Albrecht Dürer, 1506, Nuremberg, Alemanha | Germainisches Nationalmuseum
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Vieira e Haroldo de Campos têm em alta conta o "usar bem do jogo", o repertório dos argumentos a favor da arte de cada um. Ambos, bons semeadores que são, transformam a realidade, ou a representação dela, através da semente/pedra da linguagem.

Vieira foi, sem contestação, uma das maiores figuras do século XVII; e o foi não apenas como escritor e como pregador que dominava, com invulgar talento, a arte de escrever e de falar; mas também como inteligência capaz de compreender os grandes problemas religiosos, morais, políticos, sociais e econômicos de sua época, e como homem de ação. Daí não ser possível entender e avaliar a cultura brasileira de seu tempo, sem o conhecimento de sua vida e de sua obra (quinhentas cartas e duzentos sermões).

Data da Quaresma de 1655 o Sermão da Sexagésima, pregado na Capela Real. Nele, Vieira critica os "estilos cultos", as agudezas gongóricas que então eram usadíssimas pelos seus rivais dominicanos da Inquisição. Sua argumentação fundamenta-se no conceito predicável extraído de Mateus, XIII, 3, "saiu o semeador a semear" (VIEIRA,1959, v. 1, t. 1, p. 3)1 2 desenvolvendo-o palavra por palavra e acrescentando-lhe "a sua semente". O leitor poderia pensar que fala abstratamente do pregador evangélico e da teoria da oratória, mas fala efetivamente de si mesmo e dos missionários jesuítas do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará, também atacando destemidamente o Santo Ofício da Inquisição, quando ataca o estilo do seu maior pregador e distingue duas espécies de pregadores, "os que ficam" e "os que saem". É nesse sermão que faz o trocadilho "paço/passos", condensando o programa missionário da Companhia de Jesus. Perguntando ironicamente o que acontecerá aos pregadores no dia do Juízo, afirma que então "Os de cá achar-vos-eis com mais paço; os de lá, com mais passos" (p. 4).

Ou seja, os que ficam e pregam na Corte, como os dominicanos da Inquisição, com mais apego às coisas do mundo, e "os que saem" a pregar nas missões, como os jesuítas do Maranhão, com mais ações virtuosas e mais sofrimentos. Esse sermão foi escolhido por ele para abrir os volumes de suas obras oratórias, ficando conhecido como o principal texto doutrinário do "método português de pregar".

Neste Sermão, Vieira definiu seu estilo parenético como uma profissão de fé oratória. Sua argumentação desenvolve-se em torno da seguinte questão: — Por que, hoje, faz pouco fruto a palavra de Deus? E argumenta: "Fazer pouco fruto a palavra de Deus no mundo pode proceder de um dos três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus" (p. 10). Depois de concluir que o pequeno efeito da pregação não depende de Deus, passa a considerar a pessoa do ouvinte e do pregador.

O bom ouvinte, que é a terra boa, onde caiu e logo frutificou a semente evangélica; o mau ouvinte, que, na metáfora bíblica, é representado pelos espinhos e pela pedra, onde, caindo a semente da palavra de Deus, não logrou frutificar, porque, no primeiro caso, afogaram-na os espinhos, no segundo, secou-a a pedra; a comparação continua e o pregador conclui que o mau ouvinte é: ou ouvinte agudo, como os espinhos da seara evangélica, nos espíritos dos quais não frutifica completamente a palavra de Deus "porque vêm só a ouvir sutilezas, a esperar galantarias, a avaliar pensamentos e às vezes também a picar quem os não pica" (p. 12); ou o ouvinte duro, aquele que seria o pior

 

porque um entendimento agudo pode-se ferir pelos fios e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais; porque quando as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. (p. 12)

 

Conclui Vieira que sua tese — do pouco fruto, no mundo, da palavra de Deus — ainda não se demonstrava pela parte do ouvinte, então passa a considerar o pregador:

 

Mas em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá essa culpa? No pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o estilo, a voz. A pessoa que é, a ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue, a voz que fala. (p. 13-14)

 

A pessoa do pregador deve corresponder, em perfeição moral, em atos virtuosos, à perfeição da doutrina divina, à soma de virtudes que essa doutrina expõe. Considera depois a ciência do pregador:

 

Muitos pregadores há que vivem do que não colheram, e semeiam o que não trabalharam [...] O pregador há de pregar o seu e não o alheio [...] Alguém terá experimentado que o alheio lhe nasce em casa, mas esteja certo, que se nasce, não há de deitar raízes, e o que não tem raízes, não pode dar fruto. (p. 24)

 

Mais adiante, lembrando os pescadores que se fizeram apóstolos e comparando a confecção das redes com a elaboração dos sermões conclui:

 

A rede tem chumbada que vai ao fundo, e tem cortiça que nada em cima da água. A pregação tem umas coisas de mais peso e de mais fundo, e tem outras mais superficiais e mais leves, e governar o leve e o pesado só o sabe fazer quem faz a rede. [...] As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. (p. 25).

