Setenta anos após a sua morte, relembrada em 23 de setembro de 2009, Freud (1856-1939) continua sendo uma referência básica na História Universal. Escrevendo a seu amigo e confidente, o médico alemão Wilhem Fliess (1858-1928), entre 1887 e 1902 (período em que Freud fez as suas descobertas fundamentais. As cartas foram resgatadas — pagas — pela princesa grega Maria Bonaparte, grande amiga, admiradora de Freud e defensora da psicanálise. Ela ajudou também na retirada da família de Freud, durante a ocupação nazista em Viena, Áustria), Sigmund observa: "Não sou um médico, nem um cientista. No fundo, sou um conquistador, com todas as características deste tipo de pessoa". Alguns leitores podem levantar a eterna lebre: o que ele conquistou? De que maneira? Com certeza, muitos sabem parte da primeira questão: o proibido, a sexualidade, o reprimido e o inconsciente. Uma resposta mais consistente, suplementar e de qualidade para as duas perguntas é a leitura do renovado Freud: a conquista do proibido (Renato Mezan. São Paulo: Ateliê Editora, 2003), boa fonte de esclarecimentos. Com informações biográficas, o professor titular da PUC/SP, pesquisador, escritor e também psicanalista Renato Mezan escreveu um breve estudo ricamente sustentado por interpretações e referências bibliográficas que vai de Gunnar Brandel, Cornelius Castoriadis, Ernest Jones, Jacque Lacan, Maurice Merleau-Ponty, até Conrad Stein, entre outros. Numa linguagem acessível e rica em detalhes, o exemplar cativa qualquer tipo de leitor, desde o mais humilde ao mais letrado. Um encanto radical para quem quer aumentar o conhecimento sobre este polêmico senhor Sigismund Schlomo Freud, que desafiou o pensamento Ocidental e ajudou a desvendar a humanidade.
 

Não é qualquer livro que tem na orelha esquerda Omar Khouri, e na outra Lucio Agra! Ou seria o contrário!? Tanto faz, pois os dois são profundos conhecedores da temática. E, para completar o cenário, prefácio de E. M. de Melo e Castro e Christopher T. Funkhouser da New Jersey Institute of Tecnology, Newark, NJ, EUA. Melo e Castro deixa a sua mensagem objetiva, clara e importante: "Para o leitor e utilizador inventivo das tecnologias, este é um dos maiores interesses deste livro, mas igualmente o Glossário, a Cronologia, a Bibliografia e a Antologia de poemas e textos teóricos que constituem os Anexos incluídos no CD-Rom complementar, contêm informação preciosa e difícil de conseguir assim sistematizada: A poesia eletrônica, em suas diferentes fases, é composta por uma linguagem tecno-artística-poética e é sob este viés que ela pode ser lida e apreciada. (...) Ela existe no espaço simbólico do computador (internet e rede), tendo como forma de comunicação poética os meios eletrônicos-digitais que se vinculam a esses componentes. De um modo geral, ela só existe nesse meio e só se expressa, em sua plenitude, por meio dele". Num dos grandes lançamentos do segundo semestre de 2009, Poesia Eletrônica: negociações com os processos digitais (Jorge Luiz Antônio. São Paulo: FAPESP/Itu: autor/Belo Horizonte: Veredas & Cenários, 2008) repercute uma das melhores pesquisas contemporâneas dos últimos tempos, reunindo literatura, crítica literária, teoria da literatura e ensaios sobre as interfaces da poesia, arte, ciência e tecnologia. E muito mais: poesia eletrônica, tecnopoesia e as relações da poesia com o computador, arquivos eletrônicos, programas, internet, rede, texto eletrônico, hipertexto e hipermídia. Não esquecendo outro fato, já apontado anteriormente por Melo e Castro: o livro vem com CD-Rom, acrescentando uma leitura multimídia, o que é certamente enriquecedor. O enfoque central do livro reside em analisar, estabelecer relações reflexivas com as distintas produções poéticas e experimentos que negociam com os processos digitais. O conjunto de exemplos estudados permite chegar a uma rica tipologia, que não encerra o assunto. Pelo contrário, a cibercultura é uma fonte inesgotável para novas releituras, enfoques ou leituras particularizadas. Clique aqui e saiba mais.

