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PROMOÇÃO: POETAS, FILOSOETAS, CRÍTICOS, AFINS

DATA: PÓS-MODERNIDADE

LOCAL: PLANETA TERRA

PÚBLICO-ALVO: POETAS, CRÍTICOS, HIPÓCRITAS LEITORES, UNIVERSOTÁRIOS, DOCENTES, SCHOLARS,TRADUTORES/TRAIDORES, INTERNAUTAS,  SÚDITOS IDEOLÓGICOS, PUXA-SACOS METAFÍSICOS E QUÂNTICOS, PLAGIADORES, PROTÉTICOS DE IDEIAS, PHDEUSES, AMEBAS FELIZES, GÊNIOS, ILUSTRES-DESCONHECIDOS, GENTE TIPO ASSIM...

PATROCÍNIO: TIO GATES & TIO GOOGLE

 

ANAIS DAS MESAS REDONDAS, QUADRADAS, DISFORMES, COMUNICAÇÕES, ACHEGAS, À GUISA DE,  REFLEXÕES DAS ACADEMÍDIAS, CRÍTICOS E DE CRICRÍTICOS, PROVOCAÇÕES, PROPOSTAS, OUSADIAS, ERUDIÇÃO CORROSIVA, CONCLUSÕES WORK IN PROGRESS, MUITA VAIDADE E MUITA COISA SÉRIA.

 

ADVERTÊNCIA/1

O MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO & COOLTURA ADVERTE: LER O TEXTO A SEGUIR É PREJUDICIAL A "INTELECTUAIS DE CÓCORAS", "SACERDOTES DO ESTABELECIDO", "PEDANTES DO PRECIOSISMO INÚTIL", PRATICANTES DE "REBELDIA-OBEDIENTE", ACENDEDORES DE LAMPIÕES E VELAS PARA DEUS E PRO DIABO, ESTRATEGISTAS DE "ARENGA VERBOSA", SUPOSTOS DONOS DA VERDADE, PENSADORES-AVESTRUZES, REFÉNS DE TROCA DE FAVORES INTELECTUAIS, CANDIDATOS  À ACADEMIA E A BEST-SELLER, PALESTRANTES MIDIÁTICOS, DEPENDENTES DE ALTO-AJUDA, RECEPTORES DO BOLSA-FAMÍLIA DA CIBERCULTURA, BLOGUEIROS-REFORMADORES-DO-MUNDO, AUTORES-FASHION, HACKERS DO ACADEMICAMENTE CORRETO E PROVEDORES DE CESTAS-BÁSICAS ELETRÔNICAS.

 

ADVERTÊNCIA/2

OS EXCERTOS SÃO EXCLUSIVAMENTE DE ARTIGOS/ENSAIOS PUBLICADOS EM REVISTAS ELETRÔNICAS. TODA E  QUALQUER ALUSÃO POLÊMICA FOI NECESSARIAMENTE CORTADA PARA EVITAR MAIS POLÊMICA, E PORQUE CONTENDAS PESSOAIS NÃO SE ENQUADRAM NO OBJETIVO DO PRESENTE TRABALHO.

 

CENÁRIO

COMPUTADORES LIGADOS, PESSOAS PLUGADAS EM DIÁLOGO:

 

CODA

 

 

Dênis de Moraes

 

            Mesmo no ambiente de fluxos infoeletrônicos intermitentes em que vivemos, a literatura tradicional continua fascinante e insubstituível. Devemos, porém, admitir que o mundo das letras já não gravita apenas em torno de livros impressos, prontos e acabados, nem se vincula, atavicamente, a crivos acadêmicos, aos filtros da grande mídia e às injunções do capital. As matérias literárias alastram-se pela internet com rara e imprevista desenvoltura. A rede integra-os com flexibilidade para enlaçar novos conteúdos e multiplicá-los em usos partilhados, através de bases de dados e publicações eletrônicas, em constantes mutações e acréscimos, abarcando períodos históricos, gêneros, movimentos e escolas.

         A vida literária na Web passa a dispor de uma profusão de fontes de consulta, além de preciosos espaços de produção, divulgação e intercâmbio. As paisagens híbridas do ciberespaço encontram-se superpovoadas de sites literários — desde coleções de textos da era greco-romana a workshops virtuais. Na atmosfera virtual desterritorializada, testemunhamos a rápida desfronteirização do campo literário. Soares Feitosa, editor do Jornal de Poesia, esplêndido banco de poesia em língua portuguesa, com 2 mil autores, recebe por dia uma média de 40 e-mails. Lecionando na Suécia, o professor uruguaio Rossielo recorreu à Web para ajudar a tornar a literatura hispano-americana mais conhecida do outro lado do Atlântico. Hospedou a ciberrevista Nuevo Mundo no servidor da Universidade de Gotemburgo. A Universidade Aarhus, da Dinamarca, administra o mais completo site eletrônico sobre o poeta argentino Jorge Luis Borges.

         Parece não haver limites para a imaginação. O tímido poeta pode colocar no ar seus versos titubeantes, lado a lado com as homepages de Prêmios Nobel. Leitores participam da construção de romances e contos interativos. A obra desliza pelo monitor, em composição seqüencial, numa espécie de cibercolagem de interferências coletivas. Contam-se às centenas os grupos de discussão, fóruns, conferências e salas de conversação em tempo real sobre assuntos tão díspares como a literatura vietnamita e a poesia de Manuel de Barros.

         A literatura eletrônica — sem sobrepor-se ou equiparar-se — sublinha a emergência de um ecossistema fundamentado em interseções comunicacionais que possibilitam uma hibridação entre emissores-produtores e receptores-consumidores. O ciberespaço funda uma ecologia comunicacional: todos dividem um colossal hipertexto, formado por interconexões generalizadas. Trata-se de um conjunto vivo de significações, no qual tudo está em contato com tudo: os hiperdocumentos entre si, as pessoas entre si e os hiperdocumentos com as pessoas. A partir da hipertextualidade, a Web põe a memória de tudo dentro da memória de todos, numa malha de mais de 800 milhões de páginas indexadas (o equivalente a seis terabytes de textos) [Nota do corrrespondente: os dados são de 1998].

