Talvez apenas em sonhos é que os deuses possam morrer, mortos a tiros pelos homens.

                                                                                             (como em Ragnarok)

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

I - INTRODUÇÃO

 

Houve na história argentina (séculos XIX e XX) fatos concretos que nos permitiram conhecer especificamente alguns de seus personagens (e seu ethos): os gaúchos, os criollos, os compadritos, guapos, malevos, as lutas com cuchillos (e demonstrações de valentia, coragem e covardia), os sainetes, Buenos Aires com suas ruas, manzanas, arrabaldes, bairros e orillas, o pampa, o Sul e o Norte, seu cinema e seus escritores. Dentre estes, Borges, o maior.

Jorge Luis Borges produziu abundantemente, racionalizou e ficcionalizou sobre muitos temas, dando espaço em seus escritos para considerações acerca dos pilares da literatura argentina: os poetas populares e gauchescos, Sarmiento, Hernandez, Lugones, Guiraldes, Carriego, e outros. À semelhança de Machado de Assis (que no final do século XIX, no Brasil, lançou as bases do argumento), em El escritor argentino y la tradición1, Borges enfatizou e defendeu a universalidade da literatura contra os que insistiam em suas marcas regionais. Sua escrita foi prova maior desse argumento, visto que ela transcende ao meramente regional. Ainda que Borges discorra sobre o que é próprio da sua Argentina — seus bairros, seu povo, sua história — o princípio organizador de seus textos, sua linguagem, seu estilo e sua visão de mundo evidenciam que o que importa para ele é muito mais do que o seu próprio chão, e uma primeira leitura da sua obra, ainda que superficial, basta para nos pôr diante do universo: mitos, lendas e sagas de outros povos, filosofia, teologia, religiões, literaturas alemã, inglesa, norte-americana, irlandesa, escocesa, argentina, árabe..., considerações sobre linguagem, lógica e metafísica. Seus poemas, contos e ensaios abordam temas recorrentes: a imortalidade, o tempo, a eternidade, o espaço, o eterno retorno, os espelhos, os arquétipos, o labirinto, o universo. Assim sendo, escrever sobre Borges torna-se uma tarefa árdua, pelo gigantismo de sua erudição, escopo e extensão de sua obra (tematicamente dispersa e, no método, assistemática), e não temos a pretensão de abarcar todos esses aspectos, o que seria insensato para as pretensões deste ensaio.

Se os escritos de Borges denotam uma "dispersividade temática", isto não impede de vermos neles, dos primeiros aos últimos, marcas patentes de sua preocupação com origens, fundamentos, fatos elementares, primordiais e remotos no tempo e no espaço. Na dedicatória à sua mãe dos poemas que compõem Fervor de Buenos Aires (1923), Borges afirma que "las cosas que le ocurren a un hombre les ocurren a todos. Estoy hablando de algo ya remoto e perdido, los dias de mi santo, los más antiguos [...]". E no prólogo (de 1969) destes escritos reconhece, a despeito das revisões e cortes, que "para mí, Fervor de Buenos Aires prefigura todo lo que haría después"2; em El oro de los tigres (1972), reafirma: "En el principio de los tiempos, tan dócil a la vaga especulación y a las inapelables cosmogonias, no habrá habido cosas poéticas o prosaicas. Todo sería um poco mágico. Thor no era el dios del trueno; era el trueno y el dios"3. Em vista disso, o nosso interesse neste ensaio será descobrir na obra do autor argentino pontos que nos permitirão vê-lo caracterizado com o termo "mítico".

