IV – Argumento 3

 

A mitologia participa da construção de mundos. Borges construiu o seu mundo literário sedimentando-o em amplas bases míticas, como temos tentado mostrar. Até aqui, temos argumentado que o mito, para Borges, era um exercício de erudição com motivos existenciais literários, mas era também um catalisador de repetições, um eterno retorno a fatos primordiais (históricos ou não). Continuaremos nossa argumentação, destacando um último elemento na edificação mítica do mundo borgeano: o mito em seu sentido deslocado simbólico, construção de uma linguagem arquetípica. É claro que esta tríplice disposição dos argumentos é uma maneira didática de explorarmos o assunto. Se o mito será tratado como linguagem simbólica neste terceiro e último argumento, não significa absolutamente que a linguagem não esteja presente nos dois primeiros, pois da linguagem não podemos escapar: ela é onipresente em todos os acontecimentos da vida, e nada podemos fazer sem ela: nem história, nem literatura, nem ciência, nada. Com isto, dizemos que poderíamos unir os três argumentos em um só, pois eles não são estanques, autônomos e dissociados uns dos outros, como pode parecer, senão vejamos: em nosso primeiro argumento, a preocupação de Borges com escritores e temas míticos é recorrente, i.e, percorre toda a sua obra. Ora, a recorrência é o nosso segundo argumento, que temos utilizado para confirmar o eterno retorno de histórias já contadas; isto pressupõe uma história original, um arquétipo, símbolo para significações outras, míticas, base de nosso terceiro argumento.

Tanto Borges quanto Barthes generalizam o mito. Diz o primeiro: "Porque no princípio da literatura está o mito, e assim mesmo no fim" (OC, II, p. 177), e ainda em El idioma de los argentinos: "Poesia é o descobrimento de mitos ou o experimentá-los outra vez com intimidade" (1999, p. 66). Diz o segundo (1993, p. 131):

 

O mito é uma fala [...] já que o mito é uma fala, tudo pode constituir um mito, desde que seja suscetível de ser julgado por um discurso. O mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere [...] Logo, tudo pode ser um mito? Sim, julgo que sim, pois o universo é infinitamente sugestivo.

 

Borges fez uso da Buenos Aires histórica para mitificá-la pela linguagem (poesia, ensaios e contos). Nesse sentido, entendemos que transformou Buenos Aires, suas ruas, seus bairros, suas fronteiras e seus personagens em uma cidade de espaço e tempo míticos, uma cidade "atemporal". Nos seus escritos de juventude, Borges, encantado pelo retorno à "casa primeira da infância", relaciona as suas próprias caminhadas pelos espaços da cidade com uma "eternidade" e uma "perenidade" acontecidas "por dentro", i.e, numa psicologia do tempo e na lógica de sua linguagem. Em Nueva refutación del tiempo, Borges assim registra a sua experiência em relação à sua cidade natal:

 

 

No quiero significar así el barrio mio, el preciso âmbito de la infância, sino sus todavia misteriosas inmediaciones: confín que he poseído entero en palabras y poco en realidad, vecino y mitológico a un tiempo. El revés de lo conocido, su espalda, son para mi esas calles penúltimas, casi tan efectivamente ignoradas como el soterrado cimiento de nuestra casa o nuestro invisible esqueleto. [...] La irrealizaba su mesma tipicidad. La calle era de casas bajas e aunque su primeira significación fuera de pobreza, la segunda era ciertamente de dicha. Era de lo más pobre y de lo más lindo. Ninguma casa se animaba a la calle; la higuera oscurecía sobre la ochava; los portoncitos — más altos que las líneas estiradas de las paredes — parecían obrados en la misma sustância infinita de la noche. La vereda era escarpada sobre la calle, la calle era de barro elemental, barro de América no conquistado aún. Al fondo, el callejón, ya pampeano, se desmoronaba hacia al Maldonado. Sobre la tierra turbia y caótica, uma tapia rosada parecia no hospedar luz de luna, sino efundir luz íntima [...] Conjecturé esa fecha: época reciente en otros países, pero ya remota en este cambiadizo lado del mundo [...] pero lo más seguro es que en esse ya vertiginoso silencio no hubo más ruído que el también intemporal de los grillos [...] Lo escribo, ahora, así: Esa pura representación de hechos homogêneos — noche en serenidad, parecita límpida, olor provinciano de la madreselva, barro fundamental — no es meramente idêntica a la que hubo en esa esquina hace tantos años; es sin parecidos ni repeticiones, la misma. El tiempo, si podemos intuir esa identidad, es uma delusión: la indiferencia y inseparabilidad de un momento de su aparente ayer y otro de su aparente hoy, basta para desintegrar-lo [...] (OC, II, p. 142-1438.