 

Vieira exigia do pregador o que sempre exigiu para si: o saber completo da matéria tratada, a ciência vasta, a erudição profunda.

Em seguida, considera a matéria do sermão:

 

Usa-se hoje o modo, que chamam de apostilar o Evangelho, em que tomam muitas matérias, levantam muitos assuntos, e que levanta muita caça e não segue nenhuma, não é muito mais que se recolha com as mãos vazias [...] O sermão há de ter um só assunto e uma só matéria [...] Jonas em quarenta dias pregou um só assunto e nós queremos pregar quarenta assuntos em uma hora? Por isso não pregamos nenhum. O sermão há de ser de uma só cor, há de ter um só objeto, um só assunto, uma só matéria. Há de tomar o pregador uma só matéria; há de defini-la para que se conheça: há de dividi-la para que se distinga; há de prová-la com a Escritura; há de declará-la com a razão; há de confirmá-la com o exemplo, há de amplificá-la com as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; [...] há de apertar, há de concluir, há de persuadir, há de acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais alto. Não nego, nem quero dizer, que o sermão não haja de ter variedade de discursos; mas esses hão de nascer todos da mesma matéria e continuar e acabar nela (...) De maneira que há de haver frutos, há de haver flores, há de haver varas, há de haver folhas, há de haver ramos; mas tudo nascido e fundado em um só tronco, que é uma só matéria. Se tudo são troncos, não é um sermão, é madeira. Se tudo são ramos, não é um sermão, são maravalhas. Se tudo são folhas, não é sermão, são verças. Se tudo são varas, não é um sermão, é feixe. Se tudo são flores, não é sermão, é ramalhete. Serem tudo frutos, não pode ser, porque não há frutos sem árvore [...] Eis aqui como hão de ser os sermões; eis aqui como não são. E assim não é muito que se não faça fruto com eles. (p. 21-23)

 

É a unidade na variedade, a acumulação barroca de imagens e idéias espiraladas e espelhadas. Considera em seguida o estilo do pregador, para explicar o pouco fruto que faz a palavra de Deus e também investiga as razões do fracasso das pregações, sem deixar de fustigar os colonos maranhenses e, sutilmente, seus inimigos dominicanos:

 

Será porventura o estilo, que hoje se usa nos púlpitos? Um estilo tão empeçado, um estilo tão dificultoso, um estilo tão afectado, um estilo tão encontrado a toda a arte e a toda a natureza? [...] O estilo há de ser muito fácil e muito  natural. Por isso Cristo comparou o pregar ao semear, [...] porque o semear é uma arte, que tem mais de natureza, que de arte. Nas outras artes tudo é arte: na música tudo se faz por compasso; na arquitectura tudo se faz por regra; na aritmética tudo se faz por conta; na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte; caia onde cair. Vede como semeava o nosso lavrador do Evangelho[...]. Assim há de ser o pregar. Hão de cair as coisas e hão de nascer: tão naturais que vão caindo, tão próprias que venham nascendo. Que diferente é o estilo violento e tirânico que hoje se usa? Ver vir os tristes passos da Escritura, como quem vem ao martírio: uns vêm acarretados, outros vêm arrastados, outros vêm estirados, outros vêm torcidos, outros vêm despedaçados, só atados não vêm (p. 18).

 

E como uma bela comparação faz ver o verdadeiro estilo da pregação:

 

Já que falo contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no Mundo. E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve foi o Céu [...] Suposto que o Céu é pregador, deve de ter sermões e deve de ter palavras [...] E quais são estes sermões e estas palavras do Céu? As palavras são as estrelas, os sermões são a composição, a ordem, a harmonia e o curso delas. Vede como diz o estilo de pregar do Céu com o estilo que Cristo ensinou na terra? Um e outro é semear: a terra semeada de trigo; o Céu semeado de estrelas. O pregar há de ser como quem semeia, e não como quem ladrilha ou azuleja. Ordenado, mas como as estrelas. [...] Todas as estrelas estão por sua ordem; mas ordem que faz influência, não é ordem que faça lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas, como os pregadores fazem o sermão em xadrez de palavras [...] Aprendamos do Céu o estilo da disposição, e também o das palavras. Como hão de ser as palavras? Como as estrelas. As estrelas são muito distintas e muito claras. [...] O estilo pode ser muito claro e muito alto: tão claro que o entendem os que não sabem; e tão alto que tenham muito que entender nele os que sabem. Esse desventurado estilo que hoje se usa, os que o querem honrar, chamam-lhe culto; os que o condenam, chamam-lhe escuro; mas ainda lhe fazem honra. O estilo culto não é escuro, é negro, e negro boçal, e muito cerrado. É possível que somos portugueses, e havemos de ouvir um pregador em português e não havemos de entender o que diz? (p. 19-20).

