Um livro como A mulher calada, de Janet Malcolm, sobre "Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia", que hoje em dia deve ser encontrado só em sebos, devia ser conhecido por todo mundo.  Por quê?

"...Mas, é claro, como sabe todo aquele que tenha ouvido falar da vida alheia, ninguém "é dono" dos fatos de sua vida. Esse direito de propriedade nos escapa quando nascemos, no momento em que começamos a ser observados. Os órgãos de divulgação que proliferam em nosso tempo são apenas uma extensão e uma amplificação da bisbilhotice fundamental de nossa sociedade. Basta alguém querer para a nossa vida passar a ser da conta de todo mundo. O conceito de privacidade não é mais que um biombo destinado a esconder que ele é praticamente impossível no universo social. Em todo conflito entre o direito inviolável do público de ser divertido e um desejo individual de ser deixado em paz, o público quase sempre leva a melhor. Depois que morremos, não há mais a necessidade de fingir que estamos protegidos da maldade impessoal do mundo. O indiferente aparato judicial supostamente encarregado de proteger nosso bom nome contra a injúria e a difamação nos deixa entregues a nossa própria sorte. Os mortos não podem ser injuriados ou difamados. Não podem recorrer a instâncias judiciais".

Se a citação deste trecho do livro não lhe der vontade de conhecê-lo melhor, certamente você não é muito dado a querer entender o mundo que o rodeia.  Basta dar uma olhadinha ao redor: o mundo presente é entupido de mídia a tal ponto que nada mais pode ser decidido em torno da questão verdadeiro & falso.  A seriedade de Janet Malcolm, na verdade, é um tanto amedrontadora — em geral, as pessoas procuram se esquivar a tudo aquilo que lembre "a maldade impessoal do mundo", na certa esperando escapar aos mecanismos que as divertem enquanto não as afetam pessoalmente. Ninguém quer ter na pele a sensação de que é vigiado e de que é um caso entre outros em meio à massa — mas todos querem se sentir onipotentes, vigilantes e observadores. É a perversidade básica de nosso tempo. Se há uma coisa chamada "alma", é para ser moída e triturada. Não há mais pessoas, mas objetos indiferentes para um vasto liquidificador coletivo onde as diferenças individuais só contam como entretenimento descartável.

Janet Malcolm não estava brincando quando decidiu entender a vida de Sylvia Plath, a partir dos muitos nós entrelaçados por biógrafos sobre essa mulher que se matou por ciúme, segundo a mitologia criada depois da tragédia. Plath amava outro poeta, Ted Hughes, e, na voz geral, ele não tinha tanto talento quanto ela.

 

 

O Deus Selvagem

 

Malcolm tem tanta razão no seu ataque à crueldade inconsequente da mídia que, se me ponho a pensar, direi que sei muito pouco a respeito de Sylvia Plath, exceto o que se vendeu universalmente: que era uma poetisa talentosa que cometeu um enigmático suicídio por amor. Um suicídio que chocou muito — asfixiamento voluntário por gás.  Muita gente jamais deve ter lido um poema de Plath que seja, mas pode ter sabido de seu ato devido à penetração que ele obteve.  Dou-me como exemplo: a personalidade polêmica de Plath chegou a mim antes do conhecimento de seus versos.

Quer dizer: a mídia, mesmo a cultural, supostamente mais refinada, cria o monstro, que chega muito à frente da pessoa, principalmente se esta se ocupa de uma arte para poucos, como é o caso da Poesia. Certamente, o suicídio de Marilyn Monroe, por exemplo, que envolve tantas especulações polêmicas até hoje, acontecido no ano posterior ao de Plath, é um  milhão de vezes mais conhecido.  Mas todo mundo tinha visto algum filme de Marilyn ou sabia muito bem quem ela era. Tratava-se de Cinema, não de Literatura. O suicídio no mundo literário acaba por ser forçosamente mais discreto.  Questão de indústria cultural, de mídia, que mostra quanto estamos afundados em entretenimento e manipulação de massa, sujeitos a partilhar, ainda que criticamente, de idolatrias generalizadas e informações ou "fatóides" disseminados até a náusea, mesmo quando nos supomos imunes a isso.