 

         O sentido que advém da imagem formada pelas palavras (veja-se os termos em destaque) é similar ao que evocamos ao lembrarmo-nos, por exemplo, de uma expressão como Roma, cidade eterna. O sentido mítico do relato se forma por uma análise conjunta de suas partes constituintes. Neste sentido, os adjetivos utilizados dão a idéia do todo. São eles: "misteriosas" (imediações), "mitológico", "penúltimas", "ignoradas", "soterrado" (cimento), (barro) "elemental", (terra) "turva e caótica", substância "infinita" (da noite), "vertiginoso" (silêncio), ruído "intemporal" (dos grilos), barro "fundamental", (América) "não conquistada" e pelo verbo conjugado "irrealizava". Borges mitificou Buenos Aires semiologicamente, pois segundo Barthes (1993, p. 162-163),

 

a função do mito é transformar uma intenção histórica em natureza, uma contingência em eternidade [...] O que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido, por mais longe que se recue no tempo, pela maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural deste real. [...] o mito é constituído pela eliminação da qualidade histórica das coisas: nele, as coisas perdem a lembrança da sua produção. [...] A função do mito é evacuar o real.

           

Barthes, em uma análise semiológica de fundo saussureano, considera o mito como deslocado em relação a um outro sistema semiológico do qual se serve: a língua, sendo o mito um "sistema semiológico segundo". Assim, "o que é signo (isto é, totalidade associativa de um conceito e de uma imagem) no primeiro sistema, transforma-se em simples significante no segundo9" (1993, p. 136).

Em Borges, o realismo da cidade de Buenos Aires é transfigurado pela linguagem simbólica. É como se ele presenciasse um momento de criação da cidade (ou do bairro) de Buenos Aires de um caos primordial, in illo tempore, como nos relatos míticos cosmogônicos, só que agora revivificado, pois a noite é escura, o silêncio é vertiginoso e o tempo é remoto. É assim que o barro, a rua, o grilo, a esquina, os portões e as casas perdem a sua concretude histórica, física, geográfica ou arquitetônica, esvaziam-se destes sentidos, perdem a sua memória para tomarem outra significação, visto que, para Borges, a perda da memória é que nos faz engendrar os símbolos. E o simbolismo

 

acrescenta um novo valor a um objeto ou a uma ação, sem por isso prejudicar seus valores próprios e imediatos. Aplicado a um objeto ou a uma ação, o simbolismo os torna "abertos". O pensamento simbólico faz "explodir" a realidade imediata, mas sem diminuí-la ou desvalorizá-la; na sua perspectiva, o universo não é fechado, nenhum objeto é isolado em sua própria existencialidade: tudo permanece junto, através de um sistema preciso de correspondências e assimilações (ELIADE, 1991, p.178).

 

E em nota de rodapé, na mesma página, Eliade reitera: "Para se compreender bem a transformação do mundo pelo símbolo, basta lembrar a dialética da hierofania: um objeto torna-se sagrado mesmo permanecendo ele próprio"10.

Essa transformação se faz pelo que Frye denomina deslocação11. A linguagem utilizada tem o objetivo de

 

convencionalizar o conteúdo numa direção idealizada. O princípio fundamental da deslocação é este: o que pode ser identificado metaforicamente num mito pode apenas ser vinculado, na estória romanesca, por alguma forma de símile: analogia, associação significativa, imagem incidental agregada, e semelhantes (FRYE, 1973, p. 138-139).