 

E termina:

 

Antigamente pregavam bradando, hoje pregam conversando. Antigamente a primeira parte do pregador era boa voz, e bom peito. E verdadeiramente, como o mundo se governa tanto pelos sentidos, podem às vezes mais os brados que a razão. [...] E como os brados do mundo podem tanto, bem é que bradem algumas vezes os pregadores, bem é que gritem. (p. 27-28).

 

O orador sacro pode usar de uma ou outra forma de falar; tudo depende da oportunidade. Vieira, por fim, conclui que "nenhuma destas razões [...] nem todas elas juntas são a causa principal nem bastante do pouco fruto" (p. 29) que fazia em seu tempo a palavra de Deus. Continua então nas suas indagações e na crítica aos maus pregadores. Condena nos pregadores as palavras que usavam, que "são palavras, mas não são palavras de Deus" (p. 29); pois que as interpretavam a seu modo, mais preocupados com as agudezas, que com a verdade e lição dos textos; e nisto mais pareciam representar uma comédia, ou pior, uma farsa, pelo modo como falavam, como gesticulavam, como se vestiam; subiam ao púlpito e se punham a "motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fora tanto para chorar?" (p. 34).

Prevendo que os ouvintes, apreciadores do estilo cultista, podiam responder que o que agradava era esse estilo e não o que o pregador defendia, responde: "Zombem e não gostem embora, e façamos nós o nosso ofício" (p. 35).

Vieira termina o sermão ferindo os exageros gongóricos. E assim ficava a definição do estilo oratório necessário: preocupação com os temas centrais do momento: religiosos, sociais e políticos. O verbo claro e incisivo a favor de uma causa social, e não a palavra pela palavra, a arte pela arte, ou a ourivesaria retórica trabalhada para deleitar a imaginação e satisfazer o gosto dos malabarismos dialéticos. Estética conceptista, isto é, preocupação do pensamento claro, da unidade do discurso, da lógica precisa.

Numa exploração barroca da árdua construção, da gongórica opacidade de um texto saturado de si mesmo, em Galáxias, Haroldo de Campos usa a viagem como percurso da escrita, a ação que movimenta o mundo. As anotações pessoais misturam-se aos registros culturais, pois a biografia entrevista também é uma viagem ao redor do mundo e, simultaneamente, um mergulho na tradição, círculo onde o autor se move em múltiplas direções, tanto quanto a linguagem, transformando-se a obra num universo polilíngüe — babel discursiva a provar, também na fala, o fragmento e a impossibilidade de êxito a textos que surjam do campo esfacelado do absoluto, do inteiriço, da certeza, da visão global e totalizadora.

Composto por cinqüenta fragmentos3, o livro não apresenta qualquer preocupação em delimitar uma ordem que estabeleça qualquer continuidade: os fragmentos não possuem título, não há qualquer divisão em partes ou capítulos, internamente, os textos não apontam para uma "direção" prevista de sua própria leitura.

A estrutura de Galáxias assume as dimensões de uma linguagem em espiral, constituindo-se cada fragmento numa volta ascendente, cujo começo na realidade não é nunca o princípio, mas um recomeço, por deixar implícita a idéia de um continuum verbal, da sua permanente "suspensão", de um texto movendo-se num território aquém de si mesmo, e cujo final, analogamente, é uma parada, um corte, não um fim que forneça a idéia de completude, uma vez que mergulha num além-texto. Tal conceito não é modificado pelo fato de o primeiro e o último fragmentos funcionarem como entrada e saída, inclusive sendo visualmente marcados por grifo.