         Cada ator inscreve sua identidade na rede à medida que elabora sua presença no trabalho de seleção e de articulação com as áreas de sentidos. Já o hipertexto digital aumenta consideravelmente o alcance das operações de leitura. "Sempre num processo de reorganização ele [o hipertexto], diz Pierre Levy, propõe uma reserva, uma matriz dinâmica a partir da qual um navegador-leitor-usuário pode criar um texto em função das necessidades do momento. As bases de dados, sistemas periciais, folhas de cálculo, hiperdocumentos, simulações interativas e outros mundos virtuais constituem potenciais de textos, de imagens, de sons, ou mesmo de qualidades táteis que as situações particulares atualizam de mil maneiras. O digital recupera assim a sensibilidade no contexto das tecnologias somáticas [voz, gestos, dança...], mantendo o poder de registro e de difusão dos meios de comunicação".

         Assim, os fluxos interativos da internet incrementam a composição literária coletiva, através de hipertextos que constroem romances, contos e poemas com a interferência de usuários. A antiga estrutura do texto final convive agora com a escrita não-linear, seqüencial e atualizável do espaço virtual (Joaquin Maria Aguirre Romero). Esboça um novo tipo de escritor — batizado de autor eletrônico —, que se vale de suportes infoeletrônicos para a formulação de narrativas hipertextuais e/ou para a integração dos leitores ao processo criativo. As hipernarrações, também chamadas de escritas colaborativas, atraem usuários para os sites The Written Word, Writers Workshop e Infine este  um programa de ações hipertextuais, incluindo roteiros para cinema.

         Surgem páginas de poesia coletiva, como a norte-americana Poetry Web  e a italiana Ipertesto Colaborativo di Media/Mente [Nota da editora: todos os sites internacionais citados neste artigo estão fora do ar ou em endereço desconhecido]. Cada participante tem direito a acrescentar um verso, alternadamente. Já funcionam, inclusive, ateliês de criação literária em rede. Essa febril emergência da cibercultura vem suscitando questionamentos — às vezes apaixonados, ranhetas ou apocalípticos — sobre o futuro da expressão escrita e  do próprio livro. O mundo eletrônico diluiria a aura da obra literária, substituída pelo encantamento high-tech. A abundância desordenada das redes dificultaria reflexões críticas conseqüentes.

         Fábio Lucas, atual presidente da União Brasileira dos Escritores e destacado crítico literário, alerta para os efeitos da hipervelocidade no domínio cultural. A seu ver, determinadas atividades humanas não se ajustam à lógica da urgência, sob pressão da mídia e das tecnologias de informação. Ele salienta que a criação e a fruição literárias demandam tempos mais demorados, enquanto na mídia prevalece o imediatismo. O escritor mexicano Carlos Fuentes reage com vigor quando se intenta soldar o desenvolvimento literário a ferramentas eletrônicas: "Não aceito que a internet sacrifique a comunhão profunda e secreta que é a leitura, algo que não se pode alcançar em nenhum outro meio. Esse ato de comunhão, para mim, é um ato insubstituível, muito parecido com o ato de amar. É muito difícil amar numa tela; seria uma forma de onanismo. O livro é um ser de carne e osso".

         Se Fábio Lucas e Carlos Fuentes levantam objeções contra a literatura eletrônica, no lado oposto situam-se os profetas da decadência do livro impresso. Entre as vantagens insuperáveis do livro digital, enaltecem a natureza e o alcance de sua difusão; a distribuição em largo espectro, sem dependência a redes livreiras e meios de transporte; o baixo custo de edição, sem gastar papel; liberdade de publicar textos de qualquer tipo ou tamanho; buscas em arquivos literários de ponta; novas possibilidades de criação ficcional e poética.

         Qualquer suporte que dissemine informações favorece, em maior ou menor grau, a socialização da cultura — e parece indubitável que a infra-estrutura das redes constitui um poderoso canal de distribuição. Ela descentraliza e barateia o processo editorial, libertando-o do atrelamento inevitável às diretrizes mercadológicas, industriais e mediáticas. As ferramentas eletrônicas contribuem igualmente para preservar a memória literária, em acervos digitais com gigantesca franquia para estocagem. Obras raras voltam a ser acessíveis. Sem contar as inovações de escrita e leitura que se descortinam nas narrativas hipertextuais.

         Mas o livro impresso não perdeu, em absoluto, a sua vitalidade. A começar pelo fato de que se adapta a variados contextos socioculturais, abarcando idiomas e linhas de pensamento. É facilmente transportável e não depende de dispositivos para ser utilizado; sua durabilidade não está sujeita aos ciclos de obsolescência tecnológica, como pode ocorrer, por exemplo, com um CD-ROM (títulos impressos há séculos continuam legíveis); engendra protocolos de leitura até aqui insuperáveis.

         Por que ainda necessitamos de livros? Derrick de Kerchhove responde com uma analogia entre o ritmo febril dos bits e a leitura cadenciada no papel. O diferencial da literatura consistiria em contrapor-se à velocidade dos sistemas eletrônicos, devolvendo as pausas e o tempo necessário ao mergulho da imaginação. No ambiente eletrônico, o papel dos livros é, então, o de desacelerar a informação e, subsequentemente, acelerar o pensamento, dando às pessoas tempo para pensar sobre isto e tornar o processo de leitura um capacitador de conhecimento. A eficácia do suporte literário virtual depende de sua capacidade de oferecer elementos operativos que satisfaçam demandas culturais, liberando avanços que as tecnologias anteriores não alcançaram. É o caso da hiperficção on line. O livro coexistirá com a televisão, a multimídia, a realidade virtual ou qualquer  engrenagem interativa.

         Na vertigem dos nós, um número cada vez maior de obras tende a ser disponibilizado, lido e analisado, numa prova eloqüente das interseções possíveis entre real e virtual, dentro de um conjunto de ambientes integrados e auto-ajustáveis, sob a primazia da inteligência humana. Por que isolar as variáveis eletrônicas dos tesouros impressos? Não estamos aqui expondo ideias sobre a ciberliteratura em papel e tinta? Esqueçamos as referências imutáveis, o apego a crenças enrijecidas que geralmente conduzem a dogmatismos. Optemos por uma dialética de complementariedades, interinfluências e fertilizações mútuas entre o real e o virtual. Até porque, arrisca Roger Chartier, os autores não escrevem livros; escrevem textos que se transformam em objetos escritos, manuscritos, impressos e, agora, virtuais.