 

Se estamos nos referindo aqui à linguagem como constituinte das imagens míticas em Borges, este nos alerta a respeito da precariedade de tal instrumento, cuja índole é sucessiva, incapaz de raciocinar o eterno, o intemporal (OC, II, p. 142), todavia não possuímos outro instrumento. E nem Borges, que utilizou-se dele para mitificar Buenos Aires no seu poema "Fundação mítica de Buenos Aires".

Retomando Barthes, Borges nos "fala" de uma Buenos Aires eterna, cuja tradição oral (e escrita) assimilou e propagou nos discursos (o que fazemos neste ensaio é propagar o mito). "Para Borges Ginebra fue (...) la posibilidad de mirar de otro modo su lugar de procedencia, de recorrer con la memoria la ciudad lejana, esa Buenos Aires que iría adquiriendo rasgos míticos" (FOSTER, 1999  apud PARAIZO, ano ?, p. 2).

 

Na cidade mítica deambulada por Borges, os pontos privilegiados encontram-se preferencialmente nas fronteiras em que cidade e campo se limitam ou se invadem. Nas margens entre a cidade real e a imaginada, o poeta vai procurando identificar as marcas de um passado que o fascina [...]. Da mesma forma que a escrita de Borges se constrói com fragmentos retirados de outros contextos, sua cidade vai se formar de um limiar de onde não se pode destacar um fragmento que não esteja contaminado por uma dupla inscrição, território em que os ecos de outros tempos e lugares se fazem ouvir pelas ruas (PARAIZO, ano ?, p. 8)

 

Em Borges, as ruas "são mais largas que o tempo", "largas como a espera", "penúltimas", as distâncias são "imortais", os poentes têm uma "insaciável eternidade", as margens dão aos arredores suas "aventuras infinitas", as praças são agravadas pela "noite sem dono", a noite universal é "funda", os arrabaldes são "cansados", "despedaçados", "desmantelados do mundo", "últimos", a planície é "perdurável", "inesgotável", "interminável", os subúrbios do Sul têm "fatigadas léguas incessantes", os becos são "mais largos que o tempo", "fundos", as encruzilhadas escuras lançam "quatro infinitas distâncias", o bairro é uma "esquina final", os campos são "últimos", a casa (de Borges) é um "labirinto sem saída"12.

O arrabalde é a extremidade de um bairro, um espaço distante e fora do recinto de um povoado. Em Arrabal (OC, I, p. 32) vemos mais um exemplo da forma como Borges mitifica este espaço pela ênfase no seu caráter repetitivo:

 

El arrabal es el reflejo de nuestro tedio.
Mis pasos claudicaron
cuando iban a pisar el horizonte
y quedé entre las casas,
cuadriculadas en manzanas
diferentes e iguales
como si fueran todas ellas
monótonos recuerdos repetidos
de una sola manzana
[...]
13

Assim as noites nos arrabaldes, míticas e eternas, e o próprio pampa, amplo, sem fim para aquele que o vê, como se olhasse para o mar. A idéia de uma imensidão do pampa converge nele o espaço e o tempo, pois nele tempo e espaço se tornam, respectivamente, eternos e infinitos. A comparação do pampa com o mar não é fortuita, pois o último é talvez o símbolo mítico maior: o mar primordial:

 

Antes que el sueño (o el terror) tejiera

mitologias y cosmogonias,

antes que el tiempo se acuñara en dias,

el mar, el siempre mar, ya estaba y era.

¿Quién es el mar? ¿Quién es aquel violento

Y antiguo ser que roel os pilares

de la tierra y es uno y muchos mares

y abismo y resplandor y azar y viento? [...]

 

         Em La noche cíclica (OC, II, p. 241) Borges reúne muitos elementos da  mitologia (e cultura) grega, que se propagarão ciclicamente, assim como o seu próprio fazer literário, cujos temas (a eternidade, o tempo, o espaço, o labirinto, o eterno retorno, a teologia, a metafísica, o idealismo) vão e voltam "incessantemente", como já temos frisado. A cidade se eterniza e por conseqüência se mitifica em ruas que perpetuam biografias e a história de seu país, esquinas remotas do Norte, do Sul14 e do Oeste. Reproduzimos o poema porque seu contorno mítico cumpre bem as pretensões de nosso argumento:

 

Lo supieron los árduos alumnos de Pitágoras:

los astros y los hombres vuelven ciclicamente;

los átomos fatales repetirán la urgente

Afrodita de oro, los tebanos, las ágoras.

