Maria Luisa sai do banho de sais aromáticos às doze horas e trinta minutos. De roupão de seda bege, dirige-se à penteadeira de mogno. Abre o roupão. Está nua. Delicadamente, passa creme francês de tartarugas centenárias pelo corpo. Desliza as mãos pelos seios. Acaricia o ventre. Massageia os braços e o pescoço. Adora passar creme no pescoço. Dá uma vontade de rir! Senta-se na cama e massageia as pernas com óleo de amêndoas. Tão perfumada! Sente-se uma rosa do jardim.

A lingerie: branca, simples. Rendada. De marca italiana. O vestido é de pequeninas flores vermelhas, com um suave laço de seda atrás. As sandálias são de couro entrançado, com uma fivela dourada. Está quase na hora do encontro! Ah, que felicidade, todos os dias, de segunda à sexta, das quatorze às dezoito horas, ele a visitava. Tão interessado!!! Era muito silencioso aquele rapaz, mas com o tempo... Ora, com tempo, tudo se resolve. Além do mais que todo mundo sabe: os calados são os mais perigosos! Os melhores! "Melhores para quê?". Perguntava-se Maria Luisa. E enrubesceu com a resposta que pensou e despensou em segundos. Enrubescer... "Hoje em dia ninguém mais enrubesce...". Olha-se ao espelho. São treze horas e trinta minutos. Está linda! Uma belezinha! Olhando-a assim, ninguém lhe diz a idade: oitenta e dois anos.

Som da campainha. Três toques. Maria Luisa demora-se. Não quer que o rapaz suponha que ela está atrás da porta, a esperá-lo. "Boa tarde, D. Ma...". "Dona não, você já está vindo aqui tomar lições há um mês, já pode me chamar de você". [....] O rapaz nada responde. Maria Luisa solta um risinho. Marcel. O nome do rapaz é Marcel. Viajará para Roma. Precisa melhorar o italiano. A sua avô, hospitalizada, dissera-lhe: "procure a Maria Luisa, a Lú Lú, minha amiga". E ele fora em busca da Maria Luisa. Surpreendera-se: oitenta e dois anos! E facilmente passava por sessenta. A Lú Lú não era de se jogar fora. Cada pensamento imundo que o sujeito às vezes tem. Uma senhora... com idade para ser sua avó. Acontece que Maria Luisa não era sua avó. Era amiga da sua avó. Casara-se três vezes, romances infelizes, desordenados. Os homens sempre reclamavam que ela não compreendia os sentimentos. Chamavam-na de fria, insensível. Marcel gostava de Maria Luisa. Achava-a bela, mas, mas, ora mais! Pelo amor de Deus, era amiga da sua AVÓ... Maria Luisa era uma bela senhora. Um retrato antigo. Um retábulo. Marcel, sorrateiramente, pensava: se eu der um abraço, ela se quebra. Ou não.

As "lições" eram animadíssimas. Maria Luisa era muito bem informada. Marcel, em silêncio, escutava: "Se vorrei imparare, devi parlare, ragazzo!". "Ma io già so parlare signorina, mi piace ascoltare". Dizia, entre risos, o Marcel. Quando sorria, umas covinhas apareciam nas bochechas do Marcel. Maria Luisa adorava. E o perfume dele, então... Que marca seria aquela? Era francês. "Tuo proffumo, di dov'è?". "Francese, signorina". Signorina... hum, sentia-se ensolarada quando lhe chamavam de signorina.

Dezessete horas e quarenta e cinco minutos da sexta-feira. Última aula. A viagem de Marcel, agendada para a segunda-feira. Maria Luísa, contidamente emocionada, derramando-se por dentro, uma antiga energia atiçava-lhe as rugas, movimentava-lhe a alma. Marcel estava ansioso. Era sua última aula. Estava fluente. Escolhera uma camisa cor vinho, pois Maria Luisa dissera que essa cor lhe caía bem. "Com essa cor, meu filho, você fica mais forte, suas costas parecem mais largas". Marcel fazia-se de distraído, balbuciava algum "você acha?". Ela sorria repartida, meneava a cabeça, alongava o olhar, corava: "Acho... mais largo...". E as lições prosseguiam. Maria Luisa encomendava delícias da culinária italiana e dava na boca de Marcel. Falava sobre filmes, artistas, música, perfumes, curiosidades. Gostaria de ter Maria Luisa sempre à disposição, na sua estante. Um dia, mandara rosas vermelhas, em outro, uma caixa de bombons. Gravara um CD com músicas antigas, somente para ter o que conversar com ela. Tudo em vão. Ela fingia não compreender? Ele sofria. Em casa, ficava longas horas calado, melancólico. Seus olhos em constante inverno. 