Um dos sentidos correntes da palavra "mito", compartilhada por etnólogos, sociólogos e historiadores da religião, é de uma "tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar" (ELIADE, 2007, p. 8). Na história das religiões, muitos mitos e lendas são motivos existenciais e de fé, como é o caso das cosmogonias bíblicas, dos primeiros pais, Adão e Eva, de Noé, do paraíso e outros mais. Não é o caso de Borges, que assim ratifica a nossa afirmação: "Los católicos (léase católicos argentinos) creen en um mundo ultraterreno, pero he notado que no se interesan en él. Conmigo ocurre lo contrario; me interesa y no creo" (OC, I, p. 281). Se há um motivo existencial no interesse de Borges por mitos, lendas e assuntos congêneres, este motivo é literário. Além do sentido religioso primordial dos mitos, há outros. Para Aristóteles, mímesis era imitação, sendo o mythos a composição das ações, ou as ações encadeadas, e originalmente aplicava-se ao drama (representação teatral). A imitação das ações dos deuses gregos era altamente considerada e qualificada. Desse conceito de imitação, houve um deslocamento do mito, da esfera religiosa para a profana, passando a significar um fato primordial qualquer (o mito de Édipo de conotação freudiana, por exemplo), e as sucessivas repetições desse fato originador. Além disso, em Borges, o mito adquire outra característica: a de linguagem simbólica. Com isto, não estamos afirmando que toda linguagem simbólica é mítica, mas que o modus operandis do escritor dá à linguagem um sentido mítico, pela abundância de elementos e personagens arquetípicos. Assim sendo, neste trabalho seguiremos a orientação de Northop Frye (1973, p. 333):

 

O vocábulo mito pode ter, e obviamente tem, diferentes sentidos em diferentes matérias. Esses sentidos são conciliáveis com o correr do tempo, mas a tarefa de conciliá-los está no futuro. Em crítica literária, mito significa em última análise mythos, um princípio organizador estrutural da forma literária.

 

Entendemos ser isto aplicável à maneira com que Borges organiza (ainda que não sistematicamente) os seus escritos, e neste ensaio abordaremos o mito em Borges, considerando o mito: a) em seu sentido original religioso ou lendário, geralmente como referenciais especulativo-eruditos de Borges, especialmente nos ensaios sobre textos de autores alheios; b) como uma das formas (não-religiosas) de organização dos escritos borgeanos: uma escrita circular e repetitiva de fatos primordiais, e c) em seu sentido deslocado simbólico como construção de linguagem baseada em determinados arquétipos, isto é, elementos com uma forma cristalizada de sentido.

 

 

II – Argumento 1

 