En edades futuras oprimirá el centauro

con el casco solípedo el pecho del lapita;

cuando Roma sea polvo, gemirá en la infinita

noche de su palácio fétido el minotauro [...]

No sé si volveremos en un ciclo segundo

como vuelven las cifras de una fracción periódica;

pero sé que una oscura rotación pitagórica

noche a noche me deja en un lugar del mundo

que es de los arrabales. Una esquina remota

que puede ser del Norte, del Sur o del Oeste,

pero que tiene siempre una tapia celeste,

una higuera sombria y una vereda rota.

Ahí está Buenos Aires. El tiempo que a los hombres

trae el amor o el oro, a mí apenas me deja

esta rosa apagada, esta vana madeja

de calles que repiten los pretéritos nombres

de mi sangre: Laprida, Cabrera, Soler, Suares...

nombres que retumban (ya secretas) las dianas,

las repúblicas, los caballos y las mañanas,

las felices victorias, las muertes militares.

Las plazas agravadas por la noche sin dueño

son los pátios profundos de un árido palácio

y las calles unânimes que engendran el espacio

son corredores de vago miedo y de sueño

Vuelve la noche côncava que descifró Anaxágoras;

vuelve mi  carne humana la eternidad constante

y el recuerdo ¿el proyecto? de un poema incessante:

"Lo supieron los árduos alumnos de Pitágoras..."

                   

Assim como Buenos Aires, outros elementos tomarão o papel de "arquétipos" na literatura borgeana. Frye afirma que o arquétipo é "uma imagem típica ou recorrente. [...] um símbolo que liga um poema a outro e assim ajuda a unificar e integrar nossa experiência literária" (1973, p. 101). Na cultura dos pampas o arquétipo maior é o do gaúcho, mas Borges não o mitificou. Quando Borges começa a produzir seus escritos, na década de 1920, o gaúcho já estava devidamente mitificado pela literatura argentina nas figuras de Martin Fierro, de Hernandez, Santos Vega, de Rafael Obligado (e também Juan Moreira, de Eduardo Gutiérrez). Mas Borges ratifica o mito, quando afirma:

 

Qualquer paisano é um pouco de Martin Fierro qualquer compadre já é um pouco possível do arquetípico personagem dessa novela [...] Mas Buenos Aires, pese aos dois milhões de destinos individuais que lhe abarrotam permanecerá sem voz e deserto, enquanto algum símbolo, não lhe povoa. A província sim está povoada: ali estão Santos Vega e o gaúcho Cruz e Martin Fierro, possibilidades de deuses. A cidade segue à espera de uma poetização (INVENTIVA CONTRA O ARRABALERO, p. 4, texto avulso)15.

 

(Como vimos, o próprio Borges se encarregou de poetizá-la).

 

Para Barrenechea (2000, p. 29), "el mismo amor al peligro que les hizo fijarse en la figura del compadrito, los llevó a buscar en Entre Ríos, el Uruguay y la zona fronteriza del Brasil el mítico lugar del coraje y la plenitude de la vida". O gaúcho (guapos, compadritos, malevos) é arquétipo e símbolo da coragem, da valentia e da honra. Os compadritos mortos (OC, II, p. 328) são sombras vãs nas eternas altercações com sombras irmãs ou com a fome, personagem cuja imagem perdura em um modo de andar, no dedilhado das cordas de uma guitarra, em um rosto, um assobio, em pobres coisas e obscuras glórias. O compadrito é mais do que um tipo argentino determinado historicamente; ele mitifica-se até em apócrifas histórias, na recuperação de um modo de ser, na cristalização de uma imagem por futuras gerações. Em Los gaúchos (OC, II, p. 379), Borges afirma que eles "morían y mataban con inocência"; em nosso entender uma autêntica mitificação que isenta os gaúchos de qualquer culpa por qualquer morte, no sentido judicial da questão, visto que os duelos eram símbolo de valentia e coragem, uma moralidade tipicamente gaúcha, que fazia com que lutassem "dentro de sua lei", a lei da honra. Na interminable llanura "se enfrentará para morir Martin Fierro con el Moreno, en una pelea que parece de todos los tiempos y de todos los lugares porque es el eterno enfrentar-se del hombre con su destino" (BARRENECHEA, 2000, p. 45). Também El gaucho é uma confirmação desse arquétipo:

 

Hijo de algún confín de la llanura

abierta, Elemental, casi secreta,

tiraba el firme lazo que sujeta

al firme toro de cerviz oscura

 

Se batió con el índio y con el godo,

Murió en reyertas de baraja y taba;

dio su vida a la pátria, que ignoraba,   

y así perdiendo, fue perdiendo todo.