Falecido em 2009, o escritor amazonense tem na reunião dos poemas em Palavra parelha (Anibal Beça. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2008) um dos pontos altos da sua carreira. Com pleno domínio da linguagem e da metalinguagem, consciente, transcende em ousadia e liberdade.  Parecendo premeditar a despedida, Aníbal Beça escreve no início do livro: "Junto aos leitores, contente, comemoro, a entrega de 5 livros novos nesse marco de 40 anos. 60 anos já vivi/ 60 anos já purguei/ sem contar outros 40/ dos poemas que tracei:/ — Quanto mais escreverei?". Instalou a sua apurada sensibilidade na eternidade. Poeta, compositor, jornalista, tradutor da poesia do italiano Salvatore Quasimodo (Prêmio Nobel de Literatura de 1959), foi um dos mais consistentes criadores de haicais da contemporaneidade, além de sonetista brilhante. Aclamado por Drummond, Ledo Ivo, Wilson Martins e Carlos Nejar, conquistou em 1994 o 6º Prêmio Nestlé de Literatura Brasileira, categoria poesia, com Suíte para os habitantes da noite. Múltiplo na forma, conteúdo, ritmo e imagem, a grande voz musical e folha verdejante da floresta com seu caráter humanista estrutura Palavra parelha em sete cantos ricos em rimas, aliterações e várias figuras de linguagens num lirismo derramada e cativante. O livro é uma obra-prima da poesia como música verbal, com bem aponta Astrid Cabral. O contraponto é ampliado por interações e intertextualidades com Camões, Rimbaud, Pessoa, baladas de asas polifônicas vigorosas e cosmologias maduras diante do desespero da condição humana em seus diálogos com a tradição que sempre vem, "Veio vindo mansa/ pluma apetecida/ ao sabor dos ventos".

Outro escritor que partiu em 2009. Mas antes deixou alguns pensamentos e máximas, a melhor delas: "Todo mundo caga regras também". Em Caga regras (Rodrigo de Souza Leão. Pará de Minas/MG: Editora Virtual Books, 2009), o jornalista, entrevistador, ensaísta, articulista, poeta, ficcionista, pintor e editor carioca carrega na mão e extrapola ao máximo de maneira contundente. Tudo bem que parte do livro já estava no excelente Todos os cachorros são azuis, mas isso não tira o mérito do conjunto de poemas e prosas poéticas, recortadas pelo "negro das zebras brancas. Tudo engolido por um buraco negro. Tudo sendo regurgitado. O branco do leite. Do vômito". Um vulcão de crepúsculos. Provavelmente, esse é o tipo de fidelidade pulsante que assegura a densidade do autor e a sua vida em meio aos remédios. Uma poética consubstanciada nos delírios da opressiva atmosfera visceral, em contraste com os devaneios que bailam uma dança macabra e interminável. Da certeza das incertezas vestida pelo olhar do outro. E as investidas verbais provocantes, talvez seja a matéria bruta da obscuridade. Da fragmentação de uma mente poderosa, tal qual Rimbaud. Um "Batuque batucado patuscado. Doces e balas em abundância. Mel. Tudo pra dentro da panela, pipoca. E um pedido, somente um pedido: que lhe arrumem um amor, que lhe arrumem um marido e mais dinheiro, que melhor vida que aqui seja o céu e tudo esteja distante do inferno". No caso do autor, uma diva libertadora e seu enlace sublime e silencioso com a morte. A redenção expressionista angelical, na qual o hospício seja substituído pelo solo da esperança subindo ao firmamento, no pacto poético possível com aquilo que o autor mais queria em vida. Com certeza, esbarrou com ela noutro lugar: a paz, de um sonho edificante e multicolorido.     

