*

 

adoro sentir calor

no inverno


fome na ceia


água na toalha


gelo no café


adoro sentir

que tudo é possível


na medida

do improvável.

 

 

 

 

 

 

onde

quero uma casa em Belo Horizonte,


c/ vista para Sabará,

1 corredor que dê em São Paulo


e porta dos fundos

para o mar.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

caldo de mandioca


beba, coma, morda

a sopa no seu prato.

vou abrir pra você

a sardinha na lata.

''quero caldo de bar''


eu disse


''quero você''.

me beija que não amolo

nem a faca, nem a palavra.


branco no branco,

língua lambendo língua.

a narina no seu rosto,

superfície suave e áspera.

seus pêlos calados...

um, dois, 3, quatro,

cinco.
sua pele faz sentido(s)

quando me toca.


me cala a boba

e fabrique uma casa amarela

debaixo de nossas solas.

 

 

 

 

 

 

pro seu baile à fantasia

 

subo escadas pra cuspir do alto

do mais alto que puder

e não sou homem,

e não masco tabaco


escavo a descida escarrando alturas

até doer

até ser delícia


amarro meu pé em minhas meias

passo boca no meu batom

pra cair na sua piscina

de terra seca e azul

 

 

 

 

 

 

Detrás do traço


Quando começam, estou perdida. Quando acabam, já se perderam. Talvez seja o tempo ou as idéias. Ou a respeito dos dois, numa dimensão qualquer. Talvez seja sobre nada e eu não saiba o que digo. Corro o risco e assumo o fardo — ainda que fadado. O novo já envelheceu. Eu também. E é incrível quanta coisa cabe em um parágrafo. E como aspas podem ser tão mal fechadas. E como poesia pode virar prosa. E quanta coisa se perde entre o ponto e o traço. Inclusive o tempo. Até a graça. Voam aviões, traçam em vão. Que me diz dos riscos no céu? Digo que as coisas e eu somos um. E os riscos também. Nunca e a todo tempo. Agora já não sei onde foram parar. No fim? Ou no tempo. Quem sabe no ponto — frágil, único e mal traçado.

 

 

 

 

 

 

Paulo e o lago


À esquerda de Hilda, havia a água. Seus pés já tinham se libertado das sandálias e arriscavam mergulhos. O vento batia em seu vestido largo e a empurrava pra frente e pra trás, como se ela fosse um barco. Já à sua direita, havia gente, muita gente – rostos que tentava guardar, mas que escapavam tão rápidos quanto vinham. Dentre eles, apenas um era fixo: o de Paulo. Fixo até demais. Não sorria, não falava e, principalmente, não tirava os olhos de H.. Tanto que, diante dum pequeno tremor de queixo:


— Vamos sair daqui, essa água gelada...

 

— Quero ficar mais — respondeu, sublinhando o ponto final:


P. compreendeu que não deveria insistir, que não devia fazer nada além de olhar. Porém, se quando se equilibrava numa perna só, segurava o corpo inteiro fixando a vista num ponto, sabia que mirar H. era muito mais que um gesto à distância.


Sentindo a nuca arrepiada, H. se voltou para P. e se espantou com o despudor com que era observada. Conferiu, aliviada, que ao redor ninguém mais dava atenção à cena. Pouco depois, se achou uma boba. Não fazia nada de errado e não devia se importar com o que pensavam os rostos voláteis. Abaixando a cabeça, se viu refletida e envergonhada naquela poça enorme. Afinal, o lago não passava disso, como ela não passava de uma menina grande. Tinha a impressão de que, se o vento viesse mais forte, todo o seu disfarce de moça voaria. Pelos ares iria a postura, o vestido, as sandálias. Restaria, então, apenas ela e aquilo de que mais gostava.

 

 

 

 

 

 

neste lago, H.

 

hoje em dia não existe mais isso de lugar longe, H. e não sei porque sinto sua falta. você deveria estar sempre perto de mim, sua mão sempre ao meu alcance. mas é possível a distância, desde que se queira — e eu quis, jurando que a vontade não era minha. logo eu, que há poucos dias fui tão alegre e genuinamente feliz; logo eu, que aprendi que te olhar (como eu te olho) não é um gesto sem efeito. verdade que nosso afastamento é produto do meu desejo teimoso e da sua sonsice, des'seu jeito de barco de sem leme, e nada mais. e essa é toda a verdade que tenho debaixo das mangas, faltando apenas o que nenhum de nós pode esquecer: quero estar sempre ao seu lado.