 

Hoy es polvo de tiempo y de planeta;

nombres no quedan, pero el nombre dura.

Fue tantos otros y hoy es una quieta

pieza que mueve la literatura.

 

Fue el matrero, el sargento y la partida.

Fue el que cruzó la heróica cordillera.

Fue soldado de Urquiza o de Rivera,

lo mismo da. Fue el que mató a Laprida.

 

Dios le quedaba lejos. Professaron

la antigua fe del hierro y del coraje,

que no consiente súplicas ni gaje.

Por esa fe murieron y mataron.

 

En los azares de la motonera

Murió por el color de una divisa;

fue el que no pidió nada, ni siquiera

la gloria, que es estrépito y ceniza.

 

Fue el hombre gris que, oscuro en la pausada

penumbra del galpón, sueña y matea,

mientras en el Oriente ya clarea

la luz de la desierta madrugada.

 

Nunca dijo: Soy gaucho. Fue su suerte

no imaginar la suerte de los otros.

No menos ignorante que nosotros,

no menos solitário, entró en la muerte.

                                  

         O arquétipo é um símbolo, e

 

um símbolo como o mar ou a charneca não pode permanecer dentro de Conrad ou de Hardy; tem de expandir-se, por sobre muitas obras, até chegar a um símbolo arquetípico, pertencente à literatura como um todo. Moby Dick não pode permanecer no romance de Melville: engloba-se em nossa experiência imaginativa de leviatãs e dragões marinhos, do Velho Testamento para cá (FRYE, 1973, p. 102).

 

            É nesse sentido que o gaúcho rompeu as fronteiras argentinas para penetrar no Brasil, na obra do romântico José de Alencar (O gaúcho).

         Como um último exemplo de arquétipos, citamos o tango, o truco e as armas16. Do primeiro indicamos o poema "El tango" (OC, II, 266), importante como evidência do que estamos propondo. Borges considera tanto o tango quanto o truco pertencentes à mitologia argentina (OC, I, p. 187). Do truco ele diz (OC, I, p. 146-147):

 

¿Qué es el truco para un ejercitado en él, sino una costumbre? Mírese también a lo rememorativo del juego, a su afición por fórmulas tradicionales. Todo jugador, en verdad, no hace ya más que reincidir em bazas remotas. Su juego es una repetición de juegos passados, vale decir, de ratos de vivires passados. Generaciones ya invisibles de criollos están como enterradas vivas en él: son él, podemos afirmar sin metáfora. Se trasluce que el tiempo es una fición, por esse pensar. Así, desde os laberintos de cartón pintado del truco, nos hemos acercado a la metafísica: única justificación y finalidad de todos los temas17.

 

Em alguns escritos de Borges as armas também cumprem a função arquetípica de repetir feitos antigos. É assim que em Espadas (OC, II, p. 461) permanece "a ousadia da destra viril" em que "as velhas guerras andam pelo verso, que é a única memória". Em Mutaciones (OC, II, p. 176), lemos: "Cruz, lazo y flecha, viejos utensilios del hombre, hoy rebajados o elevados a símbolos; no sé por qué me maravillan, cuando no hay en la tierra una sola cosa que el olvido no borre o que la memória no altere y cuando nadie sabe en qué imágenes lo traducirá el porvenir". Talvez seja a maravilha do mito, que tem a marca da eternidade e da perenidade, que é potência para novas cosmogonias e criações, fundamento de novas significações e símbolos, de novas linguagens, de novas artes. In memoriam JFK (OC, II, p. 231) e El puñal (OC, II, p. 327), o que temos é uma bala que se repete no tempo, transmigrada em outras formas remotas: um cordão de seda, uma fuzilaria, um punhal, os cravos e a madeira da cruz, um veneno, um copo.