 

 

Ary Carlos Moura Cardoso

 

Quando num país boa parte de seus intelectuais se rende à pasmaceira geral, entramos no mais reles tipo de cinismo: o cinismo justificado. Nele, predomina a heresia às avessas, cuja essência consiste em rebeldia-obediente. O diabo é que, dentro e fora da universidade, indivíduos optam por fechamentos intelectuais tão baratos que acabam se transformando em charlatães, pedantes e sacerdotes do estabelecido. Envenenam a ideia de Crítica, aplicando a este fenômeno qualquer arenga verbosa, desde que sirva para racionalizar o conformismo. Diante de jovens ingênuos, destilam suas tolices e ensinam como mentir. Não são poucos os intelectuais perdidos, não sabem a que vieram, sobretudo ignoram qual seja nosso verdadeiro papel. Como enfrentar forças encalacradas nas engrenagens do sistema requer coragem, desprendimento e solidão, tomam os discursos e as práticas dominantes tratando, cinicamente, de adocicar as coisas contra as quais se recusam combater. Onde surgir qualquer foco de imaginação transformadora, o conformismo intelectual estará presente. Enquanto o intelectual digno deste nome faz falar o silêncio, ousa dizer o que não se diz, busca o escondido, o velado, aquilo que está bem oculto, trabalha sempre a partir das radicalidades, visa à transformação das realidades, pensa e age entrelaçadamente, é questionador contumaz e mergulha no dia-a-dia. No conformismo intelectual, temos um arremedo dele, temos fariseus hipócritas, puxa-sacos de todo gênero, temos a vigarice banalizada. Como afirma Humberto Eco: "o intelectual tem de ser a consciência crítica do grupo. Ele existe para incomodar".

 

 

Márcio Almeida

 

O que está em pauta, aliás, no ar, é a "vigência do poético na regência do virtual".

 

 

Ulisses Soares de Carvalho

 

Segundo Emmanuel Carneiro Leão, na história do ser e realizar-se do homem atual, vigência e regência não são duas condições que se desvinculam. Enquanto o virtual rege na vigência do poético, o poético já vige na regência do virtual. [Por isso, diz Manuel Antonio de Castro] se a cultura do poético e a cultura do virtual surgem e pertencem a uma mesma tradição histórica, suas línguas respectivas sofrem dificuldades radicais, isto é, dificuldades radicadas na própria essência de cada uma, para compreender os envios de ser e para lidar com as provocações de realizar-se na história de hoje, em tudo que é e está sendo no mundo atual. Se estamos dominados pela técnica numa regência sem volta e sem reserva, no virtual e com o virtual, isso se deve ao fato de que essa técnica já exerce o controle de todas as nossas línguas. Já não há, na disposição de seus vetores, mais espaço para nenhuma outra sintaxe, como também não sobra nenhuma outra semântica, conforme se lê em A Construção Poética do Real (Manuel Antônio de Castro, org. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004): "Nestas condições, 'só resta mesmo a saga do caminho', onde se poderão seguir os vestígios e investigar no nada da ausência o sentido de todo e qualquer domínio. O que, por sua vez, supõe que se aceite a dominação da técnica em toda a sua extensão e profundidade...".

 

 

Ulisses Soares de Carvalho

 

Concebe-se, por conseguinte, que nada mais importa senão a técnica, pois, caso contrário, a ilusão de que se pode pular a própria sombra prevaleceria, como se estivéssemos desvinculando o conhecimento do pensamento. Uma linguagem que as línguas da tradição e as línguas do virtual não podem controlar, tampouco conter, surge na vigência do poético. Entretanto, trata-se de um descontrole essencial, que demanda de nós uma atenção especial a respeito de um sério e sorrateiro perigo que nos adverte, não apenas em relação à possibilidade de uma destruição física, mas também sobre a originalidade de todas as coisas, preservando-se a essência inventiva da raça humana da monotomia das repetições e da ausência de surpresas na esterilidade das replicações. Em decorrência do advento do virtual, é necessário atentar-se para a experiência do nada no âmago de uma abundância ilimitada, porém monótona, já que monocórdia: "A humanização funcional do poder absoluto do Virtual é uma caixa-preta de Pandora: uma gigantesca armação, uma propaganda enganosa transcendental sobre o modo próprio de ser da nossa existência, pois, criando uma aparência contrária, nos leva para a forma mais perfeita de escravidão, uma escravidão que nos promete uma libertação total, desde que renunciemos operativamente à condição absoluta de sermos sempre fim e nunca meio, na formulação paradigmática de Kant. (...) A realidade é, na regência do Virtual e com ela, incitada a ficar apenas à disposição do homem e a promover a operacionalização de toda a sua energia de realização. Dessa forma, longe de ser um simples serviço do homem prestado à humanidade, o Virtual é antes uma força que põe a humanidade do homem a seu próprio serviço'" (A Construção Poética do Real. Manuel Antônio de Castro, org. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004).

 

 

Ulisses Soares de Carvalho

 

            Se, em nível linguístico, o virtual revela alguma virtuosidade e, mediante a globalização instituída pela internet, estende-se por todo o planeta, restringindo a comunicação à informatização, a linguagem do poético, que vige na poesia, configura-se num perfil originário e surpreendente, cujas características realizam-se justamente no funcionamento do virtual e baseiam-se na língua técnica. Descobre-se, por fim, oculto no coração do virtual, o mistério da linguagem, que não precisa da pronúncia para estabelecer a comunicação. Ao retirar-se das falas, a fim de perfazer a força de dizer, a linguagem gera espaço e institui lugar, nos quais o sentido percorrerá os discursos da língua.