Edição especial para colecionadores do escritor maranhense, que merece lugar de destaque nas melhores estantes. Leitura obrigatória com a ortografia da época, realçando a estética oitocentista. O guesa (Joaquim de Sousa Andrade. São Paulo: Editora Demônio Negro, 2009), poema-exílio, errante, revela um estrangeiro em sua própria língua — o autor escreveu partes do livro nos Estados Unidos. Lirismo desconcertante, construção, tensão, resoluções e rupturas proto-modernistas. Descida aos infernos, no qual foi preciso quase 100 anos para que a poesia de Sousândrade (1832-1902), que estudou na Sorbonne de Paris, fosse relida, compreendida, ruminada e assimilada com o seu estilo híbrido e repleto de neologismos. Dividido em 13 cantos em sua grafia multilinguar, incorporando os índios da Amazônia, Adão, Eva, Evangelhos e os animais sagrados da Terra, em diálogo com o mito de Bochica, do qual Sousândrade foi recolher nos estudos do notável lingüista alemão Wilhelm von Humbold (1767-1835). A alegoria do poeta maranhense, na pregnância do estilo fragmentado, assume a condição de persona do índio peregrino, embaralhando na linguagem imagens da natureza, sentimentos poéticos e reflexões sociais. Como bem observa Augusto de Campos na apresentação do livro: "Toma o partido dos povos aborígenes da América e dos africanos escravizados contra a opressão e o domínio dos colonialistas. Vivendo no Brasil imperial, preconiza o modelo político republicano, que associa utopicamente ao sistema comunitário dos Incas". Ou ainda na análise de Ana Carolina Cernicchiaro, no Anuário de Literatura (Florianópolis, SC, 2007) é "um périplo de dissonâncias, de ruptura, de desvio, enfim de combate com a língua dentro da própria língua". O exemplar que a Demônio Negro, um primor de produção artesanal, recoloca em circulação, possui a notável característica de respeitar o teor original da obra, publicada pela primeira vez em 1871 nos Estados Unidos da América. E tornar mais próximo aos leitores contemporâneos o principal livro de Sousândrade, após o resgate do autor na década de 1960 pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos.

Esta ficção, com certeza, não é deste mundo. Com elogios de Luis Fernando Verissimo, Antonio Cicero, Moacir Scliar, críticos e outros escritores, Como deixei de ser Deus (Pedro Maciel. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2009) representa a imaginação fértil de uma linguagem original até o reino da sublimação. Mudanças de estados físicos e Desvio para o vermelho. Um livro necessário, com capa de Cildo Meireles. O exercício de sua reflexão é seduzido por metáforas — que dissolvem uma cultura marcadamente saturada —, aforismos, epigramas, polissemias, intertextualidades, fragmentos concisos e aleatórios, numerados de forma descontínua. Metamorfoses. E o mais importante: nutre o desejo do leitor para ir além. Pois pode ser lido num estalar de dedos do início ao fim. Ou uma leitura que reinventa o romance, obra aberta: podemos escolher qualquer página e perceber calmamente uma narrativa que desagrega os mitos e os cânones; dar um stop para sentir os prolongamentos líricos e perturbadores. Que leva o espectador a pensar e indagar que personagem é esse (o do livro e o próprio leitor) que desconstrói o tempo e o espaço em meio às alusões literárias, bíblicas, psicológicas e filosóficas. Não conclui nada e nem deve. Conceitual. Por isso, uma obra aberta em expansão aos olhos dos mais atentos. É intencional a atitude do escritor ao alinhavar os fragmentos, no qual a intercomunicação se completa. Essa atitude instala a multiplicidade de interpretações e a ampliação dos significados. "Meu Deus, por que me abandonastes? (...) no fundo do lago, um náufrago", perfazendo o diálogo sibilante com o romance anterior (A hora dos náufragos), mais comportado em sua proposta inicial da tetralogia. O que nos resta além da emoção é uma instigante cosmologia irônica, não existindo até o momento algo similar na língua portuguesa.

Na era da incerteza, a arte contemporânea multiplica-se em autênticas controvérsias. Revela, em seus deslocamentos/desdobramentos, uma falsa consciência do vazio e a primazia da inefabilidade. Sobre o império do discurso e do não discurso acerca da percepção, o tom sombrio da linguagem e seus impasses, descortinam-se numa crise profunda. Todavia, plena em vinculações do artista com o complexo mercantil tutelado por várias instituições do mercado. A grande feira: uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea (Luciano Trigo. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2009) define-se como uma reação ao declínio e vertigens em que se transformou a arte do nosso tempo. Reconhece e compreende as banalidades da diluição e os efeitos de uma estética equivocada de determinados setores artísticos (a maioria) e suas produções de baixa qualidade. Com argumentações diferenciadas pelo olhar crítico — Duchamp deve estar vendo tudo lá de cima de camarote, fumando um charuto e jogando xadrez (com uma mulher, é claro!) —, o autor reúne um conjunto de ensaios, artigos e comentários publicados na imprensa e na internet em defesa da verdadeira arte contemporânea. A arte não conformista, criativa, não corrompida na sua totalidade, que desafia os sofismas e rompe as fronteiras da imaginação. Vale observar, refletir em estado de um pequeno choque elétrico, ou tonteira de passagem, o trecho do livro: "Até o projeto moderno, uma obra de arte era autônoma em relação à sua exposição, isto é, uma pintura de Matisse ou Picasso, mesmo que jamais fosse exposta, continuaria sendo uma obra de arte. Ou seja, o local onde a obra era exposta não interferia diretamente no seu significado. Ora, o mesmo não se dá com a arte contemporânea, na qual o objeto artístico não pode mais existir sem sua exposição. Uma estante de vidro e aço com pílulas coloridas de Damien Hirst só se torna obra de arte quando é designada como tal pelo sistema da arte, exposta e comercializada por um preço exorbitante; antes disso, será apenas uma estante com pílulas coloridas". 

