Tudo por causa do sol

 

"Cada artista mantém no fundo de si uma fonte

 única que alimenta durante toda a sua

vida o que ele é e o que ele faz".  Albert Camus

 

 

Entrei nesta história por acaso ao fitar o sol de Camus entre a navalha e o reflexo da morte. O erotismo insinuante do astro transmitiu-me o ardor de uma cebola cortada, tirando-me lágrimas dos olhos. Imensamente só, fiz-me estrangeira naquela praia imensa que se confundiu com o cosmo. Eu já não era real quando tirei a roupa e corri nua pela praia deserta.

Estou feliz. Agora a vida não passa de uma ficção, de uma grande metáfora cheia de mitos e heresias, onde hei de exilar-me para sempre da realidade e passarei a cometer crimes testemunhados unicamente pelo sol.

Sou uma personagem. Ninguém mais irá pôr o dedo na ferida dos meus limites. Habitarei incontáveis páginas escritas e reescritas dias a fio. Uma pena qualquer me delineará e numa ou noutra página emergirei, longe das futilidades cotidianas. Cometerei loucuras e pecados jamais imaginados. Serei andrógina, homem ou mulher, morrerei e ressuscitarei refeita, reescrita, recriada. Ora serei fria, dura, insensível. Algumas vezes serei terna e amorosa. Passearei por metáforas, silepses e pleonasmos e percorrerei todos os gêneros literários.

Os teóricos da Literatura dirão se sou uma personagem plana, de traços simples e permanentes ou se uma personagem esférica, que se modifica ao longo da narrativa, pois surpreendo por minha complexidade.

A arte ingovernável da palavra me fará fluir ao sabor de mil interpretações. Após cada capítulo sentir-me-ei renovada ao aflorar subitamente com novos detalhes, novas referências.

Serei mágica, fantástica, utópica. Existirei sem motivações numa estória sem flagrantes, no enredo mais delirante, surreal e metafórico, onde os leitores me decifrarão e me devorarão. Cairei em ciladas ideológicas, mas sairei ilesa dos lugares comuns e dos torpes vícios de linguagem.

Sim, cometerei crimes agora sem culpas nem dramas de consciência. Porque serei uma personagem autônoma, onírica, presa apenas à imaginação dos que me lêem. E serei bela como cada um quer que eu seja. Ou serei feia, ou insinuante ou misteriosa...

Ao final da história hei de evadir-me para esse lugar do nada ou de ninguém de onde o autor me tirou.

Um dia, somente por causa do sol cometerei o crime mais imperfeito ao reflexo de uma navalha, no mais belo e enigmático romance de Albert Camus.

 

 

 

 

O dia em que matei meu analista

 

 

"A minha alma é presa da mais livre loucura".

Sady Bianchin

 

 

Ele ri das minhas dores de cabeça e do meu desânimo. Ri, depois fica sério, circunspecto. A cabeça faz viagem. Sei que não existo ali perto, apenas falo. Ele não se mexe, num silêncio devastador. Finalmente se resolve e as palavras resvalam num vazio sem paredes e tetos.

Entro na sala silenciosamente e observo as cortinas dançando ao vento. Deponho um bilhete na mesa. Pouco me expresso falando e penso que isso o irrita. Óculos na ponta do nariz, ele quer parecer mais velho. Olha-me enviesado e finalmente se resolve a ler: "Para o diabo com essa verdade mais verdadeira. Fique com ela. Ela é sua. Não precisa me devolvê-la, tenho defesas outras".

O olhar é longo e me alfineta. O olhar é um estilete de lâminas quase microscópicas que só me penetra e não me resolve. O silêncio do olhar me endoidece. Dou porradas na mesa como dou nesses diabinhos que me perseguem. Um olho me absolve e o outro me ordena que eu tome o meu devido lugar.

Deito-me no divã e sinto-me lúcida, quase feliz. Divago. À noite ligo e pergunto se ainda é válido o convite para o jantar. Do outro lado uma voz se alegra e confirma. Sinto e vejo o gesto da boca falando em câmara lenta. A morenidade é do rosto do analista, os cabelos dispersos, o rosto imberbe. Dele é aquele olhar omisso que me anula e me hipnotiza as esperanças. Meu analista é assim: essa coisa inalcançável, que eu necessito domar para me sanar de corpo e mente. Um ser estranho que apenas me olha e me ouve. Só lhe vejo o movimento dos lábios e não sei lê-los. Disserta sobre as coisas mais impossíveis e inoperantes, como realidade, princípios certos, coisas exatas, autenticidades, representação fiel de uma coisa qualquer que ele julga existir. Verbalismos sem nexo que se perdem no tempo e no espaço. Meu psicanalista é assim desalmado, distrai-se ao falar, tergiversa. Quer me rebuscar, me revolver. Quer-me presa. Um verdugo de mentes, um carrasco, o que ele é.