A fuga à fixidez, à compreensão do real como uno e estático, ao aprisionamento do existir a moldes que representam a aderência do ser a um absoluto, traduz-se mediante as letras de um discurso veloz e fugaz, mobilizadas na articulação de um jogo onde circulam múltiplos acontecimentos, vislumbres de seres impressos como nesgas de personagens, esboços de lugares/paisagens, bordando um rendilhado onde a língua se tece, ata e desata, qual indústria de aranha urdindo no canto da página uma teia de avesso: "onde o eu se mesma e mesmirando ensimesma emmimmesmando" (CAMPOS, 1984, fragmento 31). A contaminação de uma palavra por outra funciona como produtora de uma reação em cadeia fonético-semântica a operar uma irradiação constante de significantes cujas relações entre si constroem a totalidade do relato, tornando-se cada termo uma espécie de palavra-móbile, circulando e repercutindo entre outras: cravo no vazio os grifos desse texto os garfos as garras e da fábula só fica o finar da fábula... (fragmento 31)

A escrita não ocupa um lugar no papel, desponta do próprio vazio, transforma o nada, o branco, o silêncio no seu topos, ponto seminal de onde se evadem em hieróglifos galáticos a constelar na página um escrever sobre escrever capaz de sobreviver ao veneno autocorrosivo do escorpião, tradução simbólica da mão dobrando e desdobrando signos na tela vazia do livro. Isso afasta uma possível distinção das palavras como externalidade trazida ao universo da ficção, ao visualizá-las como partes constitutivas do silêncio e dele geradas.

 

o que mais vejo aqui neste papel é o vazio se redobrando

Escorpião de palavras que se reprega sobre si mesmo...  (fragmento 31)

 

Somente uma "unha aguda", "seu pontaço", para "ferrar", ferir o silêncio e escancará-lo, ampliar ao máximo a ferida, a cicatriz textual que é a palavra na pele de papel, os arabescos retalhando a carne do nada.

Labiríntico esse dizer-se o tempo inteiro um escrever reescrever escrever.

Emerge do fragmento a concepção da escrita enquanto inscrição. Unha, garfo, garra, pontaço, aguilhão (através do qual o escorpião fere) surgem como instrumentos que riscam o papel, abrindo no liso de sua textura a mínima cavidade onde flui o negro veneno dos signos. Idéia reforçada pelo emprego dos verbos ferrar, cravar e transvasar, todos nomeando o ato de insculpir, incrustar, cavar veios numa superfície plana de sentidos, escalpelando-a, roendo a polpa das palavras: "e se você quer o fácil eu requeiro o difícil..." (fragmento 31).

Logo identificado com o risco de pensar o silêncio de onde a fábula se desprega, cisco solto no vácuo, no espaço sem palavras do livro, dessa viagem que se faz ranhura entre nada e nada, o pregador sai a semear a pevide da linguagem. Dificuldade que induz à indagação sobre o sentido do claro-escuro, dos turnos de negro e branco, esse diurnoturno que caracteriza a tensão das dactiloletras num dualismo barroco, pleno de "cala" e "fala", mas onde o texto é a falha que, logrando avesso e anverso, indo contra o silêncio, o sujeito e o nada, insiste, resiste e existe como texto. Escorpião que se reproduz ao contrair seu próprio veneno, o texto de Galáxias faz de cada fragmento uma composição onde a linha é revogada para que a frase se constele e a anulação das fronteiras torna a página uma pulsação, não um  registro, da múltipla vida; microcosmo do próprio livro. Voltando à pulsação e ao ritmo dessa prosa inovadora, é a palavra o instrumento trabalhado para a sua obtenção, embora haja passagens como:

 

e se você quer o fácil eu requeiro o difícil e se o fácil te é grácil

o difícil é arisco e se você quer o visto eu prefiro o imprevisto

e onde o fácil é teu álibi o difícil é meu risco... (fragmento 31)

 

São verdadeiras seqüências de um jogo antitético instaurando um bloco frásico à maneira de uma ilha no mar de linhas onde as palavras buscam autonomia (compare-se com a passagem do fragmento 3:

 

se eu lhe disser que o mar começa você dirá que

ele cessa se eu lhe disser que ele avança você dirá que ele

cansa se eu lhe disser que ele fala você dirá que ele cala... (fragmento 3)

 

Procedimento de natureza barroca, em Galáxias não é o relato que importa; não o que diz com a ajuda da linguagem, mas o que nela se diz. O semeador prefere a semente da possibilidade ou da angústia da fala que não cala mas não instaura outra verdade que não a da fala/fábula. Justamente sobre a idéia do menos o fragmento estrutura o espaço concedido à fábula, o resto, a sobra do silêncio, garrafa ao mar, navegando à mercê de vento e maré, inclui-se o lance de dados, ação do acaso escavando uma leitura indiferente ao sujeito. As palavras lançam-se a esmo, às tontas, às cegas sempre à procura não de um sentido redutor do mundo, mas do devir da linguagem, babélico, múltiplo, bordelizando o papel. Daí o fragmento terminar descrevendo-se: "...meu canto não conta um conto só canta como cantar" (fragmento 50).