O dedo de Malcolm faz pressão sobre uma ferida pra lá de dolorida. Ainda assim, o livro seria melhor se ela não tivesse se restringido à tarefa de ouvir os biógrafos e pessoas aproximadas a Plath e ousasse um pouco mais no sentido de dar-nos o seu retrato da poetisa. Mas ela poderia objetar a isso com o argumento que dá o tom ao seu trabalho: era preciso evitar toda a manta de sensacionalismo envolvendo Plath, Hughes e a cunhada da poetisa, várias vezes citada como um verdadeiro ogro na defesa do irmão ofendido pelos biógrafos e por alguns deles vista quase como uma apaixonada incestuosa.

O que importa é que o dilema ético diante do qual Malcolm nos coloca é oportuno e ela, como jornalista, dá uma boa lição aos colegas do mundo todo mostrando que a busca da verdade deve passar por um nada pequeno e descuidado exame dos interesses de cada um. Busca-se, afinal, a verdade, ou já se vai a campo como abutre, querendo partilhar dos restos de uma carniça avidamente disputada, sem a menor consideração por sua causa? Quem, afinal de contas, é ético quando o que interessa, acima de tudo, é o sucesso profissional, não importando que o objeto de uma reportagem íntima extensa ou uma biografia possa ser mil vezes mais complexo do que se apregoa? A veracidade biográfica e o direito de se tocar na privacidade última de uma alma humana, violado constantemente por toda espécie de jornalismo — inclusive o literário — é a questão que fala mais alto neste pequeno volume, fundamental, da Cia. das Letras (220 páginas).

Ao ler A mulher calada, pensei em silêncios — silêncios voluntários e silêncios que se erguem em torno de pessoas que não querem de modo algum ter sua intimidade exposta e devassada e que, por alguma ironia atroz do Destino, estão sujeitas a isso em grau maior do que as outras (pensei no silêncio obstinado, sempre perseguido e incompreendido, de Greta Garbo). Lembrei-me do silêncio impressionante que faz a atriz que interpreta "Eletra" no filme Persona, de Bergman (vivida por Liv Ullmann). Foi um dos primeiros grandes impactos cinematográficos de minha vida. Aquela mulher, profissional da fala, não quer falar mais. É recolhida a uma ilha onde será tratada por uma enfermeira dedicada (Bibi Anderson). Há um determinado trecho do filme (que vou citar de memória) em que a enfermeira, a única a falar diante daquela mudez aparentemente irremediável, diz que a compreende, que entende que alguém tenha desistido de dizer qualquer coisa diante do mundo hostil, cruel e incompreensível em que vivemos, já que falar não faz mesmo sentido. Aquilo faz pensar que qualquer discurso degenera em mal-entendido e que não há absoluto de integridade possível para um ser relativo como o Homem — ele abre a boca e está sujeito a errar, e errará, e será envolvido nos mal-entendidos  das interpretações, e se sentirá rebaixado da condição ideal que o silêncio lhe emprestava.

Mas, quanto ao livro de Malcolm, se parecer insuficiente, outra dica:  mais sobre o suicídio de Plath,  pode ser encontrado em outro livro sério e pouco conhecido — O Deus Selvagem, do ensaísta inglês A. Alvarez, também publicado pela Cia. das Letras. Alvarez foi amigo próximo de Hughes e Plath e seu livro trata precisamente deste tema — o suicídio na Literatura. Logo no início do livro, é Plath o assunto, e alguns de seus poemas mais soturnos e premonitórios são lembrados. Este livro de Alvarez mereceria uma atenção maior do que a que recebeu no país, a meu ver — porque é essencial na análise do suicídio relacionado à vida literária, já que o número considerável de grandes escritores que escolheram esta via faz pensar. O próprio Alvarez tentou se matar. E concluiu que não queria morrer, que a passagem desta vida para outra não seria tão romântica e "conveniente" como imaginava, sofreu muito e preferiu continuar vivo. A morte de ninguém se dá sob condições ideais, como imaginam alguns suicidas, tentados pela lógica da saída terminal. É uma preciosa lição, a que Alvarez oferece. Pode dissuadir muitos deprimidos da fantasia do suicídio "conveniente".

Considero livros como o de Malcolm e de Alvarez purificadores. Limpam o ar que nos cerca e nos fazem ver pessoas que se empenham em resgatar, da infindável pilha de pseudo-realidades e verdades que a mídia vai produzindo como detritos em escala estratosférica, uma realidade humana e necessária que fica mais e mais indistinta.

 

 

 

março, 2010