A arte é o olhar crítico — não só arte engajada, mas um mostrador dos descontentamentos do povo. Ser um artista engajado é um prejuízo para a arte? Sim, subordinar a expressão artística a uma dada ideologia, jogo político. Não o dizer sobre a ideologia e a política. Mas a arte é antes de tudo EXPRESSAR algo de alguma FORMA, em som, palavra, música, objeto, formato, gestos.

Dizem que o comunismo sufocou Maiakóvski. O Estalinismo, certamente. Pois não houve sequer socialismo na URSS, como vai haver 'comunismo'? O socialismo nem o comunismo ou o anarquismo são sistemas perfeitos. São sistemas idealmente igualitários. Melhores que o capitalismo. (O socialismo teoricamente viável, e o comunismo e o anarquismo demasiado utópicos, onde tanto Marx quanto Bakhunin são sonhadores.)

Mesmo num mundo socialista a arte deve ser autônoma e crítica. 'Arte pela arte' não existe: existe arte feita por alguém para um público. Um público que será crítico e parâmetro. Um público que poderá ser despertado ou hostilizado. A simples escolha de uma temática já é política. Pode-se falar sobre borboletas, mas se falarmos sobre a extinção de borboletas por causa do desmatamento, surgem as perguntas: quem está derrubando as árvores? Quem vende e quem compra os troncos? Quem tem o direito de explorar um meio ambiente?

Pois bem, um tema que poucos escritores abordavam com profundidade, em pleno século 19, com as raras exceções de Victor-Hugo, Dickens, Dostoiévski, é a condição da classe trabalhadora. Os romances descreviam ambientes burgueses, festas de debutantes, heróis aristocratas, generais em cavalos brancos, e nada a dizer sobre a vida das copeiras, dos mordomos, dos escudeiros. E falar da classe proletária, era falar de exploração, lei da oferta e da procura, lei do salário, o conflito entre o trabalho e o capital, descrever a miséria. Ou seja, abrir mão do glamour, dos salões sociais, criar uma escrita um tanto quanto crítica e indigesta, como fazia Dostoiévski com seus Crime e Castigo e Os Possessos, e depois Górki e Émile Zola.

Quando Émile Zola entendeu a pretensão de Balzac com suas obras em recortes verticais na sociedade francesa, com personagens de todas as classes sociais e regiões, e sentiu a complexidade das descrições de Stendhal, contudo mais 'enxutas' que as longas inserções e líricas passagens românticas de Victor-Hugo (nos clássicos Les Miserables/Os Miseráveis, e Notre Dame de Paris), ele elaborou uma nova linha de escrita, um estilo profundo, mas sem rebuscamentos, explicando mais sem ser didático, deixando as personagens interpretarem os conceitos, sem precisar expor tudo em longos diálogos.

(O estilo de Zola: no século 20 temos um Truman Capote. Cru e curto. Frases laminares. Sem frescuras. Será que Capote era leitor de Zola?)

A fala popular foi utilizada, mostrando o cotidiano das classes menos educadas, que eram invisíveis aos burgueses de Paris, que viviam num mundo de luxo e gastança, indiferentes às vidas dos mineiros que extraiam o carvão e o gás que aqueciam e iluminavam as belas mansons dos boulevards!

Germinal (1885) faz parte da série de vinte romances Les Rougon-Macquart (escrita de 1871 a 1893), com o subtítulo "História natural e social de uma família no Segundo Império", no período até a derrota francesa para os prussianos-germânicos em 1870, em que as condições do meio e a fisiologia determinam as ações humanas, seus conflitos familiares e sociais.

Da série de romances destacam-se três: L'Assomoir (1877), onde são retratados os pais de Étienne Lantier, o protagonista de Germinal, além da brutalidade de seu irmão Jacques, descrita em A Besta Humana/La Bête humaine (1890), onde as condições internas naturais se somam às condições externas do ambiente físico e social para determinarem as ações das personagens. ("O homem é o que ele come", escreveu Feuerbach, num radical materialismo.) Pouco espaço para abstrações e viagens existenciais (ou existencialistas): as personagens estão em ação, pouco pensam. Reagem aos instintos, lutam pela sobrevivência. Não há lacunas para a metafísica dos intelectuais de torres de marfim. O retrato é cru e áspero. Deglutimos sem vinho o pão duro e escuro da existência.