Pois confesso ter aceito desta vez o convite para jantar. Nem jantamos. O carro deslizou pelo asfalto uma fita do Caetano, "Você me deixa a rua deserta, quando atravessa e não olha pra trás...".

Olho de soslaio o meu psicanalista. Depois, sem medo, resolvo olhá-lo de frente. Ele não se toca, não se deixa penetrar. Irritam-me a arrogância e o despotismo dos gestos. Um cínico...

Não há muito o que contar sobre o que acontece depois. Um freio brusco, uma lua grande falando de manchas antigas e de uma geometria perturbadoramente exata a olho nu. De um lado, colunas de areia. Rodeia-nos ainda um nigérrimo e imenso mar e mais dois segmentos opostos de estradas mal iluminadas. Entre gestos que se avizinham, um beijo excessivamente molhado. Duas mãos ávidas acariciam as costas largas e bem torneadas do psicanalista. Entre os dedos, a lua se faz refletir no canivete afiado.

Não há como descrever esse momento sublime. Eu tinha ali, nos meus braços, o sangue e o corpo do meu analista, agora rendido, repousando em meus ombros. Tinha as dunas, a lua e o barulho do mar. O vento varrendo os nossos cabelos e nos acariciando o rosto.

Sei que abri os olhos e sorri de felicidade. Levantei do divã e olhei em direção à janela. Sentia-me flutuar. Novamente o vento. Novamente fazia com que dançassem as cortinas. O analista me olhou espantado e eu lhe fechei os lábios com os dedos, para que nada mais acrescentasse àquele momento divino. Despedi-me dele para sempre, sem cansaço, sem agonia.

 

 

 

 

O tênis cor-de-rosa

 

 

"Temos de ir à procura das pessoas, porque

podem ter fome de pão ou de amizade".

Madre Teresa de Calcutá

 

 

Betina entrou na sala de aula com passos miúdos e cautelosos, para que seu lindo calçado não se sujasse. Era um tênis cor-de-rosa, que ganhara de D. Alzira, para quem sua mãe lavava roupa. Não cabia mais no pé da sua filha e quem sabe dava na menina de Francisca. Esta sorriu de alegria, pelo presente que daria à filha no dia do seu aniversário.

Naquele dia tomou banho sem que a mãe mandasse. Aliás, ela raramente mandava. Somente quando acordava sóbria, o que era inusitado. Se o dinheiro da bebida acabava e o dono da venda encerrava o fiado, ia à casa da D. Alzira lavar roupa e esta sempre lhe dava algo para comer. No final do mês era uma festa, ao receber o Bolsa Família. Comprava na venda um pastel com refrigerante de uva para a menina e pagava a conta mensal. Bebia o dia todo, entrando pela noite. Saía de casa e voltava com mais um pretendente.

A meninada a olhava insistentemente. Betina, toda orgulhosa, atravessou o portão da escola. Na classe, ninguém ousaria caçoar dela por sua sandália de borracha cujo cabresto estava preso ao solado por um prego enferrujado. Jogara na carroça do lixo. Agora possuía sapatos de verdade.

Na hora do recreio, podia ir ao pátio exibir seu tênis cor-de-rosa. Mas não foi. Ficou parada, sentada na cadeira, tensa, calada. A professora notou que hoje ela não fedia a fezes como nos outros dias. Certa vez fora preciso levá-la ao chuveiro e mandar tomar um banho. A pele era sempre suja e não dava para dizer sua cor de origem. O cabelo sempre despenteado e a blusa da farda imunda. A mãe fora chamada à diretoria, mas compareceu bêbada, sem condição para dialogar. A menina chorava de vergonha da mãe, puxando-a para ir embora dali.

A professora condoía-se dela, arranjava-lhe roupas velhas da vizinhança. Mas logo no dia em que saíra de casa limpa e com tênis novo, não entendia a timidez da garota.

— Betina, por que não vai brincar? Seu tênis está muito bonito!

Não estou com vontade, tia.

Por que não vem todos os dias assim para a escola, banhada, penteada, roupa limpa?

Duas garotas, aproximadamente da mesma idade, irromperam na classe, correndo uma atrás da outra. Uma delas aproximou-se, interessando-se pelo diálogo.