Para completar este ponto, uma citação final:

 

Remotas en el tiempo y en el espacio, las historias que he congregado son una sola; el protagonista es eterno, y el receloso peón que pasa tres dias ante una puerta que da a un último patio es, aunque venido a menos, el mismo que, con dos arcos, um lazo hecho de crin y un alfanje, estuvo a punto de arrasar y borrar, bajo los cascos del caballo estepario, el reino más antiguo del mundo [...] Los centauros vencidos por los lapitas, la muerte del pastor de ovejas Abel a manos de Caim, que era labrador, la derrota de la caballería de Napoleón por la infantería británica em Waterllo, son emblemas y sombras de ese destino (OC, I, p. 153-154).

 

 

V  - CONCLUSÃO

 

         Este ensaio deve ser lido sob a significação primeira da palavra, i.e, uma tentativa. O que tentamos fazer foi destacar o mito em Borges. Dada a extensão de sua obra e o fato de que este trabalho adveio de um primeiro contato nosso com ela, é possível que tenhamos incorrido em imprecisões e certo que deixamos em aberto muitas outras variantes do nosso tema. Argumentamos que em toda a produção literária do escritor argentino, o mito está presente. Este foi considerado em três sentidos: em seu sentido original religioso ou lendário, geralmente como referenciais especulativo-eruditos de Borges, especialmente nos ensaios sobre textos de autores alheios; b) como uma das formas (não-religiosas) de organização dos escritos borgeanos: uma escrita circular e repetitiva de fatos primordiais, e c) em seu sentido deslocado simbólico como construção de linguagem baseada em determinados arquétipos, isto é, elementos com uma forma cristalizada de sentido.

         Procuramos mostrar que o interesse de Borges pelos mitos foi essencialmente literário e não religioso e percorre toda a sua obra, desde Fervor de Buenos Aires (1923) até O informe de Brodie (1970). Muitos mitos aparecem nas referências de Borges a obras de outros autores e também na sua própria obra. Talvez o interesse de Borges pelos mitos tenha a justificação no fato de que estes trazem em si mesmos a marca do tempo, tema maior das preocupações metafísicas de Borges

Argumentamos também que a organização dos escritos de Borges (ensaios, contos, poemas) tem a característica maior do mito: a sua recorrência. E é por este motivo que no escritor a repetição e a reescritura de histórias e a reiterância na discussão de certos assuntos que lhe eram peculiares (como o eterno retorno, os labirintos, os espelhos, a metafísica, o idealismo, a linguagem, entre tantos outros), tiveram lugar destacado.

Mostramos, finalmente, que em Borges o mito é uma construção de linguagem simbólica, baseada em arquétipos. Assim, Buenos Aires, o Sur, o gaúcho, o tango, o truco e as armas foram exemplos destes arquétipos na construção mítica do escritor.
 
 

Notas

 

8 Os grifos são nossos.

 

9 Para Saussure, a língua compõe-se de três elementos: o significante (imagem acústica de ordem psíquica), o significado (o conceito) e o signo (relação entre o conceito e a imagem), i.e, a palavra. Barthes reconhece que o mito começa onde termina a língua, isto é, no signo, por isso é um sistema semiológico segundo. A explicação de Barthes para o sistema mítico não é simples, pois os termos se embaralham muito na sua argumentação, e é preciso reiteradas leituras para compreendê-lo. O que faremos aqui é tentar resumir o sistema mítico proposto por Barthes: o que no sistema lingüístico ele denomina sentido, no plano mítico chama de forma; o conceito permanece conceito nos dois sistemas, e o signo do sistema lingüístico torna-se significação para o sistema mítico. Barthes chama ao primeiro sistema de linguagem-objeto e ao segundo sistema metalinguagem.

 

10 Claro que Eliade trata dos mitos em seus contextos religiosos (note-se a importância do adjetivo sagrado), o que não é o caso de Borges.