Uma mostra plural, reunindo distintos estilos e linguagens. Treze escritores, treze multiplicidades presentes em Traçados diversos: uma antologia de poesia contemporânea (Org. Adilson Miguel. São Paulo: Editora Scipione, 2009), uma obra diferente também no belo projeto gráfico e edição de arte. O interessante é a inexistência da intencionalidade de se fazer um recorte geracional. Outro detalhe que merece ser citado sobre o livro é o fato de que não houve uma temática específica e a ordenação dos textos partiu de criações poéticas mais recentes. Autores mais velhos e mais novos lado a lado. Diversidades. Annita Costa Malufe, Antonio Cícero (o mais velho da turma), Arnaldo Antunes, Bruna Beber (a mais nova), Chacal, Donizete Galvão, Fabiano Calixto, Fabio Weintraub, Fabrício Corsaletti, Fernando Paixão, Heitor Ferraz Mello, Ricardo Aleixo e Ruy Proença sustentam a vitalidade, singularidades e a qualidade de uma determinada parcela da cena poética contemporânea. Alberto Pucheu chama a atenção também para um fato que não pode passar batido: de todos os nomes presentes, o único que aparece em quase todas as antologias de 1990 para cá é Arnaldo Antunes, abrindo espaço para outros menos conhecidos e lidos no circuito. Contudo, observados os fatos, fica claro que o principal personagem deste livro não é nem o poeta, muito menos os seus críticos. A protagonista é a poesia, que mobiliza os diversos traçados, exigindo percepção, aplicação e produção constante, mais sensibilidade nas escolhas e aberturas que atualizam influências, diálogos, inflexões diversas e até um certo desenraizamento presente entre alguns escritores da antologia. No posfácio, Ivan Marques aponta as principais características das distintas vozes, comprovando a riqueza poética brasileira, sempre se renovando de maneira ousada e brilhante. Que vai se consolidando a cada dia que passa com a internet (portais, sites, blogues, etc.), sem o controle de determinada parcela das grandes editoras e posturas sensatas por parte de alguns escritores mais esclarecidos aos tentáculos venenosos, facilitadores e às regras daninhas do establishment, acomodado aos critérios duvidosos de qualidade, estilo e linguagens poéticas falaciosas com pouca ou nenhuma experimentação em meio a Lei da Oferta e da Procura.   

Segunda edição revista, atualizada e ampliada de um livro importante. A primeira é de 1981. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira (Dulcília Schroeder Buitoni. São Paulo: Summus Editorial, São Paulo, 2ª Edição, 2009) realiza uma análise histórica do mais alto calibre, uma obra clássica ricamente ilustrada, sobre a trajetória da imprensa e suas influências, tendências, imperativos, padrões e modas difundidas, baseado no contexto sociocultural de cada época, no universo feminino do país; tornando-se referência fundamental para as pesquisas e relações entre gênero e comunicação social. Sejam elas da graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. São mais de 150 anos de páginas (o livro tem mais de 200) dedicado às filhas de Eva. Para cada década, a autora identifica as formas de representação da mulher, sua simbologia e aspectos essenciais dos costumes introjetados. Como, por exemplo, a "mulher-celulóide", a feição de Hollywood, durante a Segunda Guerra Mundial, entre outras, até chegar à "Segura e Sexy" (da década de 1990 até os dias atuais), consumista, leitora de Marie Claire e Caras, preocupada com o corpo, atiçada pelo slogan "Camisinha, tem que usar!" de outra revista, a Capricho; em suma uma mulher-imagem, influenciada de modo hiperbólico pelo culto às celebridades da televisão, retroalimentadas por outras mídias de massa. Com vasta experiência por distintas redações da mídia brasileira, e um conhecimento teórico que vai de Roland Barthes até Evelyne Sullerot, uma das maiores estudiosas do fenômeno feminino na imprensa francesa, Dulcília Schroeder Buitoni — reiterando que a imprensa feminina informa pouco, mas forma demais — observa que existe uma grande "armadilha linguística" pela qual o espírito das leitoras é aliciado para afinal, consumir os objetos que são meras embalagens de valores do Neocapitalismo.