Na sexta-feira, Marcel levantou-se bruscamente da poltrona, interrompendo a lição: "Pois é, D. Maria Luísa, já vou"."Mas tão cedo?". "É... tenho que organizar as malas...". Marcel, desconcertado, silenciara. Maria Luisa dissera claramente que ele ficava bem com aquela camisa, mas agora não comentava nada. Parecia desprezá-lo. Sentia-se esquecido. Indignava-se mudamente. Quem ela achava que era? Ríspido, afirmou: "A senhora foi uma boa professora". Aquele "senhora" deveria mortificá-la. Mas o rosto de Maria Luisa estava indiferente, imparcial. Marcel baixou o olhar. Velhinha mais inusitada aquela. Ela sorriu, agradeceu o elogio, que não era tão boa assim, que já fora bem melhor em outras épocas. Tudo em tom informacional. A velhinha cumpria um ofício... o de envelhecer. "Mas então a senhora não entende?". Maria Luisa assustou-se com a pergunta, jogada em seu rosto, quase um tapa. "Entender o que, meu filho?". Filho? Seu filho? Marcel baixou a cabeça, mordeu os lábios, extremamente envergonhado. Resolveu ir embora dali. Estava platônica e irremediavelmente apaixonado.   

Depois que Marcel saiu, Maria Luisa olhou-se ao espelho, procurou o batom, para retocar o desenho dos lábios. Gostava de deixá-los carnudos, suculentos. Sorriu, deitou-se: "Mas o que foi que eu não entendi, meu Deus?". Entender era tão custoso. Pensou fixamente em seus três falecidos maridos. Eles afirmavam que ela não entendia. Rosas vermelhas, bombons, músicas, elogios. Mas, súbito, a mão tremeu, a vista turvou-se, o coração, aos galopes, apertou-se contorcionista num muscular abraço. Maria Luisa entendera! E se arrependera de ter pensado tanto. Homens... Irritada, com o ar que respirava a pesar-lhe no peito, dormiu em estado de perdição. Porém, de tão cansada, esquecera de acordar, para sempre.

 

 

 

 

 

Chocolate. Barras de chocolate ao leite, com flocos de arroz. Brigadeiro. Leite condensado escorrendo. Bananas caramelizadas. Bombons. Trufas. Cerejas ao licor. Chocolate derretido. Churrasco. Carne gorda, mal passada, o sangue pingando. Mesmo que comer um boi todo. O grosso do sal. A coca-cola estupidamente gelada com rum. Cerveja. Vinho. Tantas comidas para tão curta vida. O mundo oprime de tanta vontade de comer. Escorre pela boca o sangue do porco. Tão imponente o porco dourado com a derradeira maçã a distingui-lo dos suínos comuns. A maçã era o que menos interessava. Tenro, o porco oferecia-se, pleno. Enigmático, sussurrava casualmente: "decifra-me ou te devoro". Restava devorá-lo. Sem remorsos. Comê-lo como se fosse o último porco da terra. Depois, abandoná-lo. E comer arroz, feijão, grossas lingüiças vermelhas. A gema do ovo sobre o queijo derretido incitava loucuras. O macarrão encarnado e rico em cebolas atraia irresistivelmente. E os bolos. Os brigadeiros. Os infinitos salgadinhos sobre brancas bandejas. E o desmanchar-se das comidas por entre os dentes. A sutileza do peixe frito e suas espinhas. Lutaria com todas as forças para destrinchá-lo. Guerrearia com aquele robalo, até que um dos dois vencesse!

Em cada esquina, um pastel de frango, de queijo, de carne. Em cada rua, um pouco de caldo com pão de ontem. Na geladeira, muito doce, que é o que salva. Torta de leite condensado, coco ralado e chocolate. Durante o trabalho, bombons variados. Não importava a marca, deveria ser doce, extremamente doce. Então descobrira o incurável problema. Deveria usar expressa e eternamente aspartame.

Mas como é que pode... logo ele? Ele que vivia para os doces, e também para os salgados? Que passara dois quartos de século mais todos os dedos de uma mão a comer? A viver os alimentos intensamente, como que procurando o melhor sabor? Não... isso era um pesadelo. Ainda não achara o sabor dos sabores. A vida tem um cerne crocante, ele ainda não conquistara o que havia de mais delicioso.

