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Espantosa história de Ruffus, de Valdemir Klamt, vem preencher

uma lacuna na produção poética contemporânea

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Algo que marca as últimas décadas da poesia brasileira — especialmente após a morte de Leminski — é a distância entre o gosto popular e a produção de alta qualidade estética que vem surgindo. Esmerada técnica e inventividade lingüística são possíveis de encontrar em boa parte dos novos autores; estes respeitados no meio literário, porém pouco ou nada apreciáveis pelo cidadão comum.

O estudante da escola pública, o usuário do transporte coletivo, o transeunte que se emociona e identifica-se com o José de Drummond dá de ombros frente aos versos dos poetas contemporâneos — especialmente aqueles que tem sido lançados com críticas positivas no cenário das letras. Destes, muitos conquistam respeito entre os leitores cultivados por dominarem a regra do "dizer muito com pouco". Esta é uma das decorrências da exagerada leitura de um Pound no ABC da Literatura que se disseminou ainda mais depois da Ditadura Militar, no Brasil.

Um texto ferozmente intertextual e complexo, enigmático, com pitadas de humor refinado, é o exemplo da poesia feita de poetas para poetas, cada vez mais comum no estreito círculo da arte livresca. Muitos novatos a miram como objetivo, resignados com as escassas vendas das coleções de poesia e com um público específico que crêem tão pouco numeroso quanto exigente. Visa-se o leitor qualificado, conhecedor de referências, que teve prévia leitura da tradição ocidental. É um erro.

Essa poesia, admirada dentro dos círculos intelectuais e agraciada com a maior parte dos prêmios e distinções desse ínfimo mercado, tem se distanciado muito do leitor em formação e, nesse ponto, tem deixado uma lacuna preocupante (pois esta tem sido preenchida por um folclorismo exacerbado, que também lembra, de perto, o período da mesma Ditadura Militar).

Diferente desse cenário, a melhor poesia brasileira do século XX apresenta nítida comunicabilidade com o cidadão comum. Autores cujo espaço no cânone já não pode ser questionado, desde um Vinicius ou uma Cecília, um Quintana, um Lindolf Bell (fora o citado Drummond e Bandeira, ícones máximos), todos demonstram capacidade de seduzir novos leitores, tendo-o como foco intencional ou não. E quando se alude aos maiores poetas brasileiros ainda vivos, seja Gullar ou Manoel de Barros, essa característica se faz presente.

Se grande parte da poesia de peso publicada na última década é vazia, impenetrável e sem graça para o leitor iniciante (constatei-o muitas vezes em oficinas), o recente livro de Valdemir Klamt, Espantosa História de Ruffus, vem trazer um novo hálito para o cenário. É um alento perceber, neste segundo livro do poeta catarinense, uma combinação entre esmero técnico e relevância afetiva, resultando em um assombroso poder de sedução de novos leitores.

Deve ser este o motivo da sua classificação como literatura infanto-juvenil, uma inserção bastante duvidosa, já que o livro tem o mesmo interesse para leitores jovens, adultos ou da terceira idade. Também não se filia nem reproduz as marcas da produção infanto-juvenil do nosso tempo.

Solidamente construída sobre o modelo do poema em prosa praticado por Manoel de Barros, o que faz com que essa poesia seja tão agradável e atraente não é a musicalidade. São poucas as rimas, aliterações e assonâncias, e freqüentes os paralelismos. Nisso se distancia tanto da poesia popular quanto da produção que visa especificamente ao leitor mirim. Não propõe o encanto fácil dos trava-línguas ou a graça das piadas, mas uma delicada exploração da alma das personagens. Essa exploração se dá pela enunciação de imagens poéticas livres, simples, sofisticadas e universais; algo difícil de realizar, do ponto de vista do criador.

Ruffus, o protagonista, tinha "preguiça alaranjada" e um "jardim de lilases inventados":

 

Ruffus gostava de vender laranja

e achava a maior novidade livros de geografia.

E tinha uma bicicleta. Ruffus só andava de bicicleta.

 

Por um lado, era o menino comum e trabalhador; por outro, era o poeta.  Esse garoto do povo tinha um encanto especial, desde sua insistência com os pneus: "Ele parava a cada cinco quilômetros para esvaziá-los / e enchê-los novamente", pois, segundo ele, "(...) vento velho / dentro dos pneus faz mal à bicicleta." Esse Ruffus que renova o vento dos seus pneus também renova o vento da existência, pois desafia a lógica tradicional, recriando tudo.

Como leitores, somos fisgados pela beleza das imagens e vamos seguindo um fluxo narrativo no poema, cuja presença é possível de apontar através da massiva utilização de verbos. Esse fluxo, se por um lado leva à transformação de Ruffus, de criança a adulto, também ocorre contra o tempo, levando-nos ao passado do menino que, por crescer, torna-se mais menino, porque "O dia não envelhece. O homem é sempre aurora.".