Parceria da pesada! Ou melhor, um trio peso-pesado: Augusto de Campos, Marcel Duchamp e Julio Plaza. Reduchamp (Augusto de Campos e Julio Plaza. São Paulo: Editora Demônio Negro, 2009), com certeza, um dos melhores (re)lançamentos do ano, haja vista que a primeira edição, de 1976, esgotada há tempos, não está disponível nem mesmo nos melhores sebos da praça. Muito menos on-line. Duchamp numa reação em cadeia. Atualíssimo! Deslocamentos/desdobramentos e profanações sagradas (um oxímoro, a figura de linguagem predileta do Affonso. Sim, Affonso Romano de Sant'Anna!) nesse encontro que produziu Poemóbiles (1974, reeditada em 1985) e Caixa preta (1975). Augusto na poesia & Julio nas imagens. Trabalho primoroso, poema ensaio, prosa porosa, iconogramas em preto em branco, tendo no centro do exemplar uma boca escancarada cheia de dentes: ENIGMA. E ao final um furo na página em branco. Do outro lado... Cabe ao leitor produzir os sentidos na sua imaginação fértil e correlacionar o que ainda não cessou: "o poeta é um designer da linguagem". Não poderia terminar este breve texto sem uma pequena passagem, acompanhada de reticências: "dados os dados/ duchamp nos dá/ uma opção estratégica/ aparente viável/ ante o bloqueio massacrante/ do dilúvio informativo/ a ação na raiz das coisas/ sem suportes apriorísticos:/ um livro ou um vidro/ uma capa ou um corpo/ um postal ou um disco/um dado ou um vaso/ um xeque ou um cheque/ ou o silêncio...".

Determinados livros possuem características imaginativas e singulares, são dinâmicos. Refazem ou confirmam, de modo criativo, os acontecimentos históricos dos seus personagens principais. Ou ainda, de maneira aguda, podem "ser o machado para o mar enregelado que temos dentro de nós". É o caso de Kafka e a marca do corvo (Jeanette Rozsas. São Paulo: Geração Editorial, 2009). Detalhe que não pode passar batido: a palavra "kafka" em tcheco quer dizer "corvo". A autora levou três anos em pesquisas e viagens ao exterior, para escrever a primeira biografia romanceada de Franz Kafka (1883-1924). Um romance cativante! O interessante são os diálogos metamorfoseados na construção dos trechos, extraídos dos próprios livros, diários e cartas do gênio de Praga, histórica e muito antiga, a cidade das torres, capital da atual República Tcheca, banhada pelo rio Vltava. Observa-se também, pelos agradecimentos da escritora, a presença iluminada do paulista Modesto Carone, ganhador do Jabuti 1999 com o romance Resumo de Ana (São Paulo: Cia. das Letras, 1998), ex-professor de literatura da Universidade de Viena (Áustria), Unicamp e USP, um dos maiores estudiosos, conhecedores da vida e grande tradutor da obra de Kafka. No mesmo nível, não podemos esquecer, uma raridade nos melhores sebos, o sempre útil Kafka: vida e obra (Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979, 5ª edição) do pensador, pesquisador, filósofo e escritor fluminense Leandro Konder. O exemplar é uma narrativa simples, cronológica, não se limitando a descrever o conhecido, mas incorpora à história a chama da obsessão irreal da liberdade, moderna, na qual autor e obra se confundem, pontuada pela "intensa e meticulosa pesquisa que alicerça toda a construção", como bem observa Nelson de Oliveira, numa das orelhas. Maior que a morte, o mito de Kafka continua vivo no discurso onisciente e triunfante, magistral no exemplar da escritora, diretora da União Brasileira de Escritores (UBE), ricamente ilustrado com imagens da época e obras consultadas, no final da publicação. Clique aqui e saiba mais. 

 

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