©mr sandman
 
 
 
 
 
 
 
 

"Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso...". "Toda saudade é uma espécie de velhice". "Guerra diverte". "A colheita é comum, mas o capinar é sozinho". "De inventar pouco se ganha". "Viver é um descuido prosseguido". "O sertão é do tamanho do mundo". "Viver é etcétera...".  "Sertão: é dentro da gente". São muitos os caminhos que a leitura da obra-prima de Guimarães Rosa nos oferece. É na aparente simplicidade do universo sertanejo que se escondem as maiores e mais profundas questões filosóficas e existenciais de um ser. Assim como a obra de Clarice Lispector, este livro de G. Rosa não oferece respostas: ele é, ao contrário, uma longa pergunta de 600 páginas.

O questionamento em Grande Sertão: Veredas se dá porque sua existência é uma constante quebra de paradigmas. Historicamente, o processo de criação desta obra ocorreu no momento em que a capital do Brasil era transferida do Rio de Janeiro para Brasília, ou seja, do litoral para o sertão. O Brasil caminhava para o seu interior, e Guimarães Rosa também caminha nesta direção. A obra rosiana descreve o novo endereço da capital brasileira: é do sertão que as páginas do Brasil moderno são impressas. E é aí que o simples se torna complexo: o sertão não é domesticável; suas limitações geográficas e culturais são mais do que amplas: o sertão caminha para o infinito. "Cidade acaba com o sertão. Acaba?".

Os passos dados na leitura de Guimarães Rosa são escorregadios — nos lambuzamos na lama das palavras. Tudo ali é sutileza, tudo é volátil; a pontuação é lisa. Vejam, por exemplo, os dois pontos do título. Este pequeno sinal carrega as infinitas possibilidades do sertão. "O sertão está em toda parte". Os dois pontos bifurcam as veredas do sertão ao mesmo tempo em que o define. As reticências apontam para a continuidade nas repetidas definições da vida: "Viver é perigoso...", "Viver é etcétera...". A vida se constrói em uma tênue linha de três pontos, que são simultaneamente o tridente do diabo, o garfo de três pontas do Netuno e a trindade cristã. Na pontuação da vida, o sertão apresenta-se como um caminho seco e pantanoso, com balas de jagunços que vivem sempre entre reticências e etcéteras de um vazio existencial alimentado por uma mistura de desejos: vingança e justiça. Em Grande Sertão: Veredas vários temas, que já surgiram em contos de Guimarães Rosa, aparecem novamente, de maneira amplificada, como o romance permite. Ali estão os jagunços e suas guerras, a luta contra a maleita, a dúvida existencial do ser humano, o amor, a traição: tudo elaborado através de uma linguagem articulada de maneira muito à vontade.

Guimarães Rosa abre novas perspectivas com a língua portuguesa, fazendo de sua narrativa um exercício de possibilidades que mostram inúmeras formas de manusear a linguagem. Este exercício com a língua portuguesa se desenvolve paralelamente à história de Riobaldo, narrada para um interlocutor atento. Rosa parece brincar com as palavras, ao mesmo tempo em que trava uma batalha com a norma linguística. Ele busca alternativas á mesmice das convenções. O verbo "dançar", por exemplo, é propositalmente grafado com "s" ("dansar"). Desta forma, o escritor mineiro subverte a língua para enfatizar o movimento de entrelaçamento e cumplicidade que a dança provoca. A língua portuguesa do sertão é muito mais musical: "Diadorim, você dansa?". O advérbio "sempre" indica algo que sugere um presente eterno. Em Guimarães Rosa, o advérbio de tempo se transforma em "sempremente"; o sufixo "mente", ao torná-lo redundante, oferece ao advérbio a condição semântica da infinitude temporal. A imagem recorrente do redemoinho (ou "redemunho", como prefere grafar Rosa) nesta obra é uma metáfora para a força da linguagem rosiana: ela carrega, com força eólica, o leitor para o centro gravitacional da narrativa, presente, além das aventuras dos jagunços, na perseguição a Hermógenes, na vingança, no amor de Riobaldo (o narrador) por Diadorim e na dúvida sobre a existência do diabo. Com a sutileza de um furacão, a linguagem é revelada em uma epifania constante.

Os personagens são dinâmicos, pois estão em constante desenvolvimento, como se estivessem permanentemente na adolescência psicológica: questionam e se modificam. "Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas — mas que elas vão sempre mudando". As veredas são, como o sertão, grandes, e há ainda mais o que fazer além do que o já feito ali. "Sertão: estes seus vazios". Neste sentido, vale a pena observar a relevância que um advérbio tem neste enredo não acabado. Espalhado por várias páginas, do início ao fim do romance, a palavra "quase" é utilizada mais de cem vezes em Grande Sertão: Veredas (além da variante "quasezinho"). É ao deixar tudo inacabado que Guimarães Rosa permite que o sertão seja um símbolo para o infinito. O horizonte, nas veredas do sertão, é uma miragem, que se oferece perto, mas que exige dos personagens e do leitor sempre um passo a mais para achar que vai atingi-la antes de continuar seguindo-a. É no "quase" que se encaixam as reticências (espalhadas por todo o livro) e os dois pontos do título. O advérbio "quase" permite que seja construída uma epifania que deixa de ser quase para ser completa no final. Como diz a letra da banda Titãs: "a gente quer inteiro, não pela metade". Pois é justamente a metade, qualquer uma de duas metades, o que Riobaldo consegue. É no embate entre o meio, que ele tem, e o inteiro, que ele quer ter, que Riobaldo faz sua travessia pelo sertão. O diabo não existe, mas o acompanha o tempo todo; Diadorim é um amor impossível, pois é meio homem, meio mulher; um tiro de espingarda está sempre no meio do caminho ente a vida e a morte. "Diadorim, Diadorim — será que a mereci só pela metade?".