 

11 Estamos aproveitando o termo usado por Frye (1973, p. 138), por ele responder à maneira como entendemos a realização mítica no relato de Borges, isto é, pela deslocação de um sentido realista para um sentido metafórico ou simbólico. Frye concebe a deslocação num contexto diferente, i.e, aplicada na análise de ficções "realistas", que ele classifica de romances e estórias romanescas. Por fugir das finalidades deste ensaio, não nos interessa elucidarmos estas duas classificações.

 

12 Para as fontes dos adjetivos destacados, veja-se Barrenechea (op. cit., p. 23-28).

 

13 Os grifos são nossos.

 

14 Para uma visão específica do mito do Sur borgiano, consulte-se o artigo de Marlova Gonsales Aseff, "Borges e o Sur mítico", in Fragmentos (2006, p. 167-177 – ver bibliografia completa no final do trabalho). Na página 176, a autora afirma: "Sur é por excelência o espaço mítico dos gaúchos".

 

15 "Invectiva contra el arrabalero" é um ensaio pertencente a Tamaño de mi esperanza, texto escrito por Borges em 1926, que não consta nas Obras completas que utilizamos para este trabalho. A tradução é nossa.

 

16 Para um estudo interessante sobre as cicatrizes deixadas pelas armas dos gaúchos, compadritos e guapos, consulte-se "A marca da faca: cicatrizes como signos em Borges", de Daniel Balderston, in Literatura e história na América Latina [versão eletrônica], p. 198-208. Ver bibliografia completa no final do trabalho. Na versão consultada falta a página 203.

 

17 Os grifos são nossos.

 

 

 

Referências

 

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ASEFF, Marlova Gonsales. Borges e o Sur mítico. In Fragmentos – Revista de língua e literatura estrangeiras: Jorge Luis Borges; Walter Carlos Costa (org.) Florianópolis: Editora da UFSC, 2006.

 

BARRENECHEA, Ana Maria. La expressión de la irrealidad em la obra de Jorge Luis Borges e outros ensayos. Buenos Aires: Ediciones Del Cifrado, 2000.

 

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BORGES, Jorge Luis. El idioma de los argentinos. Madri: Alianza Editorial, 1999.

 

__________________ . Obras completas. Vol. I [1923-1949], 3.ed. Barcelona: Emecé Editores, 1996.

 

__________________ . Obras completas. Vol. II [1952-1972], 4.ed. Barcelona: Emecé Editores, 1996.

 

CAMPBELL, Joseph. Mitologia na vida moderna. Tradução de Luiz Paulo Guanabara. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002.

 

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CRUZ, Cláudio. Nas pegadas de Marcos: notas a um conto de Borges. In Fragmentos —  Revista de língua e literatura estrangeiras: Jorge Luis Borges. Walter Carlos Costa (org.). Florianópolis: Editora da UFSC, 2006.

 

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução Pola Civelli, 6.ed.. São Paulo: Perspectiva, 2007.

 

___________________ Imagens e símbolos: ensaios sobre o simbolismo mágico-religioso. Tradução de Sonia Cristina Tamer. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

 

FRYE, Northop. Anatomia da crítica. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973.

 

PARAIZO, Mariângela de Andrade. As cidades folheadas de Borges e de Benjamin. Disponível em: <http://www.unigran.br/interletras/ed_anteriores/n5/arquivos/v5/ASCIDADESFOLHEADASDEBORGESEDEBENJAMINrevisado.pdf> Acesso em 29 ago. 2009.

 

 

 

Dicionários

 

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Gran diccionario español-portugués português-espanhol. Madrid: Espasa Calpe, 2001. Disponível em: <http://www.wordreference.com/espt/> Acesso em 29 ago. 2009.

 

 
 
 
junho, 2010
 
 
 
 
Carlos Augusto de Negreiros (São Lourenço/MG). Formado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas/SP (1986), foi para Florianópolis, em 1987, onde atuou como pastor auxiliar até 1989, quando se licenciou do ministério. Na capital catarinense, trabalhou muitos anos no setor comercial de empresas de informática (softwares). Voltou aos estudos, formando-se em Letras-Português, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em 2007. Atualmente, faz Mestrado em Literatura na mesma Universidade. É autor do livro de contos João, papéis e outras estórias (Editora da UFSC), e tem um romance inédito, O norte é pra lá?.