 

 

Márcio Almeida Júnior

 

         Na prosa, antes dos dedos, é preciso fazer amplo e irrestrito uso dos olhos, dos ouvidos, do nariz e da pele. E é necessário transformar tudo o que os sentidos captam num conjunto racionalmente organizado de observações. Sem planejamento, o iniciante arrisca-se a cair no que se pode chamar de Síndrome de Kerouac, um procedimento relapso de composição. Para quem se inicia na prosa com a disposição de produzir com seriedade, a rapidez de publicação na blogosfera é um canto da sereia, uma ilusão perigosa. No papel ou na tela do computador, a literatura séria é muito mais do que o produto de um exercício de digitação criativa. A blogosfera é, por natureza, um ambiente em que simultaneamente se lê e se escreve, podendo-se afirmar que parte considerável dos leitores é constituída por pessoas que são, elas próprias, autoras. Essa circunstância favorece a intertextualidade num nível nunca alcançado no período anterior ao advento da web. E potencializa o risco do plágio involuntário decorrente das influências mal assimiladas.

 

 

Márcio Almeida

 

            Em resumo...

 

 

Márcio Almeida Júnior

 

         Apresento 7 teses sobre a blogosfera. 1ª tese: se é verdade que a blogosfera literária, de um modo radical e positivamente subversivo, eliminou os intermediários entre o autor e o leitor, trazendo a ambos uma visibilidade até então inesperada e democratizando a comunicação, também é verdade que essa eliminação nivelou todos aqueles que produzem conteúdo, no que isso tem de positivo e de problemático. 2ª tese: ao contrário do que se chegou a afirmar de modo demasiado rápido, a noção de autoria na blogosfera literária não foi eliminada ou mesmo relativizada. O que de fato mudou foi o diálogo intertextual entre autores, que se intensificou num nível até então inédito. Essa intensificação aponta para a necessidade de um movimento que caminhe no sentido de estabelecer, com respaldo legal, uma ética da citação, da glosa, da paráfrase, da resenha e do comentário de texto. 3ª tese: a blogosfera literária já tem nomes consolidados, entre os quais estão aqueles que se assumem essencialmente como autores virtuais e que, por decorrência, não vêem nos blogues apenas eventual plataforma de projeção para o texto impresso. Está reservada a esses autores assumidamente virtuais, mais do que aos outros, a tarefa de alargar os horizontes da blogosfera por meio da pesquisa e descoberta de novos processos de criação. 4ª tese: embora tenha autores consolidados, a blogosfera ainda não tem uma crítica à altura deles. A rigor, ainda não há um movimento amplo de crítica literária especialmente voltado para a produção literária virtual no que ela tem de diferente dos meios impressos. Esse quadro começa a se modificar, embora lentamente, por força da criação de publicações eletrônicas especializadas. 5ª tese: a ausência de uma crítica à altura da produção literária da blogosfera é mais um indício da falta de sintonia dos meios acadêmicos, de onde vem boa parte dos críticos, com o movimento de renovação vital das artes, inclusive a literatura. A academia está atrasada — às vezes preconceituosa — em relação à blogosfera, assim como no início do século passado esteve atrasada em relação ao cinema, e, sob certos aspectos, ainda está em relação à TV. 6ª tese: contrariamente ao que se chegou a difundir no início do boom da blogosfera literária, sua produção não consiste em mera transposição de gêneros e espécies textuais existentes na literatura de papel. A blogosfera já pode reivindicar a criação de pelo menos um gênero textual, ao qual se pode chamar Diário Multimídia. Misturando textos de vários tipos, imagens, sons e a interação constante com o leitor, o Diário Multimídia representa uma incontestável inovação de gênero no contexto da literatura. 7ª tese: toda a blogosfera permanece, por suas próprias características constitutivas, inclusive a facilidade de acesso e operacionalização, uma obra essencialmente em progresso, no sentido de ser aberta, contínua e plural.

 

 

Márcio Almeida

 

         Com ou sem computador, há um excesso de neoliberalismo produtivo-cultural, sobretudo poético, pasteurizando a intelligentsia poética e crítica em função de extremismos, exacerbações arraigadas em idiossincrasias bolorentas, em posicionamentos estanques cristalizados por ideologias déjà vu, em defesas radicais e intransigentes de teorias de areia à beira de um tsunami.

 

 

Marcos Siscar

 

            Procurando participar da arbitragem da suposta penúria ou "rotina" do contemporâneo, o texto revela o equívoco dessa prática, quando baseada no desprezo pela coerência autoral e no abuso da inexatidão, algo comprometedor mesmo no julgamento da obra mais pífia.

 

 

Márcio Almeida

 

         Por essa e outras tantas razões é que você, também com razão, alude a muitos críticos cuja preferência é "a aventura voyeurista da leitura de segunda mão", e que só fazem "infligir a miséria discursiva de seu ensaio ligeiro".

 

 

Marcos Siscar

 

         O que o crítico solenemente ignora pode o poeta experienciar: a história do sujeito é uma história de brutalidades, a história do seu desejo de constituir-se como sujeito, reagindo ao rapto de seu direito de fala. Mais do que compartilhar esse direito, cabe ao poeta hoje reivindicá-lo.

 

 

Márcio Almeida 

 

         É por isso também que hoje a crítica dita especializada, a partir da própria academia, pratica o sequestro de reconhecimento de autores que de fato têm algo a dizer na ou à pós-modernidade, mantendo o massapé reflexivo em torno dos Machados de Assis e Drummonds de sempre. O que entra de soslaio é como se fosse um favor da acuidade acadêmica nos intervalos de sua arrogância epistêmica.

 

 

Cândido Rolim

 

         A crítica sempre se mostrou mais ou menos incapacitada para dar conta do fenômeno poético de seu tempo, principalmente quando desdenhou as obras que se negaram a um esgotamento precoce ou quando fizeram apressadas idealizações. Muitas vezes denunciou equívocos e o sepultamento prematuro de obras que ainda se prestaram a inúmeras ressurreições. Mas que salto qualitativo ou quantitativo foi este que blindou a poesia contemporânea de qualquer avaliação plausível, de um mínimo "diagnóstico de imagem" ou de uma trans-figuração livre e vulgar? Por que se diz que ainda não surgiu uma crítica apta a ler com propriedade a poesia contemporânea?

         Isso se deve a uma incapacidade de avaliação em si ou uma refratariedade programada dos novos modelos estéticos? E essa nova estética, se existente, mereceria a intervenção de um mediador tão qualificado? Em que medida? Há necessidade, enfim, dessa urgente interlocução? Seria normal destinar o texto poético previamente a determinada faixa de competência analítica? E feito isso, a opacidade desse mesmo texto não inviabilizaria as incursões transcriadoras, diruptivas, corrosivas de um leitor indisciplinado e leigo?

