida de ninguém, a não ser para ajudar no que podia. Se via um cego na rua, ajudava. Os idosos também, eu ajudava muito. Os animais. Nunca fiz mal a uma mosca. Via a estrada da minha vida como uma linha reta, seguindo sem desvios, sem buracos. Um asfalto lisinho, sabe?, só que branco. E nunca soube o que era perder o controle até o dia que cheguei em casa e peguei os dois na minha cama. Talvez tenha sido por isso, porque nunca tinha tido raiva nem ódio de ninguém, que não soube como reagir. No meu modo de entender, foi como se eu ficasse cego. Mas não fiz cena nem nada, isso não. Não disse nada, ou disse bem baixinho o que pensei, "Adúltera". Então fui até a cozinha e peguei a faca afiada que ficava no imã de parede que eu havia achado bacana numa oferta da TV e comprei pra ela. Peguei a faca, uma faca boa que também comprei pra ela, faca especial pra fatiar carne que ela dizia pras vizinhas que nunca tinha visto uma faca tão boa assim. Voltei pro quarto. O fulano já não estava lá. Não fiquei sabendo quem era e não quero saber, já perdoei. Mas ela continuava ali na cama deitada, toda enrolada, rosto coberto, no lençol branco do jogo de roupa de cama que eu tinha comprado pro nosso enxoval. Então foi que me aproximei, ergui alto a faca e enfiei. Como não sabia onde enfiar direito, ela demorou a morrer. Continuou um tempão como que arfando debaixo do lençol que ia se inundando de sangue e sujando também minha calça. E eu ali sentado, olhando aquilo como que sem ver e a única coisa que eu pensava era uma coisa só: "Senhor meu Deus, quanto vai valer agora minha vida inteira de correção?".

 

Local: cela coletiva do Presídio Masculino de Corumbá, dezembro de 2009

 

 

(imagens ©miriam cardoso de souza)

 

 

 

 

Maria José Silveira. Escritora e tradutora, é autora de vários romances, entre eles A mãe da mãe de sua mãe e suas filhas (com o qual recebeu o prêmio APCA de 2002 como Revelação), O Fantasma de Luís Buñuel, Guerra no Coração do Cerrado e Eleanor Marx, filha de Karl, história de uma suicida. É também autora de livros infantojuvenis. Goiana de Jaraguá, vive em São Paulo. No segundo semestre de 2010, publica seu quinto romance, Com esse ódio e esse amor, pela Editora Global. Escreve o blogue Literatura: Invenções Verdadeiras.