E continuou a comer. Agora, escondido. Um marginal das comidas. As pessoas vigiavam-no. E os tempos áureos dos churrascos haviam acabado. Somente alimentos pálidos e sem gosto. Alimentos tristes. Chuchus antipáticos. Pepinos depressivos. Ele reclamava. Dizia que preferia a morte. Que sonhava com uma existência entre doces. As pessoas lembravam que no mundo há quem passe fome e que ele deveria dar graças a Deus. Deus? Que Deus é esse que nega ao seu filho o açúcar? Oh, como sofria aquele homem.

Então, numa chuvosa noite, ele saiu. Todos dormiam. Metodicamente, abriu a porta. Tomou as ruas. Livre, enfim livre. Num mercado 24 horas, comprou doces, o que de mais doce havia. Doces crocantes. Salgados de toda a espécie. Bebidas adocicadas. Sentou-se na calçada. E devorou tudo. Depois, saiu correndo no meio do temporal. Estava no ápice da felicidade. Tão feliz. E tonto. Terrivelmente tonto. Desmaiou no meio-fio.

Pastosamente, acordou. Sentia-se como argila despedaçada, massa de pão sem fermento. Cometera um grande crime. O terrível pecado. Comera. Mas não estava arrependido. Faria tudo outra vez. E que não o vigiassem mais. A vida não pode ser insossa. A vida é doce. É caramelizada. É crocante. Por favor, parassem de chateá-lo! Arranjassem logo uma bandejinha de brigadeiros ou ao menos um saco de pipocas. Não tinha tempo a perder. Não tinha doces a perder. As pessoas, sempre as pessoas, olhavam-no incrédulas. Aquele homem queria morrer. Oh, sim, ele morreria por uma causa justa, por um ideal honrado. Se morresse, morreria sem fome. Satisfeito.

Certo dia, para a surpresa de poucos, não mais acordara. Para o velório, a esposa encomendou dois centos de docinhos e salgados sortidos. Quentinhos, fumegantes, no ponto em que gritam: "devore-nos, porém, antes, mergulhe-nos no molho".

Secretamente, todos sorriram, íntimos, irmãos, numa volúpia de sabores. O morto, reflexivo, concentrado, encontrara o cerne crocante da vida.

 

 

 

 

 

 

         Na fila do exame médico, ele esperava. Era moreno. Aquele sim que era homem para se ter numa guerra. Homem que de cara podia se dizer: "Esse sim! Esse eu quero!". Moreno bronzeado, alto, costas largas, uns braços e pernas fortes. Abdômen definido por quatro séries de trezentos abdominais três vezes por semana. E aquele peitoral. Meu Deus, aquele peitoral de pêlos negros, bem divididos e a tatuagem de serpente. Aquele peitoral forte, maciço, orgulhoso. Aquele rapaz inteiro era maciço, duro, forte. Cavanhaque escuro, olhos castanhos, dentes brancos e lábios grossos. Lindo. Corpo de homem, rosto de homem. Mãos fortes e quentes. E beijava de um jeito impossível, uns beijos que arrancavam a alma de tão intensos. Seus beijos pareciam ondas quebrando na areia. Todas as mulheres ficavam tontas. E ele adorava aquela excitação, a loucura que provocava. Sorria. Nunca falhara. No momento certo, lá estava ele: inteiro, uma lança. Ah, as mulheres enlouqueciam! Ele é que não enlouquecia muito.

         Verdade seja dita, gostava, sentia prazer, mas definitivamente... definitivamente, ele talvez desconfiasse que as mulheres não sabiam agradá-lo.  Mas isso era segredo que ele mesmo não aceitava.