 

 

Márcio Almeida

 

            Você faz tal assertiva e levanta tais questionamentos, porque poetas indignados do país de 16 milhões de analfabetos e de 61% de alfabetizados que nunca têm qualquer contato com qualquer tipo de livro reclamaram, via virtual, não ter uma crítica competente para avaliar com propriedade a poesia que eles produzem, como se fossem gênios à espera de um tardo boom de reconhecimento, confere?

 

 

Cândido Rolim

 

         Normalmente aponta-se a imperícia da crítica, impregnada de vícios estéticos, para abordar a inabarcável produção contemporânea, desde um prisma desconstrutivo, fragmentário, caótico. Tal observação, quando dirigida a certa crítica acadêmica que ainda pratica dicotomias redutoras, analógicas, ainda nutridas nos moldes modernistas do século passado, tem sua razão.

         De fato, apesar da constante recomendação para que se olhe com olhos novos o que surge, as obsoletas ferramentas modernistas são no mínimo inadequadas para dar conta da produção poética atual — mesmo com a ressalva de que crítica alguma deu-se ao trabalho de esgotar as linguagens de seu tempo. No entanto, tal deficiência deve ser vista com cuidado, principalmente levando-se em conta o círculo vicioso da competência poética em que se meteu a poesia de hoje, desdenhando todas as tentativas de ruptura e julgando já a intransigência e subversão como simples operações fora de foco.

         A denúncia feita pelos poetas cria, de qualquer forma, uma problemática. Mas talvez caia num perigoso jogo de excelência se considerar a nova poesia, dada sua privilegiada carga de informação acadêmica, acessável de forma global, como imune a todo e qualquer espigaçamento crítico e, por extensão, a toda revogação ditada pelos atritos estéticos com outras linguagens e com ela própria. Desconfia-se, por exemplo, que uma ostentação cosmopolita, repetindo o mesmo equívoco humanista do passado, busque imunizar-se não só de um indisciplinado leitor transgressivo e transcriador.

         Confrontos à parte, cabe lembrar que, se a arte contemporânea não tem lugar nem vez para a crítica de seu tempo, nem se permite um convívio mínimo, para quem afinal é escrita e por que ainda é produzida? O fato de já nascer crítica dispensaria a poesia de um olhar de fora, um ver-se de qualquer espécie?

         Com efeito, essa poesia, que prima pela alta voltagem informacional de seus praticantes, sem perceber parece ressuscitar uma "necessidade de época", em que pese arte contemporânea pautar-se na ausência de paradigma e linhas de definição nítida. E se de fato há esse gosto nivelador ou uma total ausência de avaliação, espera-se pelo menos que a poesia desenvolva a capacidade de discrepar de seu entorno e cobrar de si uma radicalidade cada vez mais inventiva. Vale lembrar também que, autônoma ou não, a crítica como discurso é algo que vem posterior à obra poética. Convenhamos, embora não seja tributária de todos os equívocos cometidos, muitas vezes ressente-se de obras-referência e sua autonomia não vai ao ponto de justificar o injustificável ou de preencher a lacuna estética que as próprias obras não deram conta de fazê-lo.

 

 

Rodrigo Garcia Lopes

 

         O desafio está em não cair numa metalinguagem barata. Ou solipsismo ("não há nada fora de minha mente"). Ao contrário, o poema é um encontro em nosso território comum, nosso habitat. Poemas são seres vacilantes, como animais, organismos, e parecem estar o tempo todo querendo incorporar o caráter fragmentário e material da experiência. Por isso, parecem muitas vezes "incompletos". Todas as abordagens poéticas, seja através de iluminuras, personas, objetivos correlativos, colagem, simultaneismo, pastiche, ostranienie, ideograma, no-sequitur — desembocam, por operações distintas, na grande questão: o espaço habitado pela poesia enquanto matéria mental, entre palavra e mundo. Entre estar mudo e ser mundo. O poema nasce enquanto o procuramos.

 

 

Marcos Siscar

 

            A atmosfera crítica um tanto melancólica, apontando nos poetas a ausência de "grandes questões" — poéticas e políticas — é um sinal muito claro de que as questões mudaram ou estão a ponto de fazê-lo.

 

 

Luis Dolhnikoff

 

         A afirmação acima não contempla a hipótese, permitida pela lógica, de a causa do fenômeno estar não nas questões, mas nos poetas. Neste caso, a ausência de "grandes questões" seria um sinal da incapacidade dos poetas de lidar com elas. Pretendo, portanto, aprofundar esse quadro com a análise de duas outras variáveis: quais são as possíveis "grandes questões" contemporâneas, e quais as prováveis limitações dos poetas ao (não) as abordar.

 

 

Márcio Almeida

 

         O que foi exaustiva e brilhantemente feito no ensaio "Poesia média e grandes questões", Cronópios, 12/4/2006. E nele, que pontos fundamentais poderiam ser destacados?

 

 

Luis Dolhnikoff

 

         O que são, afinal, bons poemas, necessários para que haja bons poetas? Explica-se, enfim, a ausência de grandes questões poéticas: voltou-se ao verso por inércia. E a inércia é auto-explicativa. Inércia, porém, não tem aqui nenhuma conotação negativa. A volta ao verso em si mesma, não indica qualquer deficiência dos poetas contemporâneos, mas o "pecado original" da teleologia vanguardista. O engano da teleologia vanguardista foi não avaliar corretamente a tremenda inércia histórico-cultural do verso. É possível entender as vanguardas visualistas dos anos 50 como um questionamento do monopólio poético do verso, equivalente ao questionamento da figuração nas artes plásticas e da tonalidade na música. Passado, porém, o momento vanguardista, o resultado não é a substituição de um monopólio por outro, ou seja, o monopólio da poesia visual, do abstracionismo e do atonalismo. A quebra dos monopólios formais e semânticos não faria, neste caso, muito sentido. Trata-se, então, da manutenção da pluralidade. Se a pluralidade não está em questão, não estão em questão os elementos plurais que a constituem. A poesia em verso é um desses elementos. Faz-se poema em verso, hoje, por opção (o que não contradiz a inércia: pois esta explica a sobrevivência do verso, não as escolhas individuais). E uma opção é uma resposta.