         Parece-nos claro que as referências de Borges a temas míticos se restringem ao interesse literário, poético e ensaístico, não se constituindo como dogma, motivo de crença ou de fé, como já afirmamos. Se em seus escritos aparecem reiteradamente os temas clássicos, como certas cosmogonias gregas, latinas — pensamos especialmente em Ovídio — ou cristãs; mitos cristãos do Paraíso (o Jardim do Éden), de Adão e Eva, de Caim, Abel, Noé, do céu e do inferno, de demônios; deuses e mitos gregos (A Odisséia, as sereias, o labirinto, o eterno retorno); e outros não tão "clássicos" assim, como certas lendas orientais (japonesas, chinesas), luas míticas, sagas islandesas, a cabala etc., pensamos que há três razões para isto: primeiramente, porque Borges estima as idéias religiosas ou filosóficas pelo seu valor estético e pelo que têm de singular e de maravilhoso, e isso talvez seja indício de seu "ceticismo essencial". Isso ele mesmo afirma no Epílogo de "Otras inquisiciones" (OC, II, p. 153). A Borges se aplicam as palavras de Barthes (1993, p. 164): "Os homens não mantém com o mito relações de verdade, mas sim de utilização: despolitizam segundo as suas necessidades". Em nosso entender, em Borges os mitos são despolitizados; em segundo lugar, os temas míticos coadunam-se bem com a sua preocupação filosófica constante com o tempo: a "eternidade", o eterno retorno ou a teoria dos ciclos4. Os mitos cumprem muito bem um papel substancial de justificadores de eternidades, pois trazem em si a idéia de perenidade, persistem por vastos períodos de tempo no imaginário coletivo dos povos, renovam-se, perpetuam-se; em outras palavras, são literariamente "eternos"; finalmente, os mitos são parte constituinte de uma visão enciclopédica (erudita) de Borges. Assim, alguns aparecem como motivos especulativos e conjecturais do autor, com arrazoados filosóficos, teológicos, metafísicos, matemáticos ou estéticos, normalmente em ensaios sobre textos alheios. É o caso do inferno ("La duración del infierno", OC, p. 235s, p. ex.), do infinito ("Avatares de la tortuga", OC, I, p. 254s, por ex.),  da cosmogonia cristã ("La creación y P.H.Gosse", OC, II, p.28s, p.ex.), da cosmogonia de Basílides ("Una vindicación del falso Basílides", OC, I, p. 213s), da cosmogonia de Hákim ("Los espejos abominables", OC, I, p. 327s), dos mistérios de um nome ("Historia de los ecos de un nombre", OC, II, p. 128s), da cabala - que está fundada no mito (Borges prefere o termo "conceito") da inspiração mecânica da Bíblia ("Uma vindicación de la cábala, OC, I, p.209s), dos "mitos cientificistas de Pitágoras [...] pois, como dizem os pitagóricos, o universo e tudo que existe nele são determinados pelo número três, já que começo, meio e fim fornecem o número do universo, e o número fornecido é uma tríade" (CAMPBELL, 2002, p. 144 e 165), e "que los números sean instrumentos o elementos de la Creación es dogma de Pitágoras y de Jámblico [...]" ("Del culto de los libros", OC, II, p. 93, p. ex.), e do problema da tradução ("Las versiones homéricas", OC, I, p. 239s, p.ex.),. Estão ainda no horizonte de interesse de Borges autores cujo interesse eram os mitos, como é o caso de Homero, os autores da Bíblia, Dante, Milton, Goethe,  Shakespeare, apenas para citar os mais importantes.

 

        

III - Argumento 2

 

         Se Borges discorre sobre textos alheios, fundamentando seus ensaios em temas e autores míticos, também é verdade que a sua própria ficção está assentada em características míticas. Borges mitifica o seu próprio fazer literário, ao aplicar neste os princípios míticos sobre os quais discorre, em especial a teoria dos ciclos, o eterno retorno, as repetições de um fato originário. A mitologia participa na construção do mundo borgeano, e Borges utiliza-se do que Barthes (1993, p. 156) chama de "o poder maior do mito: a sua recorrência".

         É assim que em Borges muitas histórias são repetições de uma mesma história primordial, como por exemplo: Leyenda policial (1927), Hombres pelearon (1928), Hombre de la esquina rosada (1935) e História de Rosendo Juárez (1970). Nos dois primeiros casos, dois relatos literalmente iguais, a não ser a variação dos títulos, sendo o primeiro já caracterizado como lenda. Nos dois últimos, visões diferentes para um mesmo fato: respectivamente, o de uma testemunha que conta os acontecimentos a um interlocutor chamado "coincidentemente" de Borges, e o do próprio protagonista do conto, Rosendo Juarez, também contando a Borges. Essas reescrituras ao largo do tempo cumprem o papel mítico do Destino, "ya que el destino se complace en repetir las formas y lo que pasó una vez pasa muchas" (OC, I, p. 166). 

         Se a noite a que se referem os relatos é uma "noite rarísima", uma noite "que no se me olvidará".(OC, I, p. 331), em nosso entender uma noite primordial, singular e mítica, as consequências desta noite nos indicam duas vertentes distintas: uma vertente mítica, a da coragem (nos dois contos iniciais), já solidamente apreendida e arraigada na cultura do gaucho; a outra, uma desmitificação da coragem, ressaltando a "covardia" do abandono da luta (nos outros dois contos). Isso nos mostra a dificuldade de qualquer tentativa de reduzir a literatura de Borges a apenas uma visão.