Os espaços vazios, as metades e o quase reforçam a ideia questionadora que permeia o enredo de amor e de luta no sertão. E a pergunta surge da dúvida — neste caso, filosofal, religiosa e existencial. Novamente, Guimarães utiliza a linguagem (mas não apenas a linguagem) e a pontuação para enfatizar seus questionamentos. O uso abundante de reticências não deixa que um solitário ponto final torne absoluta uma afirmação. "É e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é...". A existência ou não do diabo atormenta a consciência do narrador Riobaldo: "O diabo existe e não existe?". E segue mais filosofia: "Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa". Sujeito e predicado não são, segundo a norma gramatical formal, separados por vírgula. Porém, no sertão, o sujeito sertanejo virgula antes do predicado, endiabrando Deus: "Deus é paciência. O contrário, é o diabo". A dúvida sobre a existência do diabo, personificado inclusive no personagem Hermógenes (que traz o mensageiro Hermes no nome), traz, na narrativa, um fio de sedução, que parece não querer desgrudar de Riobaldo. Ao mesmo tempo em que quer descrer do diabo, este não o abandona, personificado na própria dúvida, que o seduz com seu olhar petrificador de Medusa. Não parece exagero afirmar que Grande Sertão: Veredas é o Fausto dos trópicos e, justamente por isso, mais quente, mais perto, talvez, do inferno. A dúvida também existe no nome. O nome de Reinaldo é Diadorim. O nome, o substantivo, é mutante, como mutante é o gênero, como mutante é o ser humano. "Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe". O rodamoinho (de novo) metaforiza-se em um meio de transporte invisível, embora pesado, para Riobaldo. É o movimento dos ventos que o carrega e que mistura as impressões sobre Diadorim e sobre o diabo. O vento turva a visão do narrador e o enche de dúvidas.

O narrador em primeira pessoa, autodiegético, carrega o leitor em seus causos, em um fluxo de consciência poderoso, para um universo de ação, luta e guerra, intercalando a narrativa com observações psicológicas e descrições espaciais. O interlocutor, que ouve o relato de Riobaldo, entrega ao narrador o silêncio acolhedor, o quase-falar-que-não-fala-falando-tudo, possibilitando a Riobaldo que lhe conte seus "causos". A narrativa é, para Riobaldo, um desabafo, que só se torna possível graças ao poder de ouvir que o interlocutor tem. Os ouvidos do interlocutor são os olhos do leitor de Grande Sertão: Veredas.

A dúvida nunca é transformada em certeza para Riobaldo. E, neste percurso, Diadorim traz uma contribuição importante. Embora haja em seu próprio nome a referência à claridade do dia nas primeiras sílabas, a dor vem na sequência. Diadorim personifica a dualidade, a dúvida. É, portanto, em uma escala maior, ao mesmo tempo, deus e o diabo. Por isso Riobaldo se sente tentado a traí-lo (no trato que fizeram) e se deixa enamorar por mulheres que conhece na jagunçagem e se casa com Otacília. Riobaldo descreve, com cuidado, a atração física que sente por Diadorim: "O senhor saiba — Diadorim: que, bastava ele me olhar com os olhos verdes tão em sonhos, e, por mesmo de minha vergonha, escondido de mim mesmo eu gostava do cheiro dele, do existir dele, do morno eu a mão dele passava para a minha mão. O senhor vai ver. Eu era dois, diversos? O que não entendo hoje, naquele tempo eu não sabia". Guimarães Rosa retrata o conflito entre a dureza e a singeleza de um jagunço apaixonado por outro. Ironicamente, lemos, no século XXI, que o conflito e o sofrimento que Diadorim provoca em Riobaldo podem ser enfatizados pela data de nascimento de Diadorim, que, por si só, dispensa qualquer comentário: 11 de setembro.

Atravessar a leitura de Grande Sertão: Veredas é uma experiência que deixa cicatrizes para os leitores de fôlego que chegam à última página. "Nonada" é a primeira palavra; "Travessia" é a última palavra escrita. Mas o livro termina mesmo sem fim, com o símbolo do infinito, que não está escrito, está apenas desenhado, tornando a travessia do sertão (e da leitura do Grande Sertão) algo mais sutil, menos tangível, mais sem fim, uma "quase" leitura. É, na verdade, por tudo isso, um convite permanente à releitura e a novas descobertas.

 

 

 

 

dezembro, 2010