         A grande questão da poesia brasileira contemporânea não está, portanto, na poética, mas na crítica. E a questão da crítica pode ser resumida numa pergunta: onde estão os grandes questionamentos das obras contemporâneas? A grande questão da poesia brasileira contemporânea está, enfim, na ausência — ou, para usar a expressão de Paulo Franchetti, na demissão — da crítica.

         Outro texto do mesmo número de Sibila [nº 8], do próprio Franchetti, intitulado, justamente "A demissão da crítica" (p. 25-40), faz um diagnóstico preciso (nos dois sentidos) da questão.[Nota da editora: texto publicado na Germina — Revista de Literatura e Arte, em abril de 2005. Clique aqui e leia].  Além do diagnóstico, discute um caso específico, o da crítica do livro de Manuel da Costa Pinto, Literatura brasileira hoje, por Alcir Pécora [Nota da editora: em "Momento Crítico: Meu Meio Século", publicado na Germina — Revista de Literatura e Arte, em janeiro de 2005. clique aqui e leia]. O livro é, em si mesmo, um livro de crítica de poesia (na parte que aqui interessa), mas um livro de crítica sem crítica, sem análise. Neste sentido, é um exemplo cabal de demissão da crítica, pois esta não se dá apenas pelo silêncio ou pela indiferença, mas também pela crítica acrítica. A segunda parte do problema está em outra herança do período anterior, que não se refere à contraposição entre poesia visual e verbal, mas entre capitalismo e socialismo. Ou seja, a herança do quadro ideológico da Guerra Fria.  O problema, hoje, começa precisamente pelo fato de o projeto de superação da barbárie capitalista não mais existir. Em lugar de um projeto, o que há é um ressentimento profundo, difuso e impotente face à vitória capitalista na Guerra Fria.

         Não há nenhum projeto real e realista de superação da "modernização conservadora" (a débâcle a um só tempo patética e infame do PT deveria ser suficiente). E se o horizonte político não o contempla, por que deveria a poesia contemplá-lo? Afinal, que relação tem necessariamente a poesia com tal questão? No horizonte político contemporâneo, a crença na superação de tal "modernização" é isso mesmo, uma crença. E crenças não fazem poemas.

         Ao lado das "grandes questões" políticas que são a globalização, o império e a crise ambiental, e das "grandes respostas" que são o movimento antiglobalização, o antiamericanismo, o multiculturalismo e o ambientalismo ideológico, há o apequenamento militante advindo não do fim das utopias, mas do início do mundo "pós-moderno.".

         A complexidade do mundo contemporâneo alimenta a privatização das questões poéticas. Alimenta, também, certo viés antimoderno que perpassa a poesia, e se manifesta pelo "primitivismo", pela "ingenuidade", pelo  naïf que Siscar reconhece em poetas tão diferentes como Manuel de Barros e Arnaldo Antunes. A resposta, enfim, para a incapacidade de os poetas tratarem das grandes questões políticas contemporâneas é a moldura ideológica. Tanto o movimento antiglobalização, como o antiamericanismo, o multiculturalismo e o ambientalismo são pequenas ideologias, ou seja, conceitos que se "naturalizaram", cuja "verdade" é dada então como inquestionável. Ao serem respostas, e não questões, sequer são abordadas. Resta como tema dominante, na prática, o próprio autor do poema e seu entorno — o que há é um retorno ao seu eu lírico. Grande parte dos poemas é, mais uma vez, na primeira pessoa do singular. Mas como esse eu, na perplexidade fragmentária contemporânea, não pode ser uma metonímia de um de nós, assim como o foi em poetas tão distintos como Rimbaud, Baudelaire, Pessoa e Drummond, é um eu lírico apequenado. Definido é o quadro poético contemporâneo, amplamente dominado por uma poesia em versos livres em que, numa ponta, o corte dos versos de modo intenso e intensamente arbitrário, e na outra, o não-corte de versos prosaicos, indicam uma mesma frouxidão das relações entre forma e significado. Os temas dessa poesia, sejam referências ideológicas às "grandes questões" discutidas acima ou às pequenas questões que incomodam o eu lírico, são, portanto, normalmente tratados com a mesma frouxidão das relações entre significado e forma.

 

 

Beatriz Amaral

 

         Entre os fragmentos descontínuos dos mais consistentes postulados inseridos nas cartas programáticas e manifestos dos movimentos de vanguarda do início do século XX e as margens do crescente hibridismo sígnico, semântico, formal e filosófico que se manifesta na contemporaneidade, circula a experiência poética, hóspede de águas que se deslocam, se fundem ou se estranham, em esferas de convergência ou pontos de dissonância. Seguindo um curso nem sempre de fácil identificação, para onde navega a poesia contemporânea? Onde almeja lançar âncoras? Será possível identificar a direção desta ancoragem? Haverá efetivamente uma tendência a nortear seu curso? E qual o espaço da invenção como força propulsora deste curso?

         Na contramão do discurso lógico que orienta a sociedade de consumo e a cultura de massas, caminha, em seu paradoxal destino, a força aparentemente frágil do poeta, que permanece adestrando seus instrumentos e recursos rumo aos desígnios do futuro. Olho crítico, antecipatório, ou antena poundiana, a manifestação poética se apresenta necessariamente livre na construção de sua própria linguagem.

 

 

Márcio Almeida

 

            A poesia se alimenta de óbvios desconhecidos?

 

 

Beatriz Amaral

 

            Ao reconhecermos que a prática habita em um locus de marginalidade, no sentido de constituir uma manifestação sempre posta em situação periférica e não central no discurso que predomina no tecido orgânico da sociedade, cumpre-nos investigar como se configura este espaço. A poesia contemporânea se erige a partir de duas vertentes distintas e bem definidas. De um lado, tem-se uma verdadeira plêiade de práticas poéticas desenvolvidas a partir da crescente e progressiva utilização de recursos tecnológicos: os computadores, o vídeo, a holografia. Esta vertente deriva, na verdade, dos postulados que delinearam os movimentos vanguardistas do início do século XX, período que se convencionou chamar de "fase heróica" das vanguardas. Elementos antes impensados, como a colagem aleatória de palavras, geravam os chamados "poemas simultâneos", cuja feição é ainda hoje cultivada em suportes diversos do livro e do papel. Sons, imagens, gestos, happenings, performances, por tais dimensões caminhava a poesia das primeiras décadas do século XX. Os programas das vanguardas, embora apresentado cada um deles peculiaridades próprias, almejavam, em uníssono, combater a discursividade, o excesso de retórica, a verborragia, e, naturalmente, recorriam a procedimentos por vezes meramente emblemáticos, simplesmente com o propósito de implantar, implementar e sublimar suas propostas conceituais.