O fluxo corre então de Ruffus, o menino, a João, seu avô, que "esqueceu de ficar velho". Conforme Ruffus vai-se desenvolvendo para a vida adulta, João vai se demonstrando menino pois, destarte o avô ser "longo, lento, triste", "As suas palavras andam de bicicleta / com aros de margaridas".

Nesse jogo imagético, constrói-se o duplo entre menino e velho, Ruffus e João. Cada um caminha para o outro, espelham-se, compartilham-se, de modo que não podemos divisar, ao final, se as relações familiares são mesmo de avô e neto, avó e mãe. Avó e mãe são linguagem, avô e neto são tempo imaterial. Quando a avó Maria se foi, e João "Passou a morar em casca de tartaruga", Ruffus deixou um bilhete assim, para sua mãe (que ainda não havia entrado na história):

 

"Não esqueça de me levar para passear

na casa de madeira amarela de meu avô

e na infância com gosto de laranja temporã.

E mamãe, também não esqueça

de dar pulmões novos pros pneus da bicicleta"

 

Esse elemento feminino, a mãe de Ruffus ou a linguagem, promove a possibilidade das viagens no tempo e, nisso, se espelha também em Maria, a avó, que tinha o poder de, competindo com os anjos, desafiar o crepúsculo:

 

O céu alaranjado de final de tarde era,

segundo Maria, a avó,

a fornalha dos anjinhos fazendo doces.

Maria não ficava atrás.

Recolhia lenda e competia com os anjos

no seu velho fogão à lenha.

Era festa nos meninos.

 

As mulheres-festa sumiram. Ruffus cresceu. João "encolheu todo". "Ruffus abandonou de ser menino, / mas não trocou a vidraça quebrada". O cheiro de alho continuou na casa, esse alho que o avô tinha a mania de mascar e que, conforme a superstição popular, tem o poder de espantar alma penada, essa mesma que encontrava, no Ruffus menino, morada: "O menino não serve para joão-de-barro, / mas serve para repouso de alma penada".

Tente-se desvendar o mistério dos jogos imagéticos: impossível. Klamt constrói em seu poema uma teia de relações, embaralhando conceitos como os de tempo e memória, magia e ontologia, gênero e parentesco, brincando com as diferentes funções da linguagem. Sem pedantismos e obscurantismos, sem utilizar palavras difíceis e construções exóticas, mas proporcionando uma vasta gama de níveis interpretativos, Klamt consegue seduzir o leitor para a fruição da poesia.

Essa poesia que tem, como quis Cortázar, um interlúdio mágico, uma aproximação com as artes da intuição e uma negação da racionalidade "adulta" do Princípio de Não-Contradição (como propôs Octavio Paz). Espantosa história de Ruffus espanta mesmo, no melhor sentido, pois abusa desse pathos essencial da poesia, prazenteiro e acessível a todos. Se o pesquisador, diante desse poema, vasculha seu jogo conceitual, lendo a complexidade filosófica das imagens; o leitor mirim pode brincar e fruir o fluxo poético-narrativo balizando-o com a sua vida cotidiana. Nisso reside o que, na melhor poesia do século XX, é sua comunicabilidade essencial e seu poder de sedução de novos leitores.

Bandeira, cuja história do porquinho-da-índia poderia ser comparada à de Ruffus, e não Manoel de Barros, é o poeta cuja evocação mais nos ajuda a compreender a poesia de Klamt. Bandeira afirmou algumas vezes que há muitos poemas sem nenhuma "poesia": sem esse "tumulto emocional", esse encanto, essa graça particular; sem o conteúdo da beleza, esse visco espesso e luminoso que escorre dentro das palavras. Isso que, para ele, era inexplicável e se podia perseguir através do texto. 

Fora construir o edifício do poema, e acima de tudo, é necessário jorrar sobre ele essa "poesia", que no caso de Bandeira, e também de Klamt, a meu ver, é a substância da ternura. Uma ternura tão em falta ultimamente, e não só na produção poética. Os leitores que hoje habitam os bancos escolares, cuja sensibilização e educação estética farão diferenças no futuro, deverão se encantar com um livro como Espantosa história de Ruffus, que alia a qualidade literária a uma primorosa edição. O livro foi publicado pela Lábias, com ilustrações de Fernando Lindote e projeto gráfico de Vanessa Schultz. 

 

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O livro: Valdemir Klamt. Espantosa história de Ruffus.

Florianópolis: Lábias Ideias & Edições, 2010.

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dezembro, 2010

 

Telma Scherer, poeta e performer, autora de Rumor da Casa (7 Letras, 2008) e Desconjunto (IEL, 2002). É formada em Filosofia e mestra em Literatura Comparada pela UFRGS.