Imagem da Memória | Roberto Magalhães | Lápis de Cor | 1991 | Coleção Particular
 
 
 
 
 


 

O poema

 

 

Cuspi o meu coração

aqui, na palma da mão.

 

Joguei na primeira esquina.

 

Tudo voou pelos ares

e tudo queimou comigo

naquela explosão;

 

o meu vestido de renda

meu lápis de sobrancelhas

meus espelhos

meu batom

 

cartas de amores

de amigos

 

todos os meus arquivos

de solidão...

 

 

Razão

 

 

Vivo este momento, que não me lembra nada além de um amontoado de coisas, "grandezas", lixo, objetos, ideias, na sua maioria, inúteis. Sinto que todo esse império de "bens" "oferecidos" a mim, a nós, pelo complexo midiático é um logro, um buraco negro voraz e impiedoso. A maioria dos seres humanos ainda contempla na vitrine — como cães abandonados — aquilo que nunca vai ter. Percebo que o mito do E.T. somos nós mesmos, que um dia seremos totalmente carecas, cabeça grande, membros subdesenvolvidos, olhos imensos e inexpressivos, balbuciando códigos de barra e outros absurdos incompreensíveis. O coração terá se encolhido, quem sabe dê lugar a uma máquina, o coração, essa representação do sentimento. Aos poucos vem nos sobrando apenas o presente, este "agora" torturante, interminável; a memória dando lugar a arquivos e arquivos, nanoarquivos, macroarquivos que despejamos (sem saber muito bem do que se trata) no nosso CPU.

 

Estamos conectados às grandes corporações com suas redes de TV, que  mostram apenas o que lhes convém. Até a alma pode ser editada... Mais do que nunca, somos escravos, uma escravidão subliminar e irremediável...

 

Vejo tanta riqueza na TV, tanta beleza, tanta abundância... E vejo tantos horrores, tanta miséria... fluxo de imagens como estralos... às vezes diante do espelho me assusto, não me reconheço...

 

Haverá o dia em que estaremos, cada um no seu cubículo, "reconfigurados", conectados sabe-se lá a que engrenagem diabólica. Se houver uma falha do "comando central", sofreremos um apagão definitivo. Deixaremos de existir. Isso não é ficção.

 

Era assim o meu estado quando escrevi este poema, imaginando cuspir o próprio coração, me desfazendo dessa "inutilidade", a metáfora do espírito, da significação como ser humano, abandonar a essência mesma de mulher, caverna, delicadeza, colo. E me via explodindo minha própria história, um sentimento absoluto de solidão...

 

 

junho, 2010
 
 
 
 
Neuzza Pinhero (Arapongas/PR). Poeta, compositora e cantora. Socióloga com especialização em saúde pública (USP). Participou da chamada Vanguarda Paulista, com Arrigo Barnabé (Banda Sabor de Veneno) e Itamar Assunção (Banda Isca de Polícia). Prêmio Nacional de Literatura Lúcio Lins (Poesia,  Paraíba, FUNJOPE, dezembro de 2007) com o livro Pele & Osso. Tem poemas publicados nas principais revistas nacionais de literatura e internet. Atuou em trabalhos líteros-musicais como Polivox (Rodrigo Garcia Lopes) e Ladrão de Fogo (Ricardo Corona). Autora do projeto litero-musical itinerante "Profissão de Febre", iniciado em 1985, musicando poemas de Paulo Lemisnki. Vive em Santo André/SP. Escreve o blogue Spirituals do Orvalho.
 
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