©doriano solinas

 
 
 
 
                                                                    




Responsável pelas várias vezes premiada versão brasileira das Mil e Uma Noites, Mamede Mustafa Jarouche comete outra façanha, ao se tornar o primeiro tradutor, em todo o mundo, deste O Leão e o Chacal Mergulhador (Globo, 271 págs.). A obra, dos séculos XI-XII, foi escrita a partir de um fabulário árabe calcado num "original" sânscrito, como uma adaptação livre, ao que parece em Bagdá. Como Jarouche explica, o texto permaneceu em árabe e quase desconhecido por causa de falhas nas raríssimas cópias disponíveis. O problema se resolveu com a recente descoberta, na Índia, de um texto que permitiu completar o livro, até então tido como precária do ponto de vista literário.

O Chacal Mergulhador do título é um emblema do intelectual que peca por ignorar a recomendação do senso comum de se afastar dos governantes, pois os resultados são sempre duvidosos, quando não de alto risco em todos os sentidos. O Chacal se esforça e, graças à sua esperteza e inteligência, consegue se tornar o conselheiro do rei. As intenções dele são as melhores, movidas pela idéia de criar uma dinâmica harmoniosa entre as decisões do rei e as necessidades e deveres de seus súditos, uma situação ideal que se coloca em primeiro plano. O contrário portanto do jogo político determinado pela vontade de poder e interesses pessoais. Cada comentário sobre como o rei deve pensar ou agir em relação a determinado tópico é seguido de uma historieta de fundo exemplar. O Chacal comporta-se e pensa guiado pelos princípios éticos da religião muçulmana e isso causa sua ruína. A posição que ocupa faz o caldeirão da inveja ferver e ele acaba envolvido numa trama palaciana de rotina armada pelos ambiciosos que infestam os corredores da realeza. Consegue escapar da morte nas masmorras e aprende a lição. Após recobrar a liberdade, não titubeia ao ser convidado pelo rei para que volte ao posto de ministro conselheiro. Nega-se e aceita apenas receber visitas eventuais do Leão, que vai até seu retiro de asceta recolhido à meditação e às orações, submisso apenas ao Todo Poderoso.

         Não em primeiro plano, mas de maneira paralela à importância do livro como peça de interesse histórico e reflexão sobre o ato político de todos os tempos, observa-se na tradução o reflexo do original árabe como obra resultante de aguda consciência literária, isto é, o autor sabia utilizar os recursos de que dispunha, a fim de produzir um conjunto capaz de expressar em sua estrutura, de maneira implícita, o que se lê claramente nas discussões entre o Leão e o Chacal, seguidas de narrativas. É muito curioso o estratagema usado pelo autor, pois ao mesmo tempo em que ele, obedecendo ao seu tempo e espaço, rebaixa a fábula, mais apropriada aos imbecis, em nenhum momento deixa de utilizá-la com destreza, humor e espírito documental sobre usos e costumes da realeza e dos súditos. Enquanto a parte expositivo-dialógica, na qual o Chacal faz seus discursos labirínticos e sagazes, sugere um diagrama dos enredos áulicos, desenhados nos longos arabescos das frases em que ele enfim também acaba se perdendo, para depois reencontrar o caminho da salvação, mas longe daquele mundo pérfido e cruel. Quer dizer, o seu problema, a rigor, é um problema que se dá na linguagem..

         Pode-se dizer mais, a respeito das fábulas, obedecendo ao esquema de história puxa história, que elas chegam a romper os limites edificantes do diálogo, tornam-se autônomas e, portanto, abertas a novas possibilidades de entendimento, se não a dúvidas na base do assim é se lhe parece, como na anedota da "Mulher que tinha muito asco", a propósito do perigo das artimanhas e os objetivos pessoais (ver box). Suspeitas porque guardam algo de falso ou mentira, elas têm, no entanto, o poder de iluminar em diversos ângulos a vida e o mundo aleatórios. O Chacal pretende aproveitá-las como uma comprovação dos desígnios divinos e da verdade, embora o leitor tenha todo o direito de desconfiar que, se a personagem cai na lama devido à sua estatura moral, ela então teria fracassado – a crítica ao poder é evidente. O Rei continuará exposto às vacilações que destruíram a boa imagem do Chacal (Mergulhador porque é um espírito investigativo) no meio do espinheiro das intrigas. O antigo conselheiro refugia-se na inércia para sobreviver, se tiver intenção de continuar servindo o verdadeiro Senhor, o seu objetivo primeiro e único, que não funciona na prática dos homens aos quais ele pretendera ajudar. Conforme o tradutor, no posfácio, o ascetismo do Chacal constrasta de modo irônico a atitude piedosa "dos tratados políticos, que sempre afetavam intensa religiosidade, mas cujo desapego do mundo (...) jamais convenceria nem o mais crasso dos néscios." A derrota do Chacal na verdade é a derrota moral dos governantes. Aí está o anti-maquiavelismo muito bem percebido pela filósofa Olgária Chain Féres Matos, que apresenta o volume.

         Apesar da má vontade explícita do autor (e da época) com a ficção, ele sabia, parece, que tudo não passa de uma fábula maior recheada de outras menores, um motivo inspirador de Borges. E é a mal contida confiança na imaginação individual e coletiva expressa no conto de origem oral que terminou por garantir à obra sua eficácia, com pleno direito de circulação e permanência entre todos os povos, pela força de sua universalidade e arte, que os leitores da língua portuguesa têm a chance de comprovar e degustar em primeira mão fora do circuito da língua árabe. As notas do tradutor são material importante para quem se interessa pelas questões de tradução e estudos das línguas árabe e semíticas.    

 

 

A mulher que tinha muito asco

 

Conta-se que certo homem casou-se com uma mulher, e ela lhe disse? "Sou muito nojenta, e temo presenciar de tua parte algo que me cause asco e afaste minha alma do amor por ti". Ele disse: "Espero que não ocorra nada que te desgoste, e ela ficou com ele por algum tempo. Certo dia, ela se sentou para almoçarem juntos e, quando tirou a mesa, o homem se pôs distraidamente a recolher e comer ciscos debaixo da mesa. A mulher disse: "Não te bastando o que havia sobre a mesa, comes ainda o que há debaixo dela?" Atinando com o discurso da mulher, o homem respondeu: "Por Deus que não os estou comendo por fome, mas sim por ter ouvido que os ciscos aumentam a potencia sexual!" Depois disso, ela passou a fingir que não o via, atirando-lhe ciscos de pão tal como se faz com um frango.

 

 

 

 

 

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Publicado originalmente em 14-02-2010 no Cultura do jornal O Estado de S. Paulo.

 

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março, 2010