 

©hélio oiticica

 

 

         Sem dúvida, ao dirigirmos o olhar para a poesia que se pratica hoje, encontraremos uma vertente que deriva das conquistas oriundas desses marcos de inventividade e radicalismo experimental presentes nas vanguardas do início do século vinte e suas derivações. Nesta vertente estão os poetas visuais, os expoentes da poesia sonora, os representantes da poesia eletrônica, os criadores que realizam suas obras como objetos plásticos, às vezes até mesmo não-verbais, o que gera uma discussão acerca de seu pertencimento ou não ao gênero poético.  Como bem anota Carlos Ávila, houve e há hoje, século 21, poesia com e sem verso, poesia visualizada e/ou codificada na página, oralizada e sonorizada em performances, transformada em objeto plástico ou holográfico.

         A menção ao abuso de certos procedimentos que correspondem à ausência de regras e de técnicas, expressa o descomedimento do uso indiscriminado daquelas novidades (agora já centenárias) que emanaram dos programas vanguardistas do início do século vinte. Claro está que a concisão, o adensamento da linguagem, a busca incessante do estranhamento (ostrânienie), o combate ao discursivismo exagerado, as tentativas de renovação da linguagem encontrarão, sempre, seu lugar na essência da poesia de qualidade que pretenda ser, efetivamente, uma manifestação de plena literariedade.

         Porém, os exageros praticados em nome dessa liberdade, correspondentes ao que Pound chamaria de diluição, certamente se mostram tão merecedores de reação quanto o regramento excessivo, a obediência a cânones de métrica e rima, a retórica artificial, o excesso de subjetivismo presentes na poética do século 19, características contra as quais se insurgiram os primeiros vanguardistas e modernistas.

         Bem por isso, além de uma prática poética que jamais se deixou sensibilizar ou seduzir pelas inovações estéticas às quais fizemos referência, surge outra, de teor ainda mais acentuadamente verbal e discursivo, que se manifesta pela necessidade de impor um limite aos que vislumbram constituir um mero processo de dissolução da estrutura da arte poética, em cujo bojo teriam sido abrigados modismos e experiências muito pouco  consistentes.

         Obviamente, a complexidade de pensamento que orienta essas duas vertentes não comporta reducionismos ou simplificações, pois subjacentes à exteriorização de cada uma delas estão vetores gerados pela multifacetada cosmovisão que habita a sociedade contemporânea e permeia todas as suas manifestações de natureza cultural. Entre os poetas que se inserem na vertente mais tradicional da poesia certamente há aqueles capazes de criar ob rãs autorais, singulares e de teor literário inconteste e que, embora retomem uma dicção por vezes narrativa, não olvidam as conquistas do século vinte e com essas estabelecem fecundo diálogo. Porém, como não poderia deixar de ocorrer, com estes certamente coexistem outros, cuja poesia só faz retomar os excessos retóricos e vícios do passado, inserindo-se numa faixa de produção tão dispensável quanto a dos já mencionados diluidores exponenciais das vanguardas. Estes últimos, naturalmente, seriam poetas empenhados em ressuscitar uma grandiloqüência vazia, exagerada, retomando indesejáveis vícios de anacronismo e ausência de criatividade. Nesta vertente, mostra-se visível o que Carlito Azevedo, com propriedade, chamou de banalidades de antiquário.

         Existem duas ideias sobre a poesia brasileira que são consensuais, a ponto de terem virado lugares-comuns. A primeira diz que um de seus traços dominantes é o diálogo cerrado com a tradição. Mas não qualquer tradição. O marco zero, por assim dizer, seria a poesia que emergiu com a Semana de Arte Moderna de 22. A segunda ideia, decorrente da primeira, é que essa linhagem modernista se bifurca em dois eixos principais: uma vertente mais lírica, subjetiva, articulada em torno de Mário de Andrade. Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, representada por Oswald de Andrade, João Cabral de Melo Neto e a poesia concreta.

         Mas, se as dissonâncias pareciam querer persistir, alguns fenômenos presentes na história da literatura agora já apontam para visíveis e irreversíveis confluências. Entre esses fenômenos está o hibridismo dos gêneros, isto é, a superação da rigidez das fronteiras que os separavam. Sob a égide desse hibridismo, florescem expressões de indiscutível intersecção. É o caso do poema em prosa, do prosoema, atualmente cultivado por muitos de nossos mais destacados poetas. "O hibridismo dos gêneros, conforme Haroldo de Campos (A ruptura dos gêneros na literatura latino-americana, 1977, p.15-16) passa a ser também como o hibridismo dos media, e a se alimentar dele. A linguagem descontínua e alternativa veio encontrar na simultaneidade e no fragmentarismo do jornal seu desaguadouro natural".         

         Ora, é inegável a crescente onda de hibridização de gêneros literários presente em todas as literaturas do globo. Se esta onda é definitiva ou passageira, somente a história poderá responder com exatidão. Mas, de qualquer forma, os conceitos de definitivo e de exato não encontram guarida nos domínios da estética nem da literatura. Certamente existem progressivos movimentos de interpenetração de tendências: diálogo, osmose, intersecção, confluência, movimentos que se intercalam ou se entrelaçam na prática da poesia. Mosaico, deslocamento, jogo de espelhos e alternâncias: neste locus se movimenta o fluxo da produção poética contemporânea.

         Portanto, se a dilaceração do tecido poético apontada pelos movimentos vanguardistas do princípio do século vinte parecia somente empenhada na promoção de uma absoluta e espetacular ruptura de formas, estruturas e regras, uma compreensão mais ampla de seu significado, demonstra, hoje, o contrário. Da dilaceração e das dissonâncias, forja-se um panorama de confluências e intersecções, onde se erige a nova prática da poesia, ainda em grau de prototexto, mas já contendo em sua essência a irreversível tendência polifônica e inventiva que caracteriza nosso tempo: múltiplo, polissêmico, paradoxal e aberto.