Em Germinal há o povo faminto das minas e os burgueses indiferentes nas mansões. Assim, um povo da superfície e um povo do subterrâneo. O povo de cima, que explora o povo de baixo. O que lembra algumas 'distopias', tais como A Máquina do Tempo/The Time Machine, 1895, romance de H. G. Wells, onde há um povo evoluído, os Eloi, e um povo bárbaro, os Morlocks, e também o filme Demolition Man, 1993, do diretor Marco Brambilla, com Stallone, Snipes e Sandra Bullock, onde no futuro a cidade de Los Angeles (San Angeles, em 2032) tem um povo de educados cidadãos numa maquilagem fascista, mantendo a distância, nos subsolos, uma turma de marginais, punks, desabrigados, todos os excluídos do submundo. Em ambas as distopias (e também em Brave New World, um pouco diferente) existe a beleza, porque existe a pobreza mantida oculta — alguém precisa fazer o trabalho sujo: os miseráveis sem opção. Ou trabalham, ou morrem de fome.

(Na utopia de Marx e Engels, é diferente. Não há uma divisão de trabalho. Exceção talvez para os médicos, um serviço altamente especializado. Todos os outros trabalhos podem ser coletivizados em rodízio. Um dia o cidadão é professor, no outro dia é policial, e noutro é gari. Sem problemas. Ele não será nem professor, nem policial, nem gari. Será um cidadão que executa em rodízio as funções de ensinar, vigiar e limpar. Não terá uma personalidade ligada a uma função. Será um ser humano capaz de executar várias funções para o bem coletivo.)

Para retratar (e não ficar explicando), Zola ressalta características nas personagens, que passam a agir por seus condicionamentos, ou guiados por idealismos. Assim o velho mineiro Boa Morte (Bonnemort) é o resignado, o cético, acha que a exploração nunca acaba, "do jeito que sempre foi, sempre será". Enquanto o taverneiro (ex-operário) é um reformista, fazendo pressão para que os patrões concordem em melhorar as condições do povo, sem acreditar que o povo possa chegar ao poder. Mas o maquinista russo Suvarin é o anarquista, seguidor de Bukharin, profeta da luta contra os poderosos, "destruir tudo para mudar tudo", enquanto o retórico Pluchart é o representante da Internacional Socialista, tentando organizar a revolução (mas a Internacional se destrói internamente com as querelas entre socialistas e anarquistas).

Meio a todos esses obcecados surge um Étienne Lantier, em busca de trabalho, sem pão e sem abrigo. Trabalha por necessidade e logo percebe a exploração descarada que suga a saúde e a dignidade dos mineiros. Passa a ser um revolucionário, que tenta entender Marx, e também Proudhon, Lassalle, de forma a conquistar a liderança dos explorados, no sentido de enfrentar os patrões. Estes são mostrados em suas mansões, em suas vidas frívolas, em infidelidades e caprichos, em caridades pseudo-religiosas, em concorrências, enquanto o povo não tem outra opção senão ser explorado.

Zola escreve fazendo um 'recorte na sociedade', de cima para baixo, de baixo para cima, as ações que determinam outras ações, a 'luta de classes' sem abstrações! Ricos, classe média, pobres, todos interligados num jogo onde poucos ganham, e muitos perdem. O mesmo que Balzac ousou, o mesmo que Flaubert provocou, causando incômodos em muitos 'fidalgos'. Aqui no Brasil tal Literatura também causou polêmica. São exemplos Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo (a fase O Tempo e o Vento), Cyro dos Anjos (com o famoso Montanha), onde os entrelaçamentos entre exploração e política, pobreza e hipocrisia, ficam claramente expostos. Chagas à mostra.

