Solidão Aparente | Rio de Janeiro | Foto de Elliot Erwitt | 1973
 
 
 
 
 


 

O poema

 

 

Amhearst,

Stratford-upon-Avon, Nishapur,

Lisboa, Itabira, Buenos Aires, São Paulo,

Málaga, Nova York, Salvador, Pasárgada,

Recife, São Luís, Rio de Janeiro, Porto Alegre,

e você aí nessa cidade-fantasma

com o braço erguido

em frente ao muro, no espaço

do instante em que o grafite

incompreensível que sua mão

projeta é toda a sua

vida.

 

 

Razão

 

 

Acho que os poemas acontecem num território limite entre o pensamento, a sensação e o sentimento, de tal modo que no veio por onde o poema surge, ou passa, não há um só pensamento, ou um só sentimento — pelo menos pra mim é uma confluência. Falamos de territórios: cada poeta tem o território de uma cidade descrito em sua poesia, uma cidade escrita em seus versos, representando a que está inscrita em seu pensamento. Todas as cidades são imaginárias, mesmo as reais, e uma cidade é muitas cidades ao mesmo tempo, cada pessoa tendo uma cidade particular, um conjunto de mapas e pistas que são só seus, marcas espalhadas, de alegria, tristeza, euforia, desespero, dúvida, desencanto, pelas ruas, prédios, praças, avenidas.

 

O poema enumera cidades que se notabilizaram por seus poetas:

Amhearst - Emily Dickinson

Stratford-upon-Avon - William Shakespeare

Nishapur – Omar Kayham

Lisboa - Fernando Pessoa

Itabira - Carlos Drummond de Andrade

Buenos Aires - Jorge Luis Borges

São Paulo - Mário de Andrade, Oswalde de Andrade

Málaga – Rafael Alberti

Nova York – Frank O'Hara

Salvador - Gregório de Mattos, Ildásio Tavares, Capinam

Pasárgada - Manuel Bandeira

Recife – Bandeira, de novo 

São Luís - Ferreira Gullar 

Rio de Janeiro – Antônio Cícero, Tavinho Paes, Geraldo Carneiro, Wali Salomão e tantos poetas que amo, aqui das paragens cariocas

Porto Alegre – Mario Quintana

 

Sempre me ocorreu a aparente contradição de que, sendo a pedra, o concreto, o tijolo e os metais materiais perenes (o que leva governos e instituições a tentarem se imortalizar através deles, pela arquitetura), um outro tipo de objeto, imaterial (poema), é tão ou mais permanente do que a pedra — e, quando é bom, não sofre o desgaste do tempo, a erosão: antes, o tempo lhe acrescenta camadas e lhe decifra incessantemente. De tal modo que algumas das cidades citadas são conhecidas apenas por terem sido berço, morada ou tema destes poetas.

 

No entanto, poemas não são lugares de certeza. Talvez por isso surja Pasárgada em meio à lista de cidades reais, pondo em crise a integridade da enumeração. Outra incerteza é a que o poeta sente ao pensar nessas cidades e seus poetas. Todos eles deixaram poemas que são amados, estão gravados na história por terem marcado as pessoas que os leram. O poeta percebe um limite, uma fronteira muito bem delimitada entre o seu território e o outro, dessas cidades descritas e habitadas pelos poetas que ama. Ele está numa cidade-fantasma. Não tem mais ninguém lá. Apesar disso, ele enche os muros de grafites com palavras que são sua vida, porque a poesia joga nessa outra fronteira, entre a vida e sua representação, fronteira sempre imprecisa.

 

Tentando voltar ao momento em que o poema surgiu, acho que todas essas coisas estavam passando pela cabeça. Se alguém gostou do poema, fique à vontade, entre nessas cidades imaginárias. Ou mais reais ainda.

 

 

junho, 2010
 
 
 
 
Aldemar Norek (Rio de Janeiro/RJ). Poeta, letrista e arquiteto, nem sempre nessa ordem. Escreveu uns três, quatro ou mais livros de poesia (Notas Marginais, Circunstância, No lugar onde você está, Aproximações, etc.), entre outras inutilidades. Nunca publicou. Tem muitos fracassos em sua biografia, mas não gosta de falar disso e, além do mais, não é a melhor pessoa para falar de si mesmo.
 
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