 

 

Susanna Busato

 

            A imagem poética surge como percepção única, singular das coisas. Como desestruturar a camada simbólica desse signo e fazê-lo novamente signo, ou seja, um representamen mais próximo daquilo que nossos sentidos percebem do mundo? Como traduzir no mero signo a imagem presente nas coisas? Como alçar nesse signo a condição abstrata e concreta do mundo simultaneamente? A arbitrariedade com que o nosso código lingüístico está assentado torna tudo mais difícil, como também desafiador. Os limites do signo começam a ser perturbados por força da própria carga expressiva que o invade quando sua presença afasta-se do contexto meramente comunicativo, para manifestar-se como ícone, como pura sensação, no contexto artístico da linguagem.

         A poesia inserida na perspectiva de que "literatura é novidade que permanece novidade", como Pound a define em seu ABC, conhece muito bem a operação desautomatizadora e metalingüística da linguagem. A tradição que invade a poesia contemporânea nessa concepção a que aludo, desde o simbolismo, passando pela revolução modernista de Oswald de Andrade, caminhando pelas trilhas inovadoras de João Cabral e da Poesia Concreta, essa tradição legou uma perspectiva de escritura que sabe que não há limite possível no processo de construção poética. As molduras entre as linguagens tornam-se tênues em nosso século. A tecnologia digital e o universo da imagem em todas suas manifestações ensinam que não há mundo possível fora dessa dinâmica, desse movimento contínuo das imbricações entre as séries culturais e artísticas, e das trocas entre códigos e sistemas.  Não há como alijar-se do processo intercambiante de formas, pois o mundo hoje apresenta uma complexidade de conhecimento, cujas fontes são também diversas.

         Aproximar o distante, promover uma relação fora do eixo lógico-discursivo da linguagem, promover o encontro fono-sintático-semântico entre unidades significantes fora do universo acomodado dos modelos determinados pela língua, é o gesto poético que inaugura para o autor um modo singular de perceber o mundo e de expressá-lo.

         A leitura de poesia deve perseguir o trajeto do signo na sua arquitextura, pois é nesse percurso que o sentido se constrói e não fora dele. A arquitextura da obra poética é um complexo estrutural que nasce no diálogo entre formas. Estar ciente de que as linguagens caminham no mundo plasmando-se e iluminando-se mutuamente é condição para inserirmo-nos no universo da poesia de modo mais pleno, ainda que essa plenitude não seja completa, pois a poesia constrói-se como um enigma e cada leitura revela-se impotente diante do pensamento abstrato que abriga os sentidos da imagem poética. Sem isso, caímos no conteudismo dos letrados, das discussões temáticas e acadêmicas sobre as influências ou sobre as estatísticas que mensuram a incidência de palavras de tal ou qual categoria no texto do autor; tais preocupações fogem do caráter central e essencial de que se nutre a arte: a linguagem e sua arquitextura e os aspectos intermidiáticos com os quais mantém alguma relação. Não é a travessia do rio que importa, mas a permanência no rio.

 

 

Márcio Almeida

 

         Sente-se que de leitura para leitura, os parâmetros que constituem a poesia contemporânea têm entre boa parte dos pensadores da poética atual: 1º) uma intenção de situá-la, em nível de recorrência, a partir da ruptura realizada pelas vanguardas históricas; 2º) uma ruptura com os hoje canônicos princípios dessas vanguardas; 3º) um posicionamento que considera a pós-modernidade como decorrente da fragmentação de todos os discursos; 4º) a forte e inevitável influência do computador na produção poética e sua internetização com recepção instantânea; 5º) a permanência de uma linha de produção conservadora, baseada em ismos estanques, sintaxes semântico-linguísticas puras que privilegiam a palavra e pouco ou nada admitem experimentalismos. E gravitando em torno do questionamento poético hodierno, leituras revisionistas, propositivas e provocadoras aludem a respeito da necessidade de uma crítica condizente à produção de uma poesia que supostamente se auto-intitula órfã de profissionais especializados para reconhecer os méritos de uma genialidade ainda incipiente a cobrar visibilidade em meio a um turbilhão de produtores no espaço da internet, cujo excesso é indicador da fragilidade qualitativa da própria produção (ou o que Luís Dolhnikoff chama de materialização do democratismo antimeritocrático em voga).

         Substitui-se ou transfere-se a academia canônica, papal (papa na língua, papa da comunicação, papa-aluna, papa-léguas de distância do "cheiro" de povo, papa-hóstia do "demônio da teoria", papa-defuntos de epitáfios brilhantes) com seu conhecimento no gesso da metodologia, do multiculturalismo, dos entrelugares, em detrimento xenófobo pelo que é nacional, da cultura dita popular, para a academídia planetária, plugada em tempo real e em vias de admitir, ainda que neguem os internautas-referência, não mais uma torre de marfim, mas uma torre receptora/transmissora em banda larga de suas/nossas proezas de silício e congêneres, para uma aldeia não mais apenas mcluhanianamente global, mas com amplitude doméstica sob a ilusória e narcísica acepção de que basta ligar o computador e lá vêm bobagens geniais sob o duplo impacto de recursos informáticos, com domínio de programas sofisticados que garantem "efeitos especiais" à linguagem, e o domínio epistêmico adquirido antes na academia-academia. A poesia de hoje resistiria a uma leitura sem a adjetivação conceitual? Sem os ganchos e as sinapses eruditas que per si selecionam receptores, a poesia teria chance de voltar a chegar ao povo da rua? Ou isso é absolutamente irrelevante, desde que Oswald de Andrade anunciou que "o povo ainda vai comer do meu biscoito fino"? Existiria, até por necessidade didática, uma pedagogia poética pós-moderna, ou os próprios loci no tempo veloz da contemporaneidade já se encarregam de munir os adeptos do VLER de vetores de leitura? Os produtores de poesia pós-modernos teriam uma mínima preocupação com a recepção poética? A poesia contemporânea manter-se-á "nos eixos"? (eixo Rio/São Paulo, eixos paradigmático/sintagmático).