 

 

 

 

 

 

A aranha


, de 78 patas, arranha 1900 vezes a minha jarra. Com suas agulhas, risca também o disco de vinil. Sombras tristes dançam sob o lustre de duas décadas. Tudo é esquecimento. Vestidos azuis tornaram-se peça de luto; peles douradas, grafite; olhos de ciúme, negros. O batom vermelho-vivo que borrava a boca de Roberta também não escapou — não passa agora de tinta escura.


Só das teias eu me lembro, sem perder detalhe, pois são as mesmas e sempre vão ser. Então perguntei à aranha: era isso que pretendia me mostrar? que vocês resistem? Não tive resposta. Claro, era uma aranha. Que podia fazer? Transformar-se em moça e me beijar pra dizer que sim? Bebi o último gole e brindei de taça vazia. Quis esmagar o bicho, mas correu às minhas mãos e me olhou com cara dócil: me diz o que faço, por onde começo. Devia ser digitadora. Tem muitas mãos e é capaz de ouvir indefinidamente sem entender. Estou brincando, sei que me compreende, só é tímida. Já é hora de ir. Grato pela companhia.


Não há de quê — respondeu-me, para meu espanto; mas a voz era de Roberta, que ouvia a conversa como se fosse com ela. De sobressalto, pediu que esperasse um segundo — o que já estava fazendo só de susto. Correu, pegou minha mão e disse: começa assim. E, antes que me desse conta, Roberta me dizia, 1987 vezes, que sim.

 

 

 

 

 

 

Arranha-céu

Quando estou brava, pinto minhas unhas de vermelho. Hoje não é o caso: estou à francesa, indisposta para despedidas. Infelizmente, lá vem a caçamba e tenho de dizer adeus à cidade miúda onde moro: mil ruas se desdobram nos cômodos de meu apartamento e cada porta é uma esquina. Toda manhã, no trânsito voraz da copa, minhas cadeiras colidem com a mesa. Em protesto, os sapatos organizam-se em passeata. Desesperado, o chuveiro chora sem cessar. Já a cama faz o que sempre fez: dorme com qualquer um, a qualquer hora. E eu, pelo espelho de meu esmalte, observo-os todos.


Quando escutei os pés do senhorio, no corredor do 20º andar, a chave já estava com os dentes cravados em minha mão. Sem nada a dizer, a entreguei. O homem também não mexeu os lábios. Em silêncio, desci as muitas escadas, fui até a porta giratória e a empurrei. Finalmente, dei de cara com a grande cidade, que há muito eu evitava encontrar. Pelas unhas, vi carros e meretrizes se juntarem a mim. Depois, homens de barba, velhos descalços, crianças de mochila, uma pessoa e mais outra e mais outra e mais outra. E o mundo, a partir de então imenso, não coube mais na ponta dos meus dedos.

 

 

 

 

 

 

Meu prato cheio


O que me atormenta é o não dito. Torturo o meu eu para depois escrever em primeira pessoa. A fuga é o mergulho. A água é azul, mas só enxergo o cinza. Não adianta praguejar contra as memórias em preto e branco. Não vejo cores agora. Maldito Almodóvar. Maldita atenção que presto, imprestável. Uma formiga cinza parece feliz com o suco cinza derramado. Uma formiga aparece morta. Ainda cinza. Inveja abastada. Persistência da daltonia psicológica, contudo. Com tudo pronto. Nem todos os feitos. Fiz o dito, mas não disse o ditado. Mas que importa tudo, todos, eu? Que importa a formiga, o cinza, o Almodóvar? Benditos sejam. Mas que sejam ditos.

 

 
 

(imagem ©tomooka)

 

 

 

 

Valquíria Rabelo (Belo Horizonte/MG). Editora do Jornal A Parada, ao lado de Daniel Bilac. Tem poemas publicados no jornal Dezfaces, na Revista Ato e no folheto Barkaça. Estuda Comunicação na UFMG e Design Gráfico na UEMG. Edita o blogue Formalguma.