Liquidificador, segundo o Aurélio: aparelho elétrico para misturar, transformar em pasta ou líquido, ou triturar certos alimentos. Luiz Bras é um liquidificador, não só porque as narrativas de seu Paraíso Líquido vão se dissolvendo uma a uma até chegar ao ambiente denso, pastoso, gomoso, do conto que empresta título ao livro. Não só por triturar alguns alimentos artísticos sólidos e bem definidos com os quais alimentávamos nosso paladar literário, mas, antes de tudo, Luiz Bras é um liquidificador porque, assim como o aparelho elétrico, esse escritor também elétrico, mistura ingredientes diferentes e nos devolve, a nós leitores, um produto novo, homogêneo e bom.

Luiz tem uma proposta clara, tratar temas da ficção científica com procedimentos estilísticos ligados ao pós-modernismo e à chamada "alta literatura". É uma ideia ousada, que teria tudo para fracassar, mas que, nas mãos desse liquidificador hábil, funciona... e bem.

O livro tem treze contos e todos eles são permeados por uma poética ligada ao campo semântico da água e do líquido. Por vezes, lembra A Chuva Imóvel de Walter Campos de Carvalho, guardadas as devidas idiossincrasias. O fato é que nos deparamos aqui com sentenças do tipo: "se você acordasse e olhasse pela janela veria o dilúvio ácido e barroco" (Protagonistas e Figurantes), ou "você veria o incêndio na parede de cristal líquido" (Protagonistas e Figurantes). "Os círculos coloridos atravessaram a pesada nuvem" (Futuro Presente). "Pegando um pedregulho e arremessando com raiva no lago" (Futuro Presente). É como se a água fluísse o tempo todo. Por vezes parece até que o livro vai nos escorrer por entre os dedos. O próprio título de um dos contos é Nuvem de cães-cavalos, além disso, a entidade que assombra o ambiente do conto Paraíso Líquido se chama simplesmente Nuvem. Há ainda a criação de novas palavras que lembram a chuva como chochovenho. Durante a leitura do livro, fiquei pensando como lhe cairia bem de epígrafe o seguinte trecho de um poema de Rodrigo de Haro:

 

                   No fundo da chuva

                   num lugar menos cinzento

                   que a desesperança não aflige

                   um piano continua

                   seu refrão de interrogações

pertubadoras

que tantas cortinas de água

não amainam.

 

Outro aspecto da escrita de Luiz Bras que não pode ser deixado à margem, embora o autor tenha um traço marginal, é o tratamento dado à elaboração formal do texto e à própria palavra em si. Explico-me melhor, em alguns momentos, o que é abordado num conto afeta a própria estrutura e a forma do texto. Daí que, em uma das narrativas, trechos ilegíveis, ou melhor, identificados como ilegíveis, podem conter a chave do mistério. O que não se escreve é tão importante quanto o que se escreve. Em outros relatos, o que chama a atenção é uma experiência tão radical de linguagem que o que é tratado leva a palavra a uma desintegração, ou a uma implosão. Há ainda contos nos quais o léxico de nosso idioma não é capaz de abranger o novo universo inventado pelo autor, daí tantos neologismos, mais notadamente no último conto. É como se novas emoções fossem descobertas (ou relembradas) a partir da criação (ou lembrança) de determinado vocábulo.

Mais acima lembrei Campos de Carvalho. Os dados biográficos de Luiz Brasil, assumidamente inventados, lembraram-me também o Campos de Carvalho, assassino da lógica, de A lua vem da Ásia. O incrível Campos de Carvalho que... mas não aqui, melhor manter o foco. Voltemos ao Luiz Brasil e ao seu livro.

Há histórias interessantíssimas em Paraíso Líquido, mas fiquei com vontade de comentar aqui uma narrativa em especial. Trata-se do conto que abre o livro: Primeiro Contato, que tanto pode se referir ao primeiro contato entre um ser humano e um alienígena, quanto pode se referir ao primeiro contato de uma criança com a vida adulta. É um conto terno, atormentado, triste, que pode levar o leitor desprevenido a compartilhar as lágrimas do protagonista (olha a água aí outra vez). É interessante notar que este texto pode ser visto também como uma síntese de outra das propostas literárias do autor: a literatura como imaginação, invenção, recriação da realidade imediata que está por aí nos oprimindo o tempo inteiro, mas vida de patrulheiro estelar não é mesmo para os fracos... e mais não digo. Chega de lágrimas, acabou chorare.

A essa altura vocês devem estar se perguntando:

— É um livro perfeito, então?

E eu responderia: não leitor, é um excelente livro, ainda assim fica uma ressalva, que pode ser só um ranço academicista meu. Acho que o livro poderia ter ainda mais espaço para a dubiedade. Alguns textos poderiam deixar no ar a dúvida se aquilo que é tratado é mesmo real, ou se é invenção, ou ainda, se é loucura mesmo das personagens. O narrador abriria assim um leque mais amplo de interpretações, o que enriqueceria ainda mais os textos. Entretanto, este é um livro que vislumbra o novo, um solo nunca pisado, a vanguarda. Só por esses motivos já valeria a pena a sua leitura e releitura atenciosa.

Popular e erudito. Literatura de gênero e alta literatura. Coloquial e formal. Um liquidificador unindo elementos por vezes opostos e nos devolvendo um bolo homogêneo e saboroso. Assim é Paraíso Líquido, de Luiz Bras, um autor que foge do óbvio. É bom respirar esses novos ares.

 

 

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O livro: Luiz Bras. Paraíso Líquido. São Paulo: Terracota, 2010.

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dezembro, 2010

 

 

 

 

 

Daniel Lopes. Formado em letras pela UNESP, participa do curso de mestrado em teoria literária na USP. É professor de Literatura e Língua Portuguesa e Espanhola do Colégio Objetivo e da Rede Pública Estadual. Em 2008, lança seu primeiro romance, É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança, pela Editora Os Viralata. Edita o blogue Pianista Boxeador21.

 

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