Marcelo Mirisola é um dos escritores de ficção mais interessantes que apareceram na literatura brasileira contemporânea. Publicou livros como O Herói Devolvido ou O Azul do Filho Morto, duas amostras de sua escrita ao mesmo tempo violenta e requintada. Não a simples violência urbana (esse pobre mote de qualquer esquina), mas aquela que carrega uma potente criticidade. Em suas crônicas é um atirador vigoroso que quase sempre acerta o alvo. Esses alvos são móveis, se vestem bem, bebem vinhos importados, fazem politicagem de todos os tipos e, como não poderia deixar de ser, tentam "fechar as portas" ao pensamento do autor. Seus textos dão muito que falar. E mais: muito que refletir.

 

Já pelo título, sugestivo e mordaz, Proibidão (Demônio Negro, 2008), inspira algo entre o deboche, a repulsa e a ira. O livro é composto por textos recusados pela imprensa em geral. A proibição, travestida em vários "nãos" recebidos pelo autor, serviu como uma espécie de antídoto para que Mirisola sobrevivesse aos seus pares.

 

Entre muitos acertos e alguns equívocos, o autor declina seu verbo demolidor, atingindo seus propósitos e fazendo ruir impiedosamente os castelinhos de areia do pasteurizado ambiente cultural brasileiro. E nesse intento não poupa ninguém: editoras, bancos, encontros literários, padres, apresentadoras de TV, "poetas" da Vila Madalena, samba de raiz etc.

 

"Não me convidaram para essa festa pobre. Nem a mim nem ao Cazuza. Ele porque já foi pro beleléu, eu porque sou um falastrão e devo representar alguma espécie de ameaça ao convívio de tão ilustres, sociais e educados escribas", assim é a abertura do primeiro texto de Proibidão, "Paraty 2006", um dos mais conscientes e ácidos do conjunto. A FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty), chamada aqui de "arraial literário", é o palco do "cirquinho de horrores", onde se apresenta o mundo das letras "colorido e fofo", mas também "irresponsável e perigoso". É em festas como essa que são decididos, por gente que não entende nada do métier, quais os livros e autores que devem ou não ser lidos. Entre uma tenda, uma mesa e uma garrafa de uísque, os poderosos da indústria editorial (e isso não tem nada a ver com literatura, é bom que se diga) legitimam este ou aquele autor ou livro. É um aglomerado de festejados e, no fim das contas, o que deveria importar, a literatura, fica como sempre em segundo plano. Afinal, ninguém dedica a mínima atenção a ela. Nem os próprios escritores. Como se lê em outra crônica, isso é nosso espírito de época, nosso vergonhoso zeitgeist com pinga, açúcar e limão e, óbvio, "toda época tem o zeitgeist que merece".

 

Toda a hipocrisia de uma classe média que chegou a seu mais avançado estado de putrefação está exposta aqui à visitação pública. Seja na forma de uma fútil apresentadora de TV que esconde seu racismo sob sucursais que atendem pelo nome de "programa de auditório", "assistência social" ou "ONG"; seja um padre omisso e sem senso de ridículo que inventou a "missa aeróbica"; sejam os "escritores" do momento que produzem tudo, menos literatura. O odor é insuportável, mas a exumação desses cadáveres não pode, nem deve, ser adiada.

 

Nesse ambiente destruído, nossa wasteland do mau gosto, há ainda tempo e espaço para "Um pouco de lirismo", uma das seções do livro.

 

"Valentina e o laranja intenso" é uma espécie de texto feito de brisa que fornece respiro ao conjunto — até aqui, doador de pancadas. O sujeito que, ao ensinar Valentina, a filha "postiça", a "assoprar bolhas [de sabão] a favor do vento", acaba também soprando vida à circunstância. Mesmo inserido em flagrante tensão, a consciência da dor da perda retalha o texto com passagens como: "Valentina me assoprou um beijo quando o táxi partiu, Camila fazia bolhas de sabão com o brinquedo da filha. Voltei à praia e considerei seriamente a hipótese dos Castelos de Areia e das Bolhas de Sabão. Mas o que prevaleceu mesmo (pelo menos na minha memória e apesar do laranja intenso) foi a imagem do táxi indo embora".

 

Textos tão agudos quanto bem escritos como "Pai" mostram grande força narrativa: "Na verdade, tememos pelo nosso próprio destino. Pelo tempo que não é tão longo assim e que passa rápido demais, e se há algo nessa história que prova que, apesar da distância entre uma pessoa e outra, o amor existe e que não é o tempo que voa, bem, esse 'algo' é a busca obstinada pelo encontro (ou pela paz)". Entrecortada pelos versos de uma canção de Fabio Jr., a crônica, que poderia descambar para o pueril, vai, no fluir da escrita, criando uma instância lírica que envolve o leitor. Superar a indiferença dos tão conturbados relacionamentos humanos (em todos os níveis) para inaugurar uma espécie de eldorado pessoal e intransferível, onde o inevitável confronto da lembrança esteja acima da pieguice e abaixo da devoção: "Ah, e agora que meu filho me olha nos olhos e eu, envergonhado, vejo você? Onde ponho você nessa estante? No lugar do herói ou do bandido?".

 

Proibidão pode ser lido como um livro de apontamentos. Entre o que é acessório e o que é essencial, a nossa literatura fica com a primeira opção. Fazer corte aos poderosos do mercado (os que legitimam uma arte de quinta categoria em nome do capital) não é a opção destes escritos. Mesmo que seja pelo viés do escracho o anárquico Mirisola não perde a piada. E gostar ou não do que está escrito aqui neste Proibidão não tem a mínima importância. O que realmente interessa é que é um livro escrito, antes de tudo, por alguém que sabe escrever e não tem medo de pôr o dedo nas feridas. E isso, num ambiente tão venoso e falso como o literário, merece os mais sinceros aplausos.

 

 

 

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O livro: Marcelo Mirisola. Proibidão. São Paulo: Demônio Negro, 2008.

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março, 2009

 

 

 

 

 

 

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