Tia, na casa dela só tem cacimba. Moro vizinho, mas na minha tem água.

A professora não desistiu:

Levante-se, Betina e vá brincar com suas amiguinhas. Laura, convide-a para brincar com vocês.

Betina suspirou de tristeza. Como gostaria de sair correndo com as outras, rir e gritar pelo pátio. Antes tinha medo que o prego da sandália se rompesse. Ia ter que andar dez quarteirões até a sua casa, descalça, atolando-se nas calçadas barrentas, chegando ainda mais suja do que quando ia à escola. Mas agora estava de tênis novo, ou quase novo, parecendo ter sido comprado na loja.

Laura, mostrando-se bem informada, foi logo anunciando.

Professora, hoje é o aniversário da Betina, por isso ela está de sapato.

Betina ficou mais triste ainda e baixou a cabeça, quase a chorar. A professora levantou-a com os braços, fazendo um certo esforço ante a resistência da menina. Mesmo assim conseguiu que ela ficasse de pé.

Muito bem garota, parabéns! quantos anos?

Betina respondeu num soluço:

Nove.

Pois então, venha, vou lhe levar ao pátio agora mesmo, vai brincar com a garotada.

Betina não dava um passo. A professora achou estranho. Examinou-lhe as pernas. O que estaria acontecendo? Tirando a timidez natural da criança, desconhecia que ela tivesse qualquer problema nas pernas, pés ou articulações.

Vamos minha filha, o que você tem? Logo no dia do seu aniversário você fica triste?

Saiu arrastando a menina até o pátio, que de pernas abertas manquejava e fazia caretas de dor. Não suportando mais, soltou-se da professora e sentou-se no primeiro banco que avistou no pátio. A essa altura a meninada já rodeava, pelo inusitado da cena.

O que ela tem?

O que houve, tia?

Ela fez coco nas calças?

Betina caiu num choro convulsivo e a professora correu até a sala dos professores onde pegou algodão e álcool. Ao voltar, deparou-se com outra cena. Laura, a amiguinha que morava na mesma rua da menina, desatara-lhe os cadarços do tênis e tentava puxá-los, com muita dificuldade. Quanto mais puxava, mais a menina gemia. Finalmente conseguiu livrá-la do calçado, dois números menores que o pé de Betina.

A meninada não riu, como sempre fazia. Um profundo silêncio congelou a cena.

 

 

(imagens ©sue)

 

 

 

Nilze Costa e Silva (Natal/RN). Especialista em Teoria da Literatura (1986), pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR), vive em Fortaleza. Estreou na Literatura com o ivro Viagem (contos e crônicas), que teve o prefácio do consagrado poeta Francisco Carvalho. Quando foi instituído o Prêmio Estado do Ceará, sagrou-se em 1° lugar, com a novela No fundo do poço, editada com a apresentação do contista Moreira Campos. Publicou, ainda, O velho (romance, Secretaria de Cultura do Ceará, 1983); O esconderijo dos anjos (romance-reportagem, Secretária de Cultura do Ceará, 1985); Dilúvio (contos, Secretaria de Cultura do Ceará, 1986); Mulheres de papel (ensaio sobre o personagem feminino na Literatura Brasileira, Fundação Cultural de Fortaleza, 1990); Sem medo da delicadeza (ensaio sobre a violência masculina, Edições Nave, 2000); Fortaleza encantada (crônicas afetivas sobre a cidade de Fortaleza, Edições Nave, 2007); Tudo por causa do sol (São Paulo: Ed. Scortecci, 2009). Participa de várias antologias. Em 2001, fundou o grupo Poemas Violados. Promove sistematicamente a oficina de Escrita Criativa "Palavras não são vãs". Integra a Rede de Escritoras Brasileiras (REBRA) e a Associação de Escritoras e Jornalistas do Brasil (AJEB). No cotidiano, dedica-se a questões relacionadas aos direitos humanos, tendo escrito vários artigos nesta área em revistas de circulação local e nacional. É colaboradora do Jornal o Povo, de Fortaleza, Conselheira do Conselho Cearense dos Direitos da Mulher e ex-conselheira do Conselho de Cultura do Estado do Ceará. Está incluída no Dicionário crítico de escritoras brasileiras, de Nelly Novais Coelho (São Paulo: Escrituras, 2002). Prepara A mulher sem túmulo, uma biografia romanceada da beata Maria de Araújo, protagonista dos milagres de Juazeiro/Ce.