Observei de início a orelha de Marco Lucchesi, a quarta capa de Antonio Cícero — o livro seria algo de filosófico, linguístico e extremamente grave, profundo e clássico, um mar de Circe a singrar. Deixo a biografia do autor para mais tarde e abro o livro afoita, disposta à viagem que se apresenta.

De início, reparo que Oleg Almeida sente na pele a máxima de Marcel Proust, 'a verdadeira viagem não está em sair à procura de novas paisagens, mas em possuir novos olhos', e assim começa por buscar significâncias — novos olhos — para si e para a sua terra, uma terra de tão-tão-longe, inatingível e inimaginada por seus recém-compatriotas, pátria que guarda as chaves de sua infância e juventude, de sua melancolia, lar dos seus mais queridos.

'Eu nasci muito longe daqui,/ lá no norte severo,/ na terra beata dos hiperbóreos/ além deste mar bravio situada,/ inatingível'. Oleg se apresenta nômade, peregrino, estrangeiro de tudo, e novamente lembro de Marco Lucchesi a avisar de que encontra nele 'outros modos de conjugar exílio e memória, de seu mediterrâneo que são dois'.

Logo em seguida, o poeta conta que 'houve seis cores no meu passado'. Uma dúvida perpassa meu corpo feito um calafrio. Quantos anos terá Oleg? Ora me parecem 30, ora me parecem 80, ora parece que o texto se desprende do tempo. Talvez, eu suponho, para quem amadureceu por detrás da Cortina de Ferro e sobreviveu à queda do regime soviético, Oleg guarde a eternidade em suas mãos, ou, aliás, contenha 'a gota de tinta lilás que balança na ponta da pena divina'.

Segue o livro. Nova dúvida, novo calafrio: de onde mesmo é Oleg? Ele havia me contado algo sobre a Rússia, mas agora já parece ter vivido nos confins da Grécia rural, ou da grande Roma decadente. Diante do livro, já sem registro de região, agora também sem tempo, Oleg não tem espaço e hora. Fora de sua terra natal, não é mais do que um indivíduo comum a se lembrar dos últimos dias de seu regime, do ocaso de sua própria estirpe. O autor não oferece registro de sua pátria verdadeira, pois, como confirmava Descartes, 'quando gastamos tempo demais a viajar, tornamo-nos estrangeiros no nosso próprio país'. Oleg apenas dá pistas sobre o que seria a Bielo-Rússia, através das tintas gregas e romanas, e principalmente, através das tintas que recobrem as casas de sua infância.

Minha maior curiosidade era mesmo de saber como seriam e como viviam as pessoas do lado de lá — terra estranha, misteriosa e intransponível, onde qualquer leitura se fazia impossível ante os símbolos cirílicos. Oleg constrói esse lado-de-lá entre histórias emocionantes e comoventes, identifica a 'Queda' de um regime com a queda de vários outros, Grécia e Roma dentre eles, deixando apenas entrever o que passou. Algo que não é dado a se apreender, apenas se vê, se vive, se sobrevive.

Continuo a leitura, estupefata. A fuga da Grécia, que o poeta retrata, parece predição e profecia, enquanto os jornais falam sobre os PIGs, socorros de bilhões de euros, dinheiro do mundo inteiro para acertar a dívida grega no 'cheque especial'. Corri no mapa, para descobrir se a Bielo-Rússia fazia fronteira com a Grécia (ai, minhas distantes aulas de geografia...), imaginando que os ventos de lá contassem algo ao autor por através dos Muros, esses segredos que atravessam distâncias.

Mas não, o país de Oleg é mesmo muito distante, quase inexistente no mundo possível: não há fotos de suas torres, de suas pontes, de suas enseadas, de suas ruínas, nos jornais de turismo. Há apenas o que Oleg registra, e seu texto 'é' e 'está' onde as palavras assim o dizem.

'Memórias' continua sua alegoria nos dois planos espaço-temporais, reunindo registros pessoais travestidos de ficção, e usando como paisagem um acontecimento histórico que data de uma época bem remota — destruição da próspera cidade de Corinto pelas tropas romanas em 146 a.C. Em Corinto, o poeta guarda seu passado, infância e adolescência vividas em paz e segurança no regime em decadência. Em Alexandria, o presente e o desterro, com todos os desafios de uma viagem que não tem fim.

Mario Quintana contava que 'viajar é mudar o cenário da solidão', e Memórias dum hiperbóreo retrata, à perfeição, exatamente isso: a solidão intrínseca dos viajantes e daqueles que, mesmo estabelecidos em residência fixa, estando fora de seu lar, permanecem vivendo como Ulisses — em eterna viagem.

 

 

 

Trecho do livro

 

VI

 

Quando eu tinha uns treze anos,

as árvores eram altas

e as palavras, sinceras.

Estavam vivos os meus avós,

ainda novos, os pais,

e não faltava, nas redondezas,

quem os achasse dignos de reverência.

Naquele tempo,

toda manhã, em janeiro como em julho,

simbolizava a felicidade:

cedo se levantava o sol,

um pires de moranguinhos já me esperava em cima da mesa,

e lá no telhado, suavemente

turturilhava um casal de pombos.

E eu vivia —

não consumia a vida

nem a deixava puxar-me pelas orelhas —

apenas vivia,

contente com poucas coisas que tinha,

e no lugar dos brinquedos surgiam os livros interessantes:

contos, diálogos e poemas.

E cada vez que a moça mais linda de toda a cidade

passava, de peplo curto

e uma fita purpúrea a segurar os cabelos luxuriantes,

defronte da nossa casa,

soltavam-se os meus olhos do velho papiro

e, fascinados, corriam no seu encalço.

De vagabunda chamavam-na os vizinhos,

e eu, numa blasfêmia inofensiva,

de Chipriana,

tanto o requebro dos seus quadris

exacerbava o meu anseio de ser adulto.

Depois da chuva,

o arco-íris juntava as extremidades do plácido firmamento,

e a janela do quarto, onde dormia,

dava para o mar,

pacato e cristalino feito um riacho.

Harmoniosos eram os nossos dias,

malgrado se sucedessem depressa...

Quanto à morte, ela não existia.

 

 

 

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O livro: Oleg Almeida. Memórias de um hiperbóreo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2010.

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setembro, 2010

 

 

 

 

 

Paula Cajaty (Rio de Janeiro/RJ, 1975). Poeta, em 2008, lançou o primeiro livro, Afrodite in verso. Em 2010, publicou Sexo, tempo e poesia. Outras informações em seu site (clique aqui).
 
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