         Esses momentos únicos, singulares mostram-nos que "[...] existe para um determinado homem uma noite subjetiva da história, onde o futuro se transforma em essência, em destruição essencial do passado" (BARTHES, 1993, p. 177); além disso, marcam uma "revelação", um fato primordial que engendrará toda a história (ou o destino) de um homem, sendo a Biografia de Tadeo Isidoro Cruz (1829-1874) o seu relato mais sintomático. Diz Borges:

 

 

Mi propósito no es repetir su historia. De los dias y noches que la componen, solo me interesa una noche; del resto no referiré sino lo indispensable para que esa noche se entienda [...] (Lo esperaba, secreta en el porvenir, una lúcida noche fundamental: la noche em que por fin vio su propria cara, la noche en que por fin oyó su nombre. Bien entendida, esa noche agota su historia; mejor dicho un instante de esa noche, un acto de esa noche, porque los actos son nuestro símbolo.) Cualquer destino, por largo y complicado que sea, consta en realidad de un solo momento; el momento em que el hombre sabe para siempre quién es. (OC, I, p. 561, 562)5.

 

A escrita que reduz a vida de um homem a um momento único, uma revelação, indica um fundamento mítico. Algo como o acontecimento primordial dos mitos cosmogônicos das histórias das religiões, de que fala Mircea Eliade. É esse momento, um pequenino lapso de tempo, que dá sentido à vida toda de um homem, seu passado e seu futuro. Ainda segundo Eliade (1991, p. 79):

 

"A iluminação instantânea" [...], como a chamam os autores  Mahâyâna, quer dizer que a compreensão da Realidade se faz subitamente, como um relâmapago. É exatamente a imagem verbal, fundada no simbolismo do relâmpago, que já encontramos nos textos upanixádicos. Um momento qualquer [...], o instante paradoxal que suspende a duração e projeta o monge budista no nunc stans, num eterno presente. Esse eterno presente não faz mais parte do tempo, da duração, ele é qualitativamente diferente do nosso "presente" profano, desse presente precário que surge fragilmente entre duas não-entidades — o passado e o futuro — e que terminará com a nossa morte. [...] Notemos que essas imagens, através das quais se tenta expressar o ato paradoxal da "saída do tempo", são válidas também para expressar a passagem da ignorância para a iluminação (ou, em outros termos, da "morte" à "vida", do condicionado ao não-condicionado etc.) [...] a imagem contraditória do "momento favorável", fragmento temporal transfigurado em "instante de iluminação".

        

(O Aleph é em Borges um exemplo clássico das mitologias da busca de um centro, cuja analogia mais evidente é a árvore da vida, que está no centro do Jardim do Éden, na literatura bíblica. Nesse conto o que se encontra é o centro do mundo, revelado no Aleph, letra sagrada).

A repetição de uma mesma história será tema também dos intrincados argumentos do conto Pierre Menard, autor del Quijote. Ainda que a história seja literalmente a mesma, ao mesmo tempo não o é, pois fica transfigurada pela visão e estilo (arcaizante) do escritor, pela recepção do leitor, pelos contextos históricos específicos e contemporâneos do ato da escrita e da leitura. Pierre Menard coloca-nos diante dos mistérios da linguagem, pois dois textos literalmente idênticos, na verdade podem não sê-lo.

Na Página para recordar o coronel Suarez, vencedor em Junín (OC, II, p. 250-251) estão os fundamentos míticos de uma batalha que se repete, o instante infinito como prefigurando um cenário para o futuro, como se o anfiteatro de montanhas fosse o futuro, uma batalha eterna que prescinde da pompa de visíveis exércitos com clarins; Junín são dois civis que em uma esquina maldizem a um tirano, ou um homem obscuro que morre no cárcere. É a história repetida, mítica, origem de outras histórias que a sucederão, acontecimento singular que motiva a outros acontecimentos transfigurados no tempo e no espaço, nesse tempo cíclico e nesse espaço infinito, pois o que importa o tempo sucessivo, se nele houve uma plenitude, um êxtase, uma tarde? (aqui novamente a idéia de uma "revelação"). Borges faz de Junín uma cidade mítica, que é recuperada pela memória, em função de novos acontecimentos, que repetirão velhos atos de um instante passado, longínquo ou não. Junín é como o Palermo mitológico de baralhos e punhais (OC, II, p. 324).