         Na fila, muitos rapazes, de cueca. Trajes sumários. Estilo box. O moreno surpreendia por sua altura. Um metro e noventa. Fora de cueca branca. Ele mesmo lavava as cuecas. Não tinha mãe, nem irmã, nem avó. Fora criado por homens: pai, avô, tio. Todos que nem ele: morenos, altos e fortes. Meio envergonhado, o moreno mordia o lábio inferior e olhava para os lados, com um jeito muito sério. Quando parava de morder os lábios, surgia uma marquinha branca, que durava uns três segundos. Era a pressão dos dentes no lábio. Ele cruzara os braços e, mudo, esperava sua vez. Olhou para sua cueca, suas pernas fortes e pensou: "Mas tu é bonito". À sua frente, uma fila de gatos secos, uns pretos, outros brancos, alguns amarelos. As nádegas dos outros nem se comparavam com a dele. Aquilo sim que era bunda! A dos rapazes da fila eram murchas, pequenas, umas tinham até pêlos. "Que porcaria, o cara deixar pêlo na bunda!". Outra coisa que ele achava nojenta: pêlo nas costas. Graças a Deus que ele nascera lisinho, lisinho. Somente os pêlos necessários. As mulheres adoravam. Sentiu uma pontada no ombro direito. Olhou. Havia uma marquinha roxa. "Porra, aquela cachorra me mordeu...". A cachorra era uma menina que ele havia conhecido no bar. "Sei lá, parece que tem mulher doida...". Pensava. A cachorra era desse tipo. Era uma coisa de morder a orelha, o lábio, morder o ombro, arranhar as costas e sussurrar: "Me come, me come". Imundície, aquilo. O moreno gostava das mais tímidas. Então quem mordia, apertava e sussurrava era ele. Mas nada que fosse real. Ele fazia essas coisas mais para fazer mesmo... "Mulher é cheia de frescura, não gosta de nada". Sinceramente... Ele, às vezes, achava as mulheres um saco. Bom mesmo era jogar bola com os caras da rua!

         A fila andava muito devagar. Atrás dele tinha um loirinho: baixo, magro, uns cabelos finos, fininhos, desmaiados sobre a cabeça. E uns olhinhos azuis, de um azulzinho fraco. O moreno então lembrou da ex-namorada. A ex era uma santinha: toda delgada e loirinha e educadinha. Mas um dia, há uns dois meses, beliscou a bunda dele. O moreno se enraiveceu!!! "Na minha bunda ninguém pega!". A ex fez cara de choro, tomou coragem e disse: "Eu acho que você é bicha". Ele deu uma tapão na cara da ex. E foi embora. "Bicha, eu...". Aquele ali não era bicha não! Aquele era homem. E homem MACHO!

         A maioria dos rapazes conversava, mas nada de se olharem fixamente. Todos pareciam bem desconfiados uns dos outros. "Cara, eu quero que me dispensem... negócio de exército...". "Mas é dinheiro, rapaz... dinheiro é bom". Diziam. O moreno queria muito ser selecionado. Ele e o exército combinavam. Começaria cabo, mas com paciência conseguiria postos mais elevados. Era bom corredor, excelente nadador e, não se pode esquecer, lindo. Mas estava meio perturbado. Por ser o mais bonito da fila, o único, de fato, inteiramente homem, começou a pensar: "Esses cara tão me olhando. Tão me olhando mesmo". Inicialmente, ficou tímido, mas depois... depois sentiu um prazer estranho em pensar que estava sendo observado. Olhado por outros rapazes. "Já pensou, se eu pegasse esse loirinho aqui de trás, eu matava ele numa noite...". MEU DEUS! O que ele estava pensando??? Que tipo de pensamento era aquele? Ele, homem macho, atleta, bonitão, que enlouquecia as mulheres... Não, ele devia estar era com fome. Saíra muito cedo de casa. O sol estava quente. Estava mesmo com fome e sede. Queria ir embora correndo, sumir dali. Queria comer e beber até desmaiar. "Comer e beber outro macho!!!". Sentiu-se nauseado, vulgar, obscuro. Um calor subia-lhe pelo corpo. Latejava. Endurecia. Procurou acalmar-se.

         A paz não durou muito. Do nada, nem ele sabe porque motivo, virou-se impetuosamente para o loirinho que estava atrás. O rapaz assustou-se. O moreno olhou-o profundamente nos olhos, um olhar de devorador, e puxando-o para si deu-lhe um beijo na boca. A fila, em suspenso, olhava os dois. O beijo durou cinco minutos e trinta e dois segundos. O moreno saiu correndo. Alguns dizem que ele ria, outros afirmaram que ele chorava, mas todos confirmam: ele estava excitado, muito excitado. E saíra louco, a correr, e o seu volume denunciava o quanto ele era homem. Excessivamente homem. Um verdadeiro macho. 

 

 

 

 

(imagem ©giselle salas)

 

 

 

 

 

 

Sarah Forte (Fortaleza/CE). Estudante de Literatura Brasileira. Gosta de escrever contos. Uma iniciante.