Esse procedimento antecipa passagens posteriores da obra de Haroldo de Campos, como essa estampada em A educação dos cinco sentidos (1985, p. 14):

 

o táctil

o difícil

de se ler / legível

visibilia / invisibilia

o ouvível / o inaudito

a mão

o olho

a escuta

o pó

o nervo

o tendão (...)

 

Outra referência fundamental cuja importância parece mais relevante é aquela que introduz a aproximação com o barroco, na esteira da dicção própria a Gôngora. A presença intensa do pictórico, dissolvendo a linha, tornando todas as coisas confusas, misturadas, conduz ao descentramento, a um babélico dizer o mundo. Esse desprezo pelos contornos definidos, pelas linhas, pela apreensão do real como claridade e nitidez, trabalha no sentido de verticalizar o olhar contra a luminosa ótica de superfície, mobilidade horizontal da visão. A quebra dos contornos é o esfacelamento da unidade, a irrupção da multiplicidade; em Haroldo de Campos, a palavra/fala ou o sermão/escrita não são necessariamente tensionados ao modo barroco, mas trabalhada como encarnação lingüística do caos, do caráter efêmero, fugaz, da linguagem enquanto homem, ou do homem enquanto linguagem, alçados, em Galáxias, ao mesmo plano de instabilidade, ao mesmo plano de existência e legibilidade, abertos inteiramente à metamorfose, figura predominante, principalmente sob a forma particular da anamorfose, traço que torce e distorce, nos marcos ou arcos do discurso, curvas, volutas, dobras, rugas, sinuosidades que lançam o pólen da linguagem sempre adiante, lálonge, láemfrente (fragmento 31),  prospectivamente voltado para um ponto além de si mesmo, dotado da tensão que funda e instaura essa antiprosa — a tensão entre o silêncio e a sua fala.

Agora, a linguagem é o peregrino e a peregrinação.

Concluindo, no Sermão da Sexagésima há uma constante metaforização do real e do banal, formando uma epopéia cosmológica dos novos tempos das navegações. Em sua fala e exemplos, há o desinteresse pela peça perfeita, clássica, como um diamante, mas o pregador opta por uma concepção de "pregação aberta", como um "barroco moderno". Vieira crava de sarcasmos os predicantes, mofando da linguagem ridiculamente requintada, obscura e atulhada de tropos. E, ao mesmo tempo, apresentou completo tratado de oratória religiosa, válido ainda para nossos dias.

Haroldo de Campos define-se como poeta brasileiro de vocação ecumênica. A própria literatura é uma cadeia transmissiva constante, é uma permanente sucessão de interpretantes. Em Galáxias, inicialmente ele pensava que estava trabalhando sobretudo como uma prosa, uma épica, até chegar à conclusão de que o que ele estava fazendo era uma tessitura de epifanias, era uma tessitura epifânica. Existe dentro do projeto um componente onde a visão sobreleva a narração, a imagem, a transfiguração, tudo o que diga respeito à mobilização do icônico, da vidência, da imagética prevalece. E, nesse baralho babélico, como ele próprio define, os dois vates mais uma vez se afirmam na epifania da palavra, da língua portuguesa. É Haroldo de Campos quem nos diz:

 

Mas todo esse meu interesse no mistério, antes de ter uma forma mística, tem uma tônica de interrogação intelectual. O agnóstico é aquele que não tem uma gnose definida, o que não quer dizer que ele negue a possibilidade de uma gnose. Ele está em um processo de busca e, em certos momentos às vezes cruciais de sua experiência de vida, essa busca até se impõe.  Se tenho uma religião, essa religião é a poesia. Ou pelo menos, tudo o que me passa pelo crivo da poesia. Como já disse Novalis, "quanto mais poético, mais verdadeiro"4

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Notas e Referências

 

 

 

junho, 2009

 
 
 
 
Tida Carvalho (Belo Horizonte/MG). Escritora, pesquisadora, ensaísta e professora de Literaturas Brasileira e Portuguesa e Teoria da Literatura. Doutora em Literatura Comparada pela UFMG com a tese: "Representações de Diálogos dos Mortos na Literatura ocidental. Publicou O Catatau de Paulo Leminski: (des)coordenadas cartesianas (São Paulo: Livro Aberto, 2000).