Em La Intrusa (OC, II, p. 401s), Borges recorre novamente à retomada de histórias já escritas, ou melhor, contadas e recontadas, e agora contada de novo com alguns retoques necessários, visto que as lembranças são parciais (e quando a memória se apaga surgem os símbolos). Em El encuentro (OC, II, p. 415s), novamente um acontecimento é recordado, ou pelo menos, faz-se a tentativa de recordá-lo "como em um sonho", como algo perdido no tempo. Em El duelo Borges previne ao leitor que "os episódios importam menos que a situação que os causa e os caracteres" (OC, II, p. 429), colocando ênfase no fato gerador. Em Los cuatro ciclos (OC, II, p. 504s), o escritor reconta quatro epísódios míticos, para, no final dos relatos, afirmar: "Cuatro são as histórias. Durante o tempo que nos resta seguiremos narrando-as, transformadas". Em El Evangelio según Marcos (OC, II, p. 444) a história paradigmática é a história de Jesus, conforme a visão do evangelista Marcos, agora repetida e transfigurada no tempo e no espaço6. Como afirma Cruz (2006, p. 92):

 

Histórias que se repetem, a História como um rosário de estórias (enredos) que se repetem. Grande parte dos contos de O Informe de Brodie constitui-se a partir dessa concepção de tempo e, se não estou enganado, todos os personagens movem-se como se fossem fantoches, submetidos a uma força que os domina de forma absoluta, e da qual eles estão longe de se libertar e, pior, sem ter qualquer consciência disso. São destinos repetidos infinitamente, como afirma Sarlo, numa temporalidade infinita, especular, em abismo, periodicamente reproduzidos.

 

Talvez estas "repetições" sejam apenas reescrituras de um único livro, o Livro primordial e sagrado, o cânone dos cânones, guardado a sete chaves como um segredo a ser descoberto, um livro que já contém em suas letras toda a história, e que nos revela, como por espelho, a eternidade do universo, temas caros às reflexões de Borges. Assim, poderíamos afirmar que para Borges os atos dos homens são espelhos (nublados) de outros atos fundamentais, históricos ou não, perdidos no tempo e no espaço, que se repetem num ciclo eterno e infinito, pois "el humo desdibuja gris las constelaciones / Remotas. Lo inmediato pierde prehistoria y nombre / El mundo es unas cuantas tiernas imprecisiones / El rio, el primer rio. El hombre, el primer hombre" (OC, I, p. 64). Esses espelhos são labirínticos, como provam as referências de Borges: o mapa dentro do mapa na obra de Josiah Royce, The World and the Individual, o drama dentro do drama, em Hamlet, a novela dentro da novela, em O Quixote, os contos dentro dos contos, como em As mil e uma noites. Como afirma Barrenechea (2000, p. 17), Borges "se ve a sí mismo encerrado en una casa que es una cárcel-laberinto sin salida, como un condenado a construir labirintos literários interminablemente". O que é a Biblioteca de Babel (OC, I, p. 465s) senão um novo mito (borgeano) de um Livro primordial, o catálogo dos catálogos, protótipo divino de todos e infinitos livros já escritos e a se escrever? Mito a que os homens do passado, do presente e do futuro se empenharam e empenharão em descobrir as origens, "O" bibliotecário primeiro, o Homem do livro? Pois a Biblioteca de Babel é espelho do mito da torre de Babel, origem das confusões, das interpretações várias, das variadas línguas, da tentativa de se chegar ao conhecimento último dos deuses. A própria obra erudita de Borges, trancado numa biblioteca de "infindáveis livros ingleses", lendo em diversas línguas, escrevendo sobre temas infinitos e ao mesmo tempo elementais, reescrevendo, citando, copiando, navegando nas obras de inúmeros autores, de várias nacionalidades e lugares, cruzando informações, refutando-as e afirmando-as, inventando histórias, tudo isso o que é senão a comprovação de um labiríntico circular de idéias que vão e voltam (sob novas formas — o mito relido, reescrito, reafirmado, renegado)?