Os patrões igualmente são representantes dos 'estilos patronais'. Deneulin (da mina Jean-Bart) é o patrão 'paternal', que coloca a culpa sobre a concorrência, enquanto Hennebeau (da mina Voreaux, junto a Montsou) é o 'técnico', que diz nada decidir, também 'recebe ordens'. Enquanto Deneulin tenta 'emocionar' os empregados com a sombria ameaça de 'falência', outros patrões empregam a tática da 'cooptação': atrair o líder grevista, transformar o revoltado num 'pelego', na figura premonitória do 'sindicalista', como é caso do mineiro Chaval, miserável igual aos outros, mas devido a uma rivalidade com Étienne (pois ambos amam a mesma mocinha, a Catherine), não hesita em manobrar os mineiros segundo os desejos dos patrões.

Mas o ápice do romance é quando a greve se espalha na região mineradora. Os operários inflamados pela revolta se voltam contra os que insistem em trabalhar (os 'traidores') e percorrem as minas em atos de vandalismo, quando a violência da revolução escapa ao controle dos próprios revolucionários — subitamente Étienne percebe essa verdade. Pressionado pelo moderado Rasseneuer e pelo exaltado Suvarin, o líder Étienne precisa lutar contra as divisões dentro do próprio movimento operário. Principalmente contra os operários que seguem cegamente as ordens dos patrões (o exemplo é Quandieu, da mina Mirou), que fragilizam a luta em prol da coletividade.

A greve dura mais de dois meses. As provisões dos mineiros se esgotam, o dinheiro no caixa coletivo acaba, a fome e a miséria se mostram vergonhosamente, os operários afundam no rancor. Enquanto Étienne luta para manter o movimento, luta consigo mesmo para garantir a liderança — acha que o povo não está preparado, que o povo é violento, é atrasado. Em conversas com Rasseneuer e Suvarin, o jovem Étienne vai percebendo que a edificação do socialismo só é possível com a educação dos empregados, no sentido de eles mesmos assumirem a produção, serem os patrões de si mesmos, os administradores do coletivo.

Étienne medita, ainda acreditando que "a resistência era possível, que o capital iria destruir a si próprio diante do heróico suicídio do trabalho", enquanto se esconde devido à forte repressão das forças militares, vendo nos soldados "os homens do povo lutando contra o povo", e em como atrair os soldados para a luta proletária. "Como seria fácil a revolução triunfar se o exército passasse para o lado do povo! Bastava que o operário e o camponês, nas casernas, se lembrassem da sua origem". Uma união de soldados, operários e camponeses que foi vitoriosa na Revolução Russa — com a força dos Sovietes — até ser sufocada pela contra-revolução burocrática estalinista.

Aí sim, com certeza, a Revolução devorou Maiakóvski, inevitavelmente. Escrever para as massas seria 'escrever igual às massas' ou procurar aumentar o nível cognitivo-simbólico do povo? Maiakóvski era difícil para o povo? Zola queria ser compreendido pelo povo? A Literatura enquanto espelho — o naturalismo enquanto 'retrato da crua realidade' — sempre sofreu com a incompreensão do próprio povo (enquanto os burgueses, os consumidores de livros, passam de um estilo a outro), uma vez que — como provam as novelas 'globais' das oito horas — o povo prefere a 'água com açúcar' da mesmice.

Sem educação dos cidadãos para a responsabilidade e para autonomia não haverá sequer o 'eleitor' das ditas democracias liberais, mas um mero 'aplicador de impressões digitais em cédulas eleitorais', um autômato guiado pela programação televisiva e pela propaganda oficial.

O interessante em Germinal, é que Zola deixa um final onde ainda viceja, mesmo a brotar no rancor, uma pálida esperança: o povo está consciente da luta.

 

 

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O livro: Émile Zola. Germinal. São Paulo: Abril, 1979.

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junho, 2010

 

 

 

 

 

Leonardo de Magalhaens (Leonardo Magalhães Barbosa). Crítico literário, escritor, tradutor, escreve e traduz desde os 15 anos. Tem engavetados três volumes de poesia e três volumes de contos, além de dedicar-se a um ciclo de romances em seis volumes. Divulga sua contribuição ensaística de crítica literária, especializando-se em autores vivos, demasiadamente vivos. Ocupa-se da promoção de eventos para a OPA! (Oficina de Produção Artística), ONG da qual é o atual Secretário. Belorizontino, atualmente, estuda Letras na FALE/UFMG, com ênfase em tradução. Escreve o blogue Leitura e Escrita e Traduções.