Seguindo nessa trilha, Argañaraz afirma (2008, s/p.):

 

En "El otro, el mismo", Jorge Luis Borges utiliza las distintas características de las Moiras contempladas por el mito, pero realiza, asimismo, innovaciones. Una de las más interesantes es la inversión de dicho mito, mediante la transferencia de aquellos atributos que hacen a esas diosas poderosas divinidades del destino a un objeto que, en la mitología griega, no solo no es divino, sino que tiene un autor humano: el laberinto. Otra modificación importante es la figura de un laberinto constituido por palabras, con lo cual hace imprecisos los límites entre obra literaria y vida, así como considera difusa la frontera entre el sueño y la vigilia. Por último, resulta original la equiparación de las Moiras con el hombre en general y el poeta en particular a través del único atributo divino que aquéllas no pierden y el laberinto no tiene ni recibe por transferencia: la facultad creadora7.

 

No que tange às narrativas dos fundadores da literatura gauchesca, Borges valoriza, sem nenhum esforço de disfarce, o fundador, Hidalgo, a quem chama "el iniciador", "el Adán" — denominações de referências claramente míticas — e afirma (OC, I, p. 180-181):

 

[...] Yo pienso lo contrario; pienso que ha sido superado por muchos y que sus diálogos, ahora, lindan con el olvido. Pienso también que su paradójica gloria radica en esa dilatada y diversa superación filial. Hidalgo sobrevive en los otros. Hidalgo es de algún modo los otros. En mi corta experiência de narrador, he comprobado que saber cómo habla un personaje es saber quién es, que descubrir una entonación, una voz, una sintaxis peculiar, es haber descubierto un destino. Bartolomé Hidalgo descubre la entonación del gaucho; eso es mucho. No repetiré líneas suyas; inevitablemente incurriríamos en el anacronismo de condenarlas, usando como canon las de sus continuadores famosos. Básteme recordar que en las ajenas melodias que oiremos está la voz de Hidalgo, inmortal, secreta y modesta [...].

 

Assim, no final das contas, podemos afirmar também que, a despeito de todas as diferenças, o Borges de Fervor de Buenos Aires (1923) engendrou o Borges de O informe de Brodie (1970).

 
 
 

Notas

 

 

1 Ensaio disponível em BORGES, Jorge Luis. Obras completas, vol. I (1923-1949), 3.ed. Barcelona: Emecé Editores, 1996, p. 267-274. Daqui em diante referir-nos-emos à esta edição como sendo (OC, I).

 

2 Ibidem, p. 9 e 13.

 

3 Idem, Obras completas, vol. II (1952-1972), 4.ed. Barcelona: Emecé Editores, 1996, p. 457. Daqui em diante referir-nos-emos à esta edição como sendo (OC, II).

 

4 Para uma discussão abrangente do tempo em Borges, veja-se "La expresión de la irrealidad en la obra de Jorge Luis Borges e otros ensayos", de Ana Maria Barrenechea, especialmente o capítulo IV — El tiempo y la eternidad, p. 105-131.

 

5 Os grifos são nossos.

 

6 Para outros exemplos de recorrências na escrita de Borges, veja-se BARRENECHEA, Ana Maria, op. cit., p. 243-246.

 

7 Os contos em que a autora vê contato com o mito das moiras são: "Poema conjetural", "A un poeta menor de la Antologia", "El mar", "Limites", "El Golem", "A quien está leyéndome", "La noche cíclica", "Mateo XXV, 30", "Jonathan Edward (1703 1785)", "Poema del cuarto elemento", "